Longe de ser um caso isolado, Kuku é mais um nome a acrescentar à lista de jovens dos bairros periféricos de Portugal assassinados por agentes das polícias que ficam sempre impunes. Por Noiz – Plataforma Gueto

No dia 17 de Janeiro a Plataforma Gueto, apoiada por várias outras organizações como o Colectivo Múmia Abu-Jamal e a revista Rubra, reuniu cerca de 500 jovens em frente à 60ª esquadra de polícia no Casal da Boba, para exigir que se faça justiça para o Kuku [ver testemunhos audiovisuais na secção Em Directo].

Esta mobilização resultou da indignação de irm@s face à forma como a polícia, apoiada pelos média [pela mídia], tem tratado os jovens africanos residentes nos bairros periféricos de Portugal.

Longe de ser um caso isolado, Kuku é mais um nome a acrescentar à lista onde já figuram os nomes de Tony, Angoi, Tete, Corvo, Ptb, todos assassinados em circunstâncias duvidosas das quais nunca resultou nenhuma condenação. Mais do que acidentes, estes casos foram os desfechos mais extremos da violência física e psicológica constantemente praticada nos nossos bairros pelas forças policiais. A 5 de Janeiro rebentava nos média [na mídia] a notícia da morte do Kuku, um irmão de origem caboverdiana, nascido em Portugal, com apenas 14 anos. Esta notícia foi estrategicamente acompanhada por uma forte propaganda, baseada na versão da polícia (a única disponível) de que se tratava de um criminoso violento que apontou uma arma a um agente, tendo este que se defender alvejando-o em legítima defesa.

Estava feito o julgamento. Kuku: negro, pobre, de um gueto, criminoso, violento. Veredicto: culpado. Pena: a morte. Carrasco: polícia. Do polícia nem uma suspeita. Se Kuku seria ou não um “criminoso violento com uma arma” não houve nem uma dúvida. Os média [a mídia] não deixaram [deixou] margem.

Graças a esta propaganda, as palavras “negro” e “bairro problemático” tornaram-se eufemismos para “criminoso violento”. Assim a violência policial tem vindo a ser legitimada e apoiada deixando um ambiente de impunidade e de profunda violação dos direitos das pessoas.

Para nós, jovens africanos, alguns dos quais conheciam o Kuku, tratava-se de mais uma história mal contada que arriscava ser ignorada pelo público e que teria sido tratada de outra forma se Kuku não fosse negro. E a este sentimento juntou-se a dor da família e dos amigos que diziam que “Kuku nunca apontaria uma arma a um polícia e não era nenhum criminoso violento” e gerou-se um movimento de solidariedade e de apelo à justiça que não quis deixar mais uma execução ser abafada.

Poucos dias depois, um relatório da polícia científica contrariava as versões da polícia e confirmava os nossos temores. Kuku tinha sido alvejado à queima-roupa na cabeça.

Se até aqui várias organizações e movimentos políticos tinham estado em silêncio deixando que o tema “violência policial” continue “guetizado”, houve, a partir daí, na véspera da concentração, várias manifestações de solidariedade que permitiram reforçar a luta.

No entanto a propaganda antecipou-se e fez sair, na televisão e nos jornais, uma notícia de que movimentos de extrema-esquerda haviam convocado esta manifestação e estariam a penetrar nos bairros para tentar reproduzir os acontecimentos da Grécia e de Paris [ver, na secção Portugal, o artigo “As três polícias e a grande conspiração esquerdista mundial”].

Tratava-se, em primeiro lugar, de uma tentativa de criminalizar o movimento usando a associação extrema-esquerda/“terrorismo interno” com a qual a Europa tem rotulado todos os movimentos políticos à margem dos parlamentos e, em segundo, de um “atestado de incapacidade” reforçando a ideia de que nós não temos capacidade para nos organizarmos e falar em própria voz, pelo que esta acção só podia ter sido organizada pelos ditos extremistas.

Numa acção inédita na história da frágil democracia portuguesa, juntámos várias centenas de jovens e companheir@s solidários em frente a uma esquadra gritando “sem justiça não haverá paz”, “diariu di nutisia, diariu di pulisia”(1), “Pulisias mufinuz, asasinuz”(2), “Menos esquadras policiais, mais hospitais”, entre outras. Entre nós encontrava-se a Dona Minga, mãe do Kuku, que fez questão de esclarecer a todos pelo megafone que se tratava de um protesto contra a forma como hostilizaram o seu filho e dum apelo para que se fizesse justiça.

Os média [a mídia] marcaram [marcou] sua presença sendo que alguns só conseguiram ver as 3 pedras que, isoladamente, voaram para a esquadra, aproveitando para continuar a sua propaganda.

Esta jornada foi apenas uma em muitas que terão continuidade pois Kuku não foi o primeiro e certamente não será o último. Os nossos bairros são apenas armazéns de mão-de-obra barata, precarizada ou desempregada, que este sistema económico falido descartou e cujo descontentamento e estratégias de sobrevivência continuarão a ser duramente combatidas com polícias e militares. A criminalização e estigmatização da pobreza e das migrações continuam a fazer de nós bodes expiatórios para os momentos particularmente difíceis como o actual, além de nos deixarem à mercê deste sistema capitalista como objectos descartáveis que servem para manter as margens de lucro e para justificar sucessivos investimentos nas políticas securitárias destinadas a conter o descontentamento geral.

Mais do que tratar este assunto como um problema dos guetos é imperativo perceber que, apesar de sermos os mais hostilizados por esta violência estatal, a polícia está cada vez mais vocacionada para conter o descontentamento social e a marginalidade provocada por tamanhas desigualdades do que para deter os verdadeiros crimes que se têm praticado na nossa sociedade.

Episódios como o de Almada, no passado dia 16 de Janeiro [ver, na secção Portugal, o artigo “Violência policial em Almada”], serviram para despertar a classe média para uma questão que lhes será tão mais presente quanto as fábricas continuarem a fechar e a polícia continuar a investir sobre aqueles que querem manter os seus postos de trabalho, tão mais presente quanto os actuais padrões de consumo continuarem a cair, e esta finalmente se sentir ameaçada pelas mesmas violações de direitos a que nós, negros, ciganos, brancos pobres temos sido sujeitos, violações que têm sido desprezadas ou até apoiadas.

(1) “Diário de Notícias, Diário dos polícias” em krioulo de Cabo Verde, numa alusão a um dos diários que iniciou a propaganda para criminalizar a jornada de luta.

(2) “polícias covardes assassinos”

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