O criador artístico nunca tem “desculpa” para abdicar da sua liberdade de criação em nome dos limites que a classe dominante lhe quer impor. Por Passa Palavra

Em todas as formas de criação artística, a liberdade de criação e de expressão entra, pela sua própria natureza, em choque aberto com os governos opressores e as classes dominantes. Se qualquer criação é um acto de liberdade, então o artista não pode deixar de ser uma pessoa livre; e, sendo uma pessoa livre, entra inevitavelmente em choque com as grilhetas que o aprisionam e oprimem.

Mas será que se é livre só pelo facto de se ser um criador artístico? Em teoria, sim. Mas, na prática as coisas são mais complicadas. Porque na sociedade em que vivemos, dominada por uma classe hegemónica que explora a força de trabalho, existe também (consequência dessa hegemonia social) uma cultura dominante. E porque essa cultura dominante, nos nossos tempos quase totalmente massificada e mercantilizada, cria inúmeras “zonas de sombra” onde não se percebe claramente se o criador, o artista, está em contradição com ela, ou se está a viver dela e é cúmplice dela. É aquilo a que, simplificando, se costuma chamar a “capacidade de digestão” do sistema dominante para recuperar para o seu lado o potencial de revolta que nasce das classes oprimidas.

Esta recuperação é tão real na política como na criação artística. Os prémios, honras e distinções, as cedências negociadas nos conteúdos e as múltiplas formas de autocensura calculada, o dinheiro e o estilo de vida a que se habituam, fazem com que muitos intelectuais e artistas, por vezes sem terem muita consciência disso, se deixem amarrar a compromissos, a hábitos ou a simples benefícios materiais que vão arredondando as arestas da revolta inicial que sentiam contra o sistema.

O criador artístico nunca tem “desculpa” para abdicar da sua liberdade de criação em nome dos limites que a classe dominante lhe quer impor. A criação artística é como a água: quando não a deixam correr por um lado, ela esgueira-se e corre por outro, faz tudo para evitar a imobilidade, o descompromisso. E quando o exercício da liberdade criativa (nomeadamente a criação ligada às lutas e ao movimento social) não se consegue exercer no plano legal, o artista comprometido e ligado ao seu povo passa – como as próprias lutas – para o plano da alegalidade, ou mesmo, se necessário, para o plano da pura ilegalidade. Não há leis nem juízes nem polícias que possam calar a sua voz.

No fim dos anos 1960, havia uma certa margem de mercado para que algumas editoras discográficas pudessem, com proveito, arriscar a divulgação, em Portugal, de artistas socialmente comprometidos, e mesmo exilados, enquanto conseguiam escapar por entre as malhas da censura e da perseguição policial. Em contrapartida, era muito mais complicado fabricar discos e difundi-los fora do sistema. Em 1969, por exemplo, foi editado um pequeno single com duas canções abertamente contra a guerra colonial. O dinheiro para o gravar e fabricar foi conseguido com encomendas (previamente pagas) de associações de emigrantes portugueses e de organizações da resistência antifascista. A distribuição, além dessas encomendas, foi feita em sessões e espectáculos por toda a Europa, e conseguiu-se ainda, através de pessoas que iam e vinham, fazer entrar em Portugal cerca de 3.000 exemplares, que eram passados de mão em mão ao preço de 20 escudos. Havia, pois, uma espécie de jogo duplo, que não era mau em si: explorar todas as possibilidades de edição e comercialização legal, e ao mesmo tempo não se deixava de fazer edições clandestinas quando os conteúdos a isso obrigavam. Isso só foi possível aos que estavam fora de Portugal, pois as fábricas de discos eram muito controladas pela ditadura, nomeadamente através de autorizações prévias (como ainda hoje, aliás). Sabemos que, nos nossos dias, tudo isto foi ultrapassado, por um lado, pela popularização de meios técnicos de reprodução mecânica doméstica e, por outro lado, pela digitalização e pela utilização massiva da internet.

O carácter intrinsecamente libertário da criação artística restringe, de raiz, qualquer relação do artista-criador com o poder de Estado e com o poder económico que o Estado representa. O pintor Courbet – já falado no Passa Palavra a propósito do seu quadro A Origem do Mundo – escreveu em 1870 uma célebre carta ao ministro francês das Belas-Artes na qual recusa a maior condecoração francesa (a Legião de Honra), estabelecendo um fosso radical entre a sua liberdade de criador e o poder (publicá-la-emos em breve, com alguns dados de enquadramento histórico e biográfico).

É esta a dimensão ética da liberdade de criação. De toda a criação, artística e poética. Porque o criador, no momento em que cria (mesmo que apenas interpretando obras de outros), é uma espécie de representante de toda a Humanidade e do seu destino. Não pode mentir a si próprio, pretender enganar-se a si próprio, por uma simples razão: ele já não é só ele, é algo mais do que ele, muito mais do que ele. Ele é, quando cria, todos os “eles” possíveis. É, por ser livre, totalmente dono de si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, não é dono de si mesmo porque se transforma em todos os seus iguais.

O artigo foi ilustrado novamente, em agosto de 2017, com uma fotografia da escultura Freedom, de Zenos Frudakis

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