1º de Maio
Uma cena de A Mãe, de Gorki/Brecht, encenação de João Mota
Comuna – Teatro de Pesquisa, Lisboa, 1978

Nesta cena, as personagens mais importantes da peça saíam do espaço cénico e colocavam-se junto das bancadas contando a história, cada um a um grupo de espectadores, de modo a abrangê-los a todos. Quem contava a história era a personagem, e não o actor. Por isso – por exemplo – enquanto os outros dizem “Atrás do Carlos seguia a Maria Rodrigues”, o filho (Carlos) diz “Atrás de mim seguia a minha mãe” e a Maria Rodrigues diz “Atrás do meu filho seguia eu”. E assim em situações semelhantes do texto. Aqui optou-se por transcrever na pessoa de Carlos, o filho, que se ouve em primeiro plano.
O assobio e o canto eram assegurados pelos outros actores, que ficavam nos seus lugares.
PassaPalavra

f090501_comunamae02Quando nós, operários da fábrica Ariel, chegámos ao mercado, encontrámo-nos com os manifestantes das outras fábricas que já eram muitos milhares.
Levávamos cartazes que diziam: “Operários! Apoiai a nossa luta contra a redução dos salários! Operários, uni-vos!” Desfilávamos calma e ordeiramente. Cantava-se a Internacional e outros hinos revolucionários. A nossa fábrica marchava directamente atrás da grande bandeira vermelha. Atrás de mim, seguia a minha mãe.
Quando foram buscar-nos, manhã cedo, ela saíu da cozinha já pronta. E quando lhe perguntaram onde ia, ela respondeu: “Vou com vocês”. Tal como ela, seguiam-nos muitos outros que o rigor do inverno, a redução dos salários e o nosso trabalho de agitação tinham trazido até nós.
Antes de chegarmos à avenida, cruzámos alguns polícias. Não vimos soldados. Mas na esquina da avenida com a praça, deparou-se-nos subitamente um cordão de soldados. Ao avistarem a nossa bandeira e os nossos cartazes, ouve uma voz que gritou: “Atenção! Dispersar ou disparamos! E fora com a bandeira!”
Sustivemos a marcha. Mas como a rectaguarda não parava, foi impossível aos da frente conter o avanço. E agora já havia tiros. Quando os primeiros manifestantes começaram a cair, estabeleceu-se a confusão geral. Muitos não acreditavam no que viam. Depois os soldados carregaram sobre a multidão.
f090501_comunamae01A minha mãe decidira acompanhar-nos para demonstrar o seu apoio à causa dos trabalhadores. Os manifestantes eram pessoas honestas, dizia, e tinham trabalhado a vida inteira. É claro que também havia desesperados que o desemprego tornara capazes de tudo. E também muita gente faminta, demasiado fraca para defender-se.
Continuámos à frente e não dispersámos quando os tiros começaram. Tínhamos a nossa bandeira. Era o Luís que a levava e não tencionávamos largá-la. Não trocáramos uma só palavra, mas (…) entre nós. Que nos arrancassem a bandeira, a nossa, a vermelha. Queríamos que todos os trabalhadores vissem quem somos e por quem somos. Que reconhecessem que somos trabalhadores. Os que nos atacavam (…) Precisavam de ganhar a vida e os patrões pagavam-lhes para isso. Mas todos acabariam por compreendê-lo.
Por isso a nossa bandeira, a bandeira vermelha, teria que ser levantada bem alto à vista dos soldados e de todos os outros. E aos que não viram é preciso contá-lo. Hoje ainda, ou amanhã, ou nos próximos anos aquela bandeira será vista. Pois julgamos saber, e muitos já o sabem, que ela voltará sempre a ser vista até ao dia em que tudo será totalmente transformado. E esse dia aproxima-se.
A nossa bandeira. A mais perigosa para todos os exploradores e todos os tiranos. A mais implacável. Mas para nós, trabalhadores, a bandeira do combate decisivo. Por isso voltareis sempre a vê-la, com alegria ou ódio, e conforme a vossa opção nesta luta que só poderá terminar com a vitória completa de todos os oprimidos de todos os países do mundo.
Mas nesse dia era o operário Luís que a levava. Há vinte anos que pertence ao movimento. Foi um dos primeiros a divulgar na fábrica os ideais revolucionários. Lutámos pelos salários e por melhores condições de trabalho. Negociou várias vezes com os patrões em defesa dos interesses dos seus colegas. A princípio com franca hostilidade. Mas depois admitiu que houvesse um caminho mais fácil. Se a nossa influência aumentasse, caber-nos-ia a nós também (…) Viu porém que se enganou.
Ei-lo aqui com milhares de outros atrás, enfrentando como sempre a violência. “Entregamos, ou não, a bandeira?”, perguntou. “Não, Luis, não entregues! É inútil negociar!”, dissemos. E a minha mãe disse-lhe: “Não há razão para que a dês. Nada poderá suceder-te. A polícia não pode ter nada contra uma manifestação pacífica!”.
E nesse instante o oficial da polícia gritou: “Entreguem a bandeira!” E o Luís olhou para trás, e viu atrás da bandeira os cartazes, e nos cartazes as nossas soluções. E atrás dos cartazes os grevistas da nossa fábrica. E nós ficámos a vê-lo sempre, ali junto a nós, um de nós o que faria com a bandeira.
Vinte anos de movimento operário, revolucionário, no dia Primeiro de Maio às onze horas da manhã (…) no momento decisivo, e disse: “Não a dou! Não haverá negociações!”. “Muito bem, Luís!”, exclamámos. “é assim mesmo! Agora está tudo em ordem!”. “Está!”, disse ainda. Mas tombou para a frente, com a cara no chão, pois eles já o tinham abatido.
E corremos logo (…) para segurar na bandeira. Mas ela caíra ao lado da minha mãe. Então a minha mãe, a serena, a pacífica, a camarada, curvou-se, pegou na bandeira. “Entrega-me a bandeira, Luís!”, disse ela, “Entrega-me a bandeira, eu levo-a. As coisas têm de mudar”.

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1 COMENTÁRIO

  1. Eu vi esta peça e, ainda hoje, quando ouço as canções da peça revejo-a como se a tivesse visto ontem. Revivo também o período político da altura e continuo a emocionar-me. Pena que muitos encenadores, e também actores, entendam que hoje levar à cena peças deste tipo, marcadamente políticas e revolucionárias, já não tem cabimento. Como se enganam! dar relevo às lutas dos trabalhadores e do povo contra a tirania e a exploração, através do teatro, cinema, da canção ou seja lá de que forma for, nunca foi tão urgente como o é hoje! À medida que o sistema de exploração do homem pelo homem ganha maior agressividade e se torna mais brutal, maior é a necessidade da divulgação de actos de resistência à exploração e opressão!
    Muitos dos que, no PREC, faziam ouvir a sua voz e as suas manifestações artísticas a favor da luta contra o capitalismo, deixaram-se adormecer pelas balelas da democracia burguesa e assumem uma posição de afastamento da luta política. Que pena!
    Alguns, poucos, ainda mantém acesa a chama da liberdade a sério e, a esses, eu curvo-me em sinal de respeito pelo respeito que têm a si próprios e admiração! Olá Zé Mário, olá Helder Costa.
    Gregório Curto

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