Por Passa Palavra

O Primeiro de Maio de 1962 marcou uma viragem importante na luta contra o regime salazarista.

Com a derrota dos fascismos no final da segunda guerra mundial surgiu a convicção de que o Estado Novo ficara muito enfraquecido e a esperança de que Salazar não se conseguisse sustentar no poder. O Partido Comunista, a única organização clandestina com uma força real e efectiva implantação na classe trabalhadora, defendeu então a aliança com os sectores democráticos conservadores e apostou tudo na candidatura do velho general Norton de Matos à Presidência da República nas eleições de 1949. A direcção do Partido Comunista não podia ter escolhido melhor, se queria assinalar a sua vontade de não colocar limites na aliança com a direita contra Salazar. Antigo ministro da Primeira República e alta personalidade na Maçonaria, da qual fora eleito grão-mestre em 1929, Norton de Matos havia-se destacado como uma das principais figuras do colonialismo, primeiro na Índia e de 1912 até 1915 como governador-geral de Angola, tendo sido nomeado de 1921 até 1923 Alto Comissário da República naquela colónia. A sua truculência contra os trabalhadores ficara célebre na metrópole quando, por ocasião de uma greve de ferroviários em que os sindicalistas haviam ameaçado dinamitar as linhas se o governo fizesse circular os combóios [trens] com fura-greves [pelegos], o general Norton de Matos mandou atar à frente das locomotivas dirigentes sindicais para que eles fossem os primeiros a morrer em caso de sabotagem. Foi esta estupenda figura que o Partido Comunista e a oposição democrática apresentaram como candidato contra o candidato escolhido por Salazar.

A eleição não levou a lado nenhum, como seria de prever, e Norton de Matos desistiu antes do escrutínio. Mesmo que não o fizesse, o fascismo já tinha determinado previamente quais seriam os resultados nas urnas. Mas se sob o ponto de vista eleitoral a manobra foi fútil, sob o ponto de vista da luta de classes as repercussões negativas foram muito profundas, pois a classe trabalhadora fora precipitada no beco sem saída da aliança com os patrões democráticos e com a incipiente tecnocracia modernizadora.

Delgado saúda a multidão no Porto.
Delgado saúda a multidão no Porto.

Durante uma década a capacidade de luta dos trabalhadores entrou num refluxo bastante acentuado, ao mesmo tempo que a guerra fria consolidou o apoio dado pelos sucessivos governos norte-americanos aos dois fascismos da Península Ibérica. Até que em 1958, por ocasião de novas eleições à Presidência da República, as oposições ao regime dedicaram-se à futilidade habitual e decidiram apresentar candidatos. O Partido Comunista apoiava, a partir da clandestinidade, uma figura de esquerda, o advogado Arlindo Vicente, enquanto os democratas conservadores e alguns dissidentes do regime promoviam a candidatura de Humberto Delgado, general da Força Aérea. À primeira vista era estranha a escolha desta figura para se opor ao candidato de Salazar. Convicto fascista desde a juventude, Delgado comandara a Legião Portuguesa e fora vice-comissário nacional da Mocidade Portuguesa. Mais tarde, já enquanto alta patente da aviação, ele tivera ligações estreitas aos meios militares dos Estados Unidos. Mas nas eleições de 1958, que tudo prometia serem uma farsa tão grande como as anteriores, sucederam duas coisas imprevistas.

A primeira, foi a própria figura de Delgado, que se revelou um demagogo com um sentido da multidão e uma sensibilidade para auscultar a opinião das massas que rivalizava com a dos seus congéneres da América Latina naquela época. Posicionando-se cada vez mais à esquerda e com uma capacidade de afirmação pessoal incomparavelmente superior à de Arlindo Vicente, Delgado conseguiu que este desistisse e que o Partido Comunista, sempre na clandestinidade, passasse a dar-lhe o seu apoio.

A segunda coisa imprevista foi o maciço movimento de opinião a favor do general Humberto Delgado. A viagem que ele fez de Lisboa até ao Porto, e depois o regresso, durante a campanha eleitoral, entusiasmou multidões entre os trabalhadores, os camponeses pobres e uma pequena burguesia muito abundante nas condições arcaicas da economia portuguesa daquela época. Nem o aparelho repressivo do fascismo, apesar da sua enorme rede de espionagem e de delação, esperava aquele movimento de massas, nem o Partido Comunista o previra.

Contrariamente ao que havia sucedido com os candidatos oposicionistas nas eleições anteriores, Humberto Delgado decidiu ir até ao fim e apresentar-se ao escrutínio. Diz-se que, em número de votos colocados nas urnas, ele teria vencido aquelas eleições, e é muito provável que isto seja exacto. Os resultados legais, evidentemente, foram outros, já que eram os agentes do fascismo quem contava os votos e os pides [membros da polícia política] atulharam as urnas à última hora. Mas a maioria da população ficou convicta de que tinha sido defraudada. E em vez de ficarem desmobilizados e presos à aliança com o patronato democrático e com a tecnocracia modernizadora que o Partido Comunista continuava a defender, os trabalhadores começaram a enveredar por verdadeiros confrontos de classe.

Foram quatro anos de radicalização progressiva, que conduziram ao Primeiro de Maio de 1962. Ao longo de várias horas, muitas dezenas de milhares de pessoas manifestaram-se no centro de Lisboa, um número sem precedentes, ao mesmo tempo que os assalariados agrícolas do Alentejo e do Ribatejo entraram em greve e conseguiram finalmente conquistar o limite das oito horas de trabalho. A repressão foi brutal. Contrariamente ao que sucedera na década precedente, não bastou a prisão dos militantes clandestinos do Partido Comunista, e o salazarismo deixou alguns mortos nas ruas e nos campos. Pela primeira vez desde o final da segunda guerra mundial a classe trabalhadora havia desencadeado um movimento próprio de grandes dimensões, independente dos democratas conservadores e com um enorme grau de combatividade.

A multidão começa a concentrar-se no Rossio, em Lisboa.
A multidão começa a concentrar-se no Rossio, em Lisboa.

O Primeiro de Maio em Lisboa e a greve rural a sul do Tejo tiveram importantes repercussões políticas e contribuíram decisivamente para minar as bases do salazarismo. Em 1961 iniciara-se a sucessão de guerras coloniais, que acabaria por colocar em xeque o exército português até que, cientes de que era impossível uma vitória militar contra os movimentos de libertação, os oficiais desencadeariam a conspiração que levaria à queda do regime em 25 de Abril de 1974. Acessoriamente, em 1962 os estudantes universitários entraram numa efervescência que aumentaria nos doze anos seguintes. Convém lembrar que a universidade portuguesa era então uma instituição estritamente vocacionada para a elite, mas as lutas estudantis, embora não tivessem um carácter popular, minaram internamente a classe dominante. Assim, 1961 e 1962 assinalaram o começo de um conjunto de ataques convergentes que levaram à liquidação do fascismo.

As repercussões políticas do Primeiro de Maio de 1962 exerceram-se noutro plano também. O Partido Comunista fora o impulsionador e o organizador clandestino das jornadas de Maio, e no interior da sua direcção vinha a travar-se uma acesa polémica entre a facção mais moderada, que tinha predominado até então e era responsável pela colocação em primeiro plano da oposição conservadora, e uma facção mais radical, que tinha em Álvaro Cunhal a figura de proa, e que, sem de modo algum romper a aliança com os patrões democratas e com os tecnocratas modernizadores, pretendia assegurar uma maior independência política do aparelho do Partido.

Desenho por Álvaro Cunhal.
Desenho por Álvaro Cunhal.

A irrupção do proletariado em Maio de 1962 fortaleceu a orientação preconizada por Álvaro Cunhal, mas teve outro efeito ainda, o aparecimento de uma terceira facção, representada por Francisco Martins Rodrigues. De início, Francisco Martins pretendera apenas levar mais longe as posições encabeças por Cunhal, mas ele depressa se destacou com uma estratégia própria, até assumir a ruptura com o resto do comité central.

Do ponto de vista prático, as posições defendidas então por Francisco Martins revelaram-se completamente inadequadas. Ele julgou que o surto aguerrido do Primeiro de Maio e da greve no Alentejo e no Ribatejo revelava uma disposição dos operários e dos camponeses mais radicais para encetarem a luta armada contra o salazarismo, e apostou tudo na preparação dessa luta armada. Juntamente com Rui D’Espiney e João Pulido Valente, Francisco Martins fundou o Comité Marxista-Leninista Português (CMLP), que não se destinava a formar um novo partido mas a constituir como que uma espécie de direcção do Partido Comunista «no exílio». Aquele pequeno grupo esperava que a radicalização da luta levasse à radicalização das bases do Partido Comunista, num processo que expulsaria os elementos moderados dessa direcção e poria o CMLP à frente do Partido. Com esse fim o CMLP fundou a Frente de Acção Popular (FAP). O recrutamento de militantes era feito exclusivamente para a FAP, não para o CMLP, e toda esta estratégia se revelou ilusória porque a luta armada não foi sequer encetada, a FAP foi rapidamente destruída pela Pide e as bases do Partido Comunista permaneceram fiéis aos seus dirigentes, sem verem no CMLP qualquer direcção alternativa.

Todavia, no plano da elaboração teórica, Francisco Martins representou o prolongamento do Primeiro de Maio de 1962, porque foi ele quem pela primeira vez introduziu uma perspectiva de classe trabalhadora na análise das lutas sociais no Portugal daquela época. Esta perspectiva de classe fora já aplicada em estudos históricos, sobretudo relativos ao século XIX e à Idade Média, por intelectuais comunistas como Augusto da Costa Dias, Victor de Sá, Armando Castro, António Borges Coelho, o próprio Álvaro Cunhal e outros ainda. Mas ficara limitada à historiografia. Na análise política concreta, o Partido Comunista, incluindo Álvaro Cunhal, nunca saiu da esfera do radicalismo republicano e jacobino, em que ainda hoje se mantém. Foi Francisco Martins, nos seus artigos no Revolução Popular, o órgão teórico do CMLP, o primeiro a romper com essa pesada tradição ideológica da oposição antifascista e a definir um ponto de vista teórico autónomo inspirado na classe trabalhadora. Neste plano foi ele quem melhor absorveu e melhor exprimiu o ímpeto militante e proletário do Maio de 1962, transmitindo-o àqueles que, de uma maneira ou outra, prolongaram a perspectiva que ele inaugurou. Mesmo que o não saibam, os jovens que começam hoje a ressurgir na extremíssima-esquerda portuguesa devem alguma coisa a esta linhagem.

Vista assim a questão, o Primeiro de Maio de 1962 nas ruas de Lisboa e nos campos do sul mantém-se ainda vivo.

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