Essa paz de apatia / Asséptica, anêmica, amórfica / Essa paz hospitalar / Encapsulada, inerte, filantrópica / Métrica, sistêmica, tumular… Por Otto João Leite

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Essa paz cotidiana
É a mordaça que nos sufoca
É a casca dura e seca
Que encobre a erupção
É a placa tectônica plácida
Sobre a torrente de lava escaldante
Tampa que arrocha
A panela de pressão chamada mundo

Essa paz provinciana
É a cortina que oculta os bastidores
É o teatro que encena fiel o texto
Escrito e ditado pelos senhores
É o isolamento, a separação
Dos átomos irresolutos
Em ebulição
Debatendo-se em tumultos

Essa paz de apatia
Asséptica, anêmica, amórfica
Essa paz hospitalar
Encapsulada, inerte, filantrópica
Métrica, sistêmica, tumular
Que mortifica, mede e quantifica
Quadricula e classifica
Mantém cada coisa em seu lugar

Essa paz que me faz sentir um incapaz
Que cala o grito do inocente
É o aperto do capataz
No pescoço, inclemente
Construída sobre guerra
Miséria humana, bactéria
Icterícia, exploração e tropa de choque
Despejo, vigilância, reintegração de posse

Essa paz tão falsa e ilusória, tão efêmera
Essa paz que cheira a bomba de gás
Que só poderá ser mantida
A toque de recolher
Essa paz comprada e vendida
Fabricada, planejada e produzida
Mordaça que nega a vida
E que se retorce, tentando conter

O grito e o alvorecer
O retorno do banido
A vingança do vencido
A inversão do sentido
O grito de dor contido
A irrupção do amor reprimido
A realização do sonho incompreendido

(Maio de 2009)

Foto thumbnail: Flickr

Ilustração: Pintura de Ben Shahn

5 COMENTÁRIOS

  1. Impressionante!
    As vezes uma poesia fala por volumes inteiros, tem o poder de sintetizar bem a dialética da sociedade que vivemos. É uma forma de linguagem que dispensa notas de rodapé e diz muito.

  2. Realmente, o mundo é uma panela de pressão, com uma aparência externa tranquila e se revirando por dentro. Parece uma descrição, em linguagem poética, do fetichismo da mercadoria.

  3. “Essa paz que me faz sentir um incapaz”

    é exatamente isso! a sensação de impotência imposta, de estar preso ao permitido, ao consentido, entre os limites da lógica e do cacetete !

  4. Me parece que a poesia mostra esta opressão que arrocha, e sob ela a velha toupeira continua seu trabalho.

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