Para romper as barreiras da alienação é preciso entender que mecanismos materiais e psicológicos contribuem para garantir que os trabalhadores continuem dóceis às exigências do capital, elevando a produtividade e os lucros empresariais. Por Emilio Gennari.

Apresentação

É bastante comum ouvir quem atua nos movimentos sociais se queixar da dificuldade de envolver as pessoas que, por sua situação, deveriam ser as primeiras interessadas em aderir às lutas propostas. Frases como: “o povo não se mexe” ou “o pessoal não quer saber de nada”, são parte de um cotidiano no qual, via de regra, quem se revoltou diante das contradições do presente não consegue despertar qualquer reação individual ou coletiva à altura das necessidades.

alienacao-depressao1A explicação pode ser encontrada sem maiores problemas no sentido da palavra “alienação” que, de acordo com o dicionário Houaiss, é definida como o “processo em que o ser humano se afasta de sua real natureza, torna-se estranho a si mesmo na medida em que já não controla a sua atividade essencial (o trabalho), pois os objetos que produz, as mercadorias, passam a adquirir existência independente do seu poder e antagônica aos seus interesses”.

Dito isso, parece óbvio que o povo simples não consiga compreender os fatores sociais, políticos e culturais que condicionam sua vida e nem possa decifrar os impulsos que o levam a agir numa determinada maneira. Pela definição de alienação, podemos dizer que as relações do dia-a-dia chegam aos nossos olhos como a imagem refletida no espelho. Aparentemente, o que se vê parece ser a fiel reprodução do cotidiano vivido, quando, na verdade, tudo não passa de um reflexo que inverte as relações sociais. Na ilusão de estar enxergando a realidade como ela é, o homem-massa não capta o que se esconde por trás das aparências e sequer desconfia de que pode estar diante de uma miragem enganadora.

O problema é que esta constatação pouco ajuda quem se dedica a organizar a classe trabalhadora. Para que sindicatos, partidos e movimentos sociais possam romper as barreiras da alienação é necessário compreender que elementos, ao atualizá-la, contribuem para garantir que suas bases continuem dóceis às exigências do capital. Ou seja, precisamos delinear claramente a forma pela qual os fatores internos e externos às empresas se articulam para introduzir tensões desagregadoras no seio do trabalhador coletivo e realizar a façanha de levá-lo a aumentar a produtividade e os lucros mesmo quando a adesão ativa à lógica e aos projetos capitalistas é paga com a perda da integridade física e mental.

O estudo que segue propõe algumas respostas. Ao tentar explicar porque é cada vez mais difícil organizar os locais de trabalho, nenhum capítulo vai abrigar dissertações sobre o papel manipulador da mídia e, menos ainda, se preocupará em reafirmar o que já delineamos em trabalhos anteriores sobre os caminhos da reestruturação produtiva e os rumos do movimento operário-sindical no Brasil. As análises aqui desenvolvidas têm o objetivo de esboçar alguns dos mecanismos materiais e psicológicos pelos quais a exploração do sofrimento psíquico se torna um fator determinante para elevar a produtividade e os lucros empresariais e de mostrar como a própria ação sindical traz em si aspectos que contribuem para fortalecer estes mecanismos.

Se você espera encontrar aqui um texto definitivo ou uma solução mágica para a agitação e a organização, pode tirar seu cavalinho da chuva agora mesmo. As páginas que seguem buscam apenas compor a figura inicial de um grande quebra-cabeça cujas peças vieram de leituras, observações, constatações intrigantes recolhidas em centenas de atividades de formação, relatos de trabalhadores e trabalhadoras vítimas de distúrbios depressivos e inúmeras conversas informais com integrantes das mais diversas categorias. Trata-se, portanto, de um pontapé inicial rumo a uma análise mais profunda que seja capaz de compreender melhor a realidade e auxiliar os homens e mulheres que procuram organizar a classe a intervir nela de forma mais eficiente ou menos frustrante.

Para facilitar a leitura, evitamos ao máximo o uso de notas de rodapé e de citações teóricas, sem contar que, mais uma vez, lançamos mão da presença intrigante e provocadora da coruja Nádia. Suas intervenções querem transformar as páginas que seguem em convite aberto a entrar neste debate, a ajudar na reflexão sobre o presente e a aprimorar a ação de quem se esforça em construir um mundo do qual seja banida toda exploração do homem pelo homem.

São Paulo, 1º de Maio de 2009.

Introdução

alienacao-depressao6Final de tarde. O pôr-do-sol pinta o céu com uma alegria de cores que contrasta com o cinza opaco da cidade. Na volta do trabalho, as calçadas lotam de seres que, apressados, nem percebem este espetáculo gratuito da natureza. O brilho apagado de seus olhos torna invisível o que está a seu redor. O cansaço, a correria e o desejo de voltar ao aconchego do lar transformam o trajeto costumeiro numa corrida de obstáculos cujo prêmio é o merecido descanso.

Neste cenário, só as vitrines das lojas atraem olhares, despertam sonhos, reavivam invejas, antigas frustrações ou desejos cuja marcha frenética rumo ao amanhã renova o esforço cotidiano de preencher aquele vazio de ser que nenhuma mercadoria consegue satisfazer. O nervosismo, a ansiedade, o estresse e o afã dessa busca transformam a vida numa luta de todos contra todos. A disputa vai do assento no trem ao palmo de asfalto no cruzamento, da vaga no estacionamento do shopping à roupa da moda em liquidação, da promoção no trabalho à não-inclusão na lista de demitidos, da atenção dos presentes na balada às centenas de instantes nos quais entrevemos a possibilidade de garantir as migalhas de afirmação pessoal que nos permitem sair do anonimato e saborear centelhas de poder.

Esse estado de espírito não admite pensamentos negativos, mede criteriosamente cada miligrama de solidariedade, faz do vencer na vida o objetivo prioritário da dedicação ao trabalho, condena como indolentes as vítimas da miséria e não titubeia em apoiar a repressão pura e simples diante da violência que ameaça suas posses. Focados em objetivos individuais, os olhos já não conseguem ver a injustiça, o coração não se indigna diante da seqüência de acontecimentos que marcam a realidade e a cabeça simplesmente faz o corpo ir do outro lado da rua para não ver o homem que escreveu no abrigo de papelão o seu apelo desesperado: “Preciso de emprego urgente”.

Mas a realidade nua e crua teima em trazer de volta os fantasmas que procuramos afastar e cujas simples lembranças projetam sombras de incerteza sobre o futuro que sonhamos. Diante dela, o jeito é não ver, se convencer de que isso não acontecerá com a gente e, se possível, procurar até mesmo não nomear as desgraças, pois, afinal, estamos convencidos de que essas coisas pegam.

Preso neste turbilhão de pensamentos e sensações, um homem se aproxima cabisbaixo da porta de casa, leva as chaves até a fechadura e com gestos frenéticos vence o último obstáculo que separa o seu sossego do mundo circunstante. O desejo de esquecer a luta diária entre a ansiedade e o temor da frustração leva o corpo até o sofá enquanto o lento pestanejar dos olhos busca entregar ao sono a longa lista de desejos, esperanças e razões de sofrimento.

Apoiada na janela da sala, uma coruja acompanha cada gesto sem que o humano perceba sua presença. Um rápido piscar de olhos e um longo suspiro preparam o caminho às palavras com as quais rompe o silêncio que embala o torpor de quem parece partilhar com ela momentos de vivência diária:

– “Hoje você demorou…”, diz em tom de quem busca puxar conversa.
– “Hoje…ontem…e a semana toda!”, retruca o homem ao virar-se de costas como quem não quer ser incomodado. “A cidade está cada dia pior. É coisa de louco”, arremata sem abrir os olhos.
– “As pessoas não sabem que estão doentes”, sussurra a coruja ao não se dar por vencida.
– “Já sei, Nádia, é poluição…muito trabalho…aborrecimentos…correria e por aí vai…”.
– “Engano seu, querido secretário. A loucura que toma conta de cada um vem de um vírus que se chama solidão e pode ser transmitido em qualquer momento da vida diária”, rebate a ave sem alterar o tom de voz.
– “Solidão!?! Em meio a milhares de criaturas nas quais você tromba sem querer?!? Você só pode estar louca!”, afirma o homem em tom visivelmente irritado.
– “A solidão à qual estou me referindo não é um sentimento passageiro que atravessa a vida deste ou daquele indivíduo. Longe de ser um estado de espírito casual – esclarece a coruja ao espetar o ar com a ponta da asa -, a solidão é o resultado de uma longa série de ações, situações e realidades, paciente e sistematicamente criadas pelos donos do poder. Ao multiplicar-se e entrelaçar-se dentro e fora dos locais de trabalho, elas proporcionam o aumento da exploração e a redução das possibilidades de resposta individual e coletiva de quem está sendo sugado, ao mesmo tempo em que lhe dão a sensação de trilhar o caminho certo de sua realização pessoal”.

Intrigado, o homem senta, coça a cabeça e, ao bocejar, deixa os lábios soltarem um “Quer dizer que…”, tão inesperado quanto comprometedor.
– “Quer dizer que posso explicar à sua cabeça de vento o que a ela passa desapercebido apesar de estar diariamente debaixo das grossas lentes de seus óculos!”, afirma Nádia sem fazer cerimônias.

Entre a curiosidade e o desconcerto, o secretário levanta e senta à mesa com ar de quem desafia seu oponente a convencê-lo de algo insólito e inusitado. Instantes depois, arruma as folhas de rascunho e emite sinais típicos de quem, apesar de contrariado, se dispõe a ouvir.

Com as asas cruzadas atrás das costas, Nádia se movimenta entre os livros e revistas que forram o lugar onde suas palavras ganharão cor e forma acessíveis aos humanos. Ao perceber que já pode dar início ao relato, pára e, com voz decidida, assinala:
– “O melhor caminho é começar pelas mudanças que cercam até mesmo quem, no início dos anos 90, tem a sorte de continuar empregado. Por isso, nosso primeiro capítulo vai abordar os aspectos que marcam a passagem entre…”

1. O fim dos projetos e o fortalecimento das ilusões

– “O capitalismo dos anos 90 – diz a coruja ao apoiar o queixo na ponta da asa – ganha um precioso aliado na queda do Muro de Berlim, ocorrida alienacao-depressao5em 1989. Fruto do avolumar-se dos problemas econômicos, políticos e sociais alimentados pela corrida armamentista dos anos da Guerra Fria e pelas contradições que se desenvolvem em seu interior, a derrocada dos países do chamado ‘socialismo real’ abre as portas de um novo período da história mundial.

Diante dos escombros da antiga União Soviética, os Estados Unidos começam a trabalhar a idéia de que o ‘Império do Bem’ foi capaz de vencer as forças contrárias à democracia, à abertura dos mercados, à competição sem fronteiras e ao progresso baseado na livre iniciativa, tidas como alicerces do desenvolvimento e do bem-estar do primeiro mundo”.

– “Mas, como é possível afirmar isso quando a própria realidade estadunidense se revela incapaz de resolver o desemprego, a miséria, a falta de assistência social e a discriminação que marcam presença em seu território?”, questiona o secretário ao interromper bruscamente o relato.

– “Simples!”, responde a ave sem alterar o tom de voz. “Ao ter no Leste Europeu, na China e em Cuba os pontos de referência sobre os quais travar o debate das idéias, a maioria dos grupos da esquerda mundial vê a queda do Muro de Berlim como o atestado de óbito dos países que, em épocas e formas diferentes, traçaram, corrigiram e orientaram seus planos de ação. Transformados em órfãos, setores consideráveis que, até ontem, haviam defendido a luta pelo socialismo em suas plataformas políticas, começam agora a renegá-lo, a se desfazer dos teóricos que haviam inspirado suas intervenções anteriores e a abandonar a luta ideológica contra o sistema capitalista.

A chamada ‘esquerda madura’ que nasce deste processo não é a que aponta os problemas e as contradições do capital enquanto aprimora as formulações de um novo projeto de mudança, mas sim a que aceita as regras do livre mercado como limite natural no qual pensar e desenvolver sua ação garantindo apenas um cuidado maior na sugestão das medidas que podem amenizar as conseqüências sociais do capitalismo. Ao tirar o time de campo, a grande maioria dos ex-defensores do socialismo deixa que a elite ocupe todos os espaços e faça de sua interpretação dos acontecimentos a única explicação racional das mudanças em curso. Economistas, sociólogos e intelectuais a serviço dos poderosos têm assim todo o espaço possível para mostrar que a derrota do ‘socialismo real’ é a prova cabal de que só no sistema capitalista podemos ter o melhor dos mundos possíveis e que, portanto, no lugar de ficar criticando o sistema, trata-se de aproveitar plenamente as possibilidades que este oferece.

alienacao-depressao4Neste contexto, o indivíduo ganha uma posição de destaque maior do que a que tinha antes, é apresentado como responsável exclusivo pelo seu sucesso e vê o esforço pessoal como a única arma capaz de assegurar sua empregabilidade e afugentar o medo de concorrer com os demais. Sem pudor algum, o ‘eu’ toma o lugar do ‘nós’ na vida diária e começa a derreter o sentido das preocupações coletivas que haviam sustentado longos processos de luta nas décadas anteriores.

O clima no qual ocorrem as mudanças é ditado pela intensa disputa dos mercados mundiais tanto no que diz respeito à produção de bens e serviços, como à sua comercialização. Longe de colocar a vida da humanidade no centro das preocupações coletivas, a busca do lucro sem limites se credencia como o norte exclusivo que orienta todas as bússolas num cenário de guerra econômica que vai da estrutura do Estado à organização do trabalho. Vencer esta guerra com as armas da eficiência e da competitividade é apresentado ao povo simples como o objetivo central, como a meta capaz de garantir à nação um lugar no mundo desenvolvido, de proporcionar a multiplicação dos investimentos e, com ela, a geração de empregos e rendas crescentes.

No vórtice criado pela nova ordem mundial, políticos e intelectuais de todas as tendências não se cansam de repetir que ninguém pode titubear diante das medidas que se fazem necessárias. O Estado tem que ficar enxuto, privatizar suas atividades e abrir caminhos para que antigos benefícios sociais sejam progressivamente reduzidos ou eliminados. Jovens mal-preparados, idosos, trabalhadores experientes que conheceram os enfrentamentos do passado, e são portadores de uma tradição de luta, devem ser demitidos das empresas para deixar o lugar aos que são considerados aptos para os combates dos novos tempos: os que, querendo ser vencedores, não poupam sacrifícios para melhorar seu desempenho profissional com disciplina e abnegação.

O sofrimento humano causado pelas demissões é encoberto por expressões que apresentam as medidas implementadas como algo saudável. Ninguém admite estar jogando no olho da rua pais e mães de família que precisam do emprego para sobreviver, mas sim estar promovendo um asséptico ‘enxugamento dos quadros’, uma ‘eliminação dos excedentes’, uma ‘remoção dos excessos de gordura’, uma ‘arrumação da casa’, uma ‘revisão das qualificações’, um processo que garanta a ‘saúde das empresas’, um ‘balanço de competências capaz de eliminar empregados desmotivados e improdutivos’ ou, ainda, uma ‘requalificação profissional que proporcione produtividade e satisfação aos colaboradores’. Aparentemente, trata-se de uma ‘causa justa’ na medida em que os esforços coletivos destinam-se a resistir aos ataques dos concorrentes e a garantir os lucros necessários para investir, distribuir dividendos e manter o maior nível de emprego possível. Uma situação, portanto, na qual os fins justificam os meios.

A linguagem do capital transforma o trabalho sujo de demitir gente em algo sadio, desejável e aceito pelas ‘pessoas de bem’ que até ontem se revoltariam diante de uma lista de demissões. A percepção das conseqüências reais da nova ordem econômica se turva, se apaga, fica anestesiada entre o que os olhos já não vêem e o sonho de sucesso projetado para um futuro sem data marcada. Os novos empregados sentem orgulho de terem sido ‘escolhidos’ entre milhares, de pertencer aos quadros de uma empresa que lhes promete salário, carreira e realização pessoal vinculados a regras claras que ‘só’ dependem de seu compromisso com os projetos empresariais.

Ainda que em graus, formas e ritmos diferenciados, estas idéias começam a se generalizar, a ganhar espaço na mídia, a usar a palavra dos próprios trabalhadores para negar manifestações contrárias ou simplesmente para reafirmar o acerto das novas orientações. A democracia e o diálogo são bem-vindos somente quando suas expressões levam água ao moinho que vai triturar as manifestações da subjetividade e da identidade coletiva que, até ontem, haviam proporcionado níveis de dignidade suficientes para rejeitar abusos e desmandos.

No silêncio dos que se levantavam para protestar, a elite molda o seu novo consenso social. Tudo parece tão limpo, bem-intencionado e natural que se opor a estas mudanças soa tão absurdo quanto pedir a revogação da lei da gravidade. Pouco a pouco, a consciência começa a ignorar a extensão dos problemas, a receber com incredulidade as denúncias que buscam desvendá-la, a não perceber que o mal se banaliza e a chamar de loucura a simples possibilidade de pensar uma sociedade diferente da atual.

Aliados ao silêncio e à inércia da esquerda, a resignação de uns e o sucesso de outros fazem com que os olhos se acostumem a ver com naturalidade o crescente número de indigentes, moradores de rua, crianças abandonadas e ambulantes que disputam as calçadas onde antes só circulavam pedestres. Neste cenário, a cabeça apóia que a violência seja combatida apenas com a violência, pois esta é vista prioritariamente como fruto da maldade individual que, longe de batalhar ‘o seu’ suando a camisa, opta por ameaçar o que os demais conseguiram juntar. E o coração, ao condenar sumariamente a miséria como resultado da indolência e da acomodação, deixa de se indignar diante do sofrimento alheio. Quando uma tragédia se encarrega de desmascarar a mentira que permeia o cotidiano e sacudir as novas convicções, o senso comum das maiorias se defende dizendo que se trata de uma fatalidade, de um acidente, do resultado de causas externas imprevisíveis ou, mais simplesmente, se esconde por trás de um ‘eu não sabia que era assim’ tão ingênuo quanto desolador.

Enfim, ao se fecharem em si mesmas, as pessoas não vêem que estão deixando de fazer história, que a injustiça contra o mais pequeno é uma ameaça que paira sobre as cabeças de todos e, sem perceber, embarcam alegremente na viagem cujo destino final é o matadouro…”, conclui Nádia em tom nada animador.

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– “E, no Brasil, as coisas andam pelo mesmo caminho?”, cutuca o homem entretido em escrever as últimas palavras do relato.
– “Mergulhado nas mudanças que tomam conta do planeta, o nosso país começa a década de 90 com um plano de combate à inflação que tem na abertura do mercado, no confisco do dinheiro e no arrocho salarial as armas com as quais o governo entra na guerra econômica e promete que os sacrifícios resultantes vão levar a nação ao primeiro mundo. As medidas implementadas por Fernando Collor de Mello paralisam a produção e introduzem a classe trabalhadora no cenário sombrio da precarização do trabalho e do desemprego de longa duração. Com pequenas variações, esta situação se mantém inalterada até 2004. Ainda que a inflação fique mais comportada, o baixo crescimento da economia é incapaz de gerar vagas suficientes até mesmo para os jovens que ingressam oficialmente na População Economicamente Ativa e a luta por um ganha-pão força um número crescente de trabalhadores e trabalhadoras a abrir mão de direitos básicos para ter acesso a condições mínimas de sobrevivência.

alienacao-depressao3Entre 1984 e 2004, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE) calcula que na região metropolitana de São Paulo, a mais industrializada do país, o contingente de desempregados aumenta 135% e, no fim deste período, o salário médio equivale a 52% do valor que tinha em 1985 [1]. Nas demais capitais as coisas não são diferentes e os institutos de pesquisa se vêem obrigados a alterar seus critérios para esconder os números reais do amplo contingente que alimenta o que, em seguida, será assepticamente chamada de ‘informalidade’.

– “Isso deve ter deixado todo mundo com medo!”, conclui o secretário na tentativa de apressar os tempos.
– “Pode apostar que sim”, confirma a ave calma e pausadamente. “Mas esta situação apavorante não é o único aspecto que vai atormentar a classe trabalhadora.

Acontece que, devido à sua extensão, não há família que consiga escapar de um contato direto ou indireto com o desemprego. Através de amigos, vizinhos, parentes ou na própria pele, as pessoas constatam não só a elevação da angústia e do medo do futuro como tocam os próprios efeitos que a falta de trabalho provoca nas pessoas.

Em grau maior ou menor, trabalhadores e trabalhadoras percebem que o desemprego vai tirando do indivíduo o controle sobre a vida, as decisões e os planos para o futuro. A ausência de perspectivas se soma à perda dos pontos de referência que, até ontem, disciplinavam a vida cotidiana. Na dificuldade de pilotar a própria existência em meio à insegurança, tudo parece dar errado ou não levar a nada. Aos poucos, os sentimentos de frustração, de falta de proteção e de desconfiança tomam conta dos desempregados, começam a afastá-los da convivência com os demais e apagam a capacidade de discernir até a que ponto as causas da situação atual devem ser atribuídas às relações sociais existentes e não à incapacidade individual.

Mas isso não é tudo. Ao perceber a diferença entre sua realidade e os casos de pessoas bem-sucedidas à sua volta, quem perdeu o emprego começa a se ver como alguém cujo espaço no convívio social vai se fechando de forma inexorável. A falta de dinheiro lhe impede de pertencer ao grupo com o qual se relacionava. O progressivo isolamento que se instala aumenta o seu sofrimento toda vez em que ele compara o que era com o que é, a imagem ideal que tinha de si mesmo com sua condição real, e isso reforça sentimentos de inferioridade, abandono, marginalização e solidão.

Degrau a degrau, as dificuldades econômicas atingem a dignidade, minam os antigos valores, levam a atitudes agressivas e ao desejo de esquecer a realidade, de fugir dela, ora através da bebida, ora das drogas, como caminho rápido para sair da angústia e do sofrimento. Mesmo quando o desempregado não percorre as vias do alcoolismo ou do consumo de narcóticos, o seu desgaste como ser humano aumenta na exata medida em que a falta de trabalho altera o sentido e o significado do tempo. Para ele não há mais diferença entre dias de trabalho e de descanso, dias de labuta e de festa, mas o tempo inteiro se apresenta a ele como um enorme vazio no qual só lhe resta repetir de forma desorganizada algumas atitudes, gestos, condutas que, em geral, levam a idealizar o passado, reduzem o presente a uma desgraça sem fim e elevam o medo do futuro. A sensação de frustração e fracasso que toma conta da sua vida costuma ter como meta intermediária a resignação, a apatia e a inibição. De tanto apanhar da vida, já não tenta nada e, quando pensa em fazer algo, dá por pressuposto que tudo dará errado e passa a aceitar como uma sina o que antes era inaceitável.

Diante do espírito competitivo que permeia cada instante da vida em sociedade, o desemprego prolongado leva a pessoa a se convencer de que mais do que uma vítima da realidade econômica e política do país, a sua situação é o resultado do fracasso pessoal. Expressões como ‘não soube ficar no emprego’, ‘não sirvo nem para achar trabalho’, ‘sou mesmo um inútil’, ‘nem consigo dar conta de comprar um brinquedo para meus filhos’, revelam de forma simples e direta que o sentimento de culpa e de autodesvalorização estão ocupando o lugar de qualquer avaliação mais serena da situação real”.

– “Bom, Nádia, mas, como eu dizia, isso joga lenha na fogueira do medo de perder o emprego!”, conclui o homem com um gesto que sublinha o acerto de sua intervenção anterior.
– “Aparentemente, sim – retruca a ave ao sentar na beira de um livro que sai da pilha no centro da mesa. Mas, se olhamos com mais atenção, percebemos que a elevação do desemprego prolongado ao longo dos anos 90 faz o sistema capitalista se beneficiar de comportamentos que, aos poucos, irão ganhando corpo e forma”.
– “Já sei: mais desempregados é igual a mais precarização do trabalho, maior ritmo de produção para quem fica nas empresas, menos salário e assim por diante…”.
– “Estas são as conseqüências mais visíveis, mas há outras que passam desapercebidas apesar de serem tão insidiosas quanto as primeiras”.

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alienacao-depressao2Como já vimos, na medida em que longos períodos sem emprego se tornam cada vez mais comuns, o isolamento em relação aos demais e a frustração que marcam as tentativas de voltar à ativa levam centenas de milhares a se culparem pelo próprio desemprego. Ou seja, além de pressionar trabalhadores e trabalhadoras a se esfolar cada vez mais para garantir sua vaga na empresa, a leitura que o indivíduo faz do desemprego o induz a absolver a organização da sociedade de suas culpas e a se ver como único responsável de sua empregabilidade.

Por outro lado, na medida em que as dificuldades econômicas tiram das vítimas do desemprego qualquer chance real de reconhecimento social e [as levam] a vivenciar a terrível sensação de não ter futuro, quem continua empregado agarra-se ao que pode para se sentir gente e ter algo que lhe ofereça a possibilidade de se sobressair entre as pessoas com as quais convive”.

– “Mas como isso é possível se a piora da situação econômica leva a vislumbrar a chance de subir na vida como algo bem mais difícil e distante?”, rebate o secretário ao não se dar por vencido.
– “O que seu cérebro avantajado não entende é que o sistema capitalista é capaz de desenvolver meios para suprir momentaneamente esta falta e até mesmo para acirrar o desejo numa situação que inibe objetivamente a capacidade de consumo”.
– “Você poderia ser um pouco mais clara…?!?”

– “Ninguém duvida que, diante dos seguidos cortes de funcionários e de uma rotatividade que, a cada ano, atinge no Brasil cerca da metade da força de trabalho empregada, a primeira reação de quem se mantém no posto já conquistado pode ser resumida na expressão ‘antes pingar do que secar’. Em outras palavras, as pessoas têm a percepção de que estão sendo exploradas e o serão ainda mais, mas por ruim que seja, preferem isso ao pesadelo de vir a ser um ‘sem futuro’ através do desemprego. Ganha-se pouco, é verdade, mas ‘ainda dá pro gasto’. Vive-se ‘no aperto’, porém é ainda possível se conceder pequenas coisas que diferenciam o sujeito dos demais. A situação ‘tá difícil’, mas, de prestação em prestação, ‘dá pra ter as coisas’. Come-se ‘o pão que o diabo amassou com o rabo’, mas come-se.

Neste processo, o desemprego alheio fortalece a percepção de que se o indivíduo quer ser reconhecido e respeitado é necessário que ele se torne alguém ou tenha algo capaz de fazê-lo sair do anonimato, de lhe dar status tanto quanto basta para as pessoas o reconhecerem como ‘o tal’. Quando as condições de vida impedem de ser famoso, de ter uma profissão à altura dos próprios sonhos ou de ser alguém respeitado no próprio meio pelos valores e a ética que acompanham o envolvimento com os demais, é sempre possível buscar um mínimo de reconhecimento através do que se tem ou se pode consumir. Daí o tênis e a camiseta de grife (ainda que falsificados), aquele celular incrementado, a televisão que desperta a inveja da vizinhança e a longa lista de pequenas e grandes coisas que têm o poder mágico de atrair sobre o indivíduo as reações que o identificam como ‘alguém que conseguiu’, que o diferenciam dos demais, que dão o gostinho de ser mais pelo fato de ter mais.

Transformar o sonho em consumo realizado vira uma espécie de prótese do prazer, que ajuda a ser o que as condições reais negam, que levanta a auto-estima, muda relações e sentimentos, realiza fantasias, fortalece a vaidade, faz sofrer e se regozijar ao ampliar ainda mais os sonhos e a própria imaginação. Enfim, ao adquirir o objeto dos desejos, é como se o sujeito estivesse comprando um pedacinho de sua personalidade, a parte de algo que o faz parecer o que não é, mas que, através do reconhecimento alheio, proporciona instantes da gostosa sensação de poder.

Contudo, o desejo de continuar sendo objeto de admiração depende diretamente do próprio trabalho. A mercadoria que faz esse sonho se tornar realidade precisa do salário e a possibilidade de comprar novas e mais sofisticadas próteses do prazer é marcada pela necessidade de manter o emprego a qualquer preço. Sob o duplo estímulo do medo e do sonho, o empregado vai se concentrar cada vez mais na execução das tarefas, evitar erros, apontar falhas dos demais, acelerar o ritmo para mostrar que ele merece o posto que ocupa, fugir de tudo que pode colocar em risco a realização de seus desejos e se dedicar ao trabalho em tempo integral. Para ficar na firma, vale qualquer coisa: fazer horas extras, disputar prêmios de produção, engolir sapos cada vez mais gordos, prejudicar colegas, ser conivente com as injustiças e as arbitrariedades, ‘ficar na sua’ mesmo quando está prestes a explodir e se dispor a anestesiar seguidamente a própria indignação e os sentimentos de justiça.

Se o que importa é o emprego, o negócio é lutar até o fim, não contra os patrões, mas sim contra os colegas cujos desempenhos, idéias ou pretensões ameaçam a estabilidade do sujeito e podem reduzir ao pó seus sonhos e aspirações.

Pouco a pouco, a simples presença do dirigente sindical na portaria da empresa torna-se um incômodo. Seus convites a aderir à campanha salarial ganham as feições de uma ameaça indireta ao que se procura preservar e seus apelos ao sentimento de coletividade passam a ser percebidos como algo do qual vale a pena desconfiar. Na cabeça do senso comum, um salário maior proporciona sim sonhos mais altos, mas este teria que vir pela empresa, como reconhecimento da dedicação pessoal e não por um processo de enfrentamento com ela cujo desfecho é crivado de incertezas.

A ausência de envolvimento com o coletivo faz o indivíduo se dobrar cada vez mais sobre si mesmo. Um após o outro, os laços de confiança recíproca se rompem deixando campo aberto para que a competição ocupe o lugar que era da cooperação. Ao transformar o outro em concorrente, o sujeito começa a se familiarizar com a idéia de que sua permanência na empresa depende da sua capacidade de vencer desafios, de ser sempre o melhor, de fazer mais, ou, pelo menos, tanto quanto basta para não ficar para trás e derrotar assim os competidores mais fracos.

À diferença do passado recente em que a batalha de idéias e projetos no seio da classe trabalhadora deixava a entender que as necessidades pessoais só encontrariam uma resposta plena na superação coletiva das injustiças e na criação de uma nova sociedade, os anos 90 vão esmigalhando esta percepção a ponto de banalizar as pequenas afrontas do cotidiano em nome da esperteza e da afirmação do indivíduo, mesmo quando isso implica em prejudicar e marginalizar quem o coração reconhecia, até ontem, como colegas e companheiros.

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Além da propaganda, das formas de comportamento e das idéias reafirmadas exaustivamente pela mídia, do progressivo barateamento das mercadorias que alimentam novos sonhos de consumos e do culto à exterioridade promovido nos mais variados aspectos da vida em sociedade, a possibilidade do desejo não virar frustração tem no crédito pessoal um poderoso aliado. ‘Compre hoje e comece a pagar daqui a dois meses!’. ‘Tudo em 20 prestações sem entrada!’. ‘Pegue dinheiro sem comprovação de renda!’. ‘Você já tem o cartão da nossa loja?’. E mais, crédito consignado, pré-aprovado, cartão de crédito e as demais formas de empréstimo fazem com que, apesar do arrocho, o trabalhador tenha ao seu alcance um arsenal de possibilidades imediatas que lhe permite realizar do sonho de consumo ao impulso do desejo ao mesmo tempo em alienacao-depressao81que amarra o próprio pescoço à pesada corda das dívidas contraídas, cujo aperto o obriga a trabalhar cada vez mais. Cria-se assim uma espiral vertiginosa que engole a base da pirâmide social num processo pelo qual ela se esfola o dia inteiro só para pagar o fruto de sua tentativa de ser o que não é”.

– “O que você acaba de descrever não deixa de gerar novas situações de sofrimento na vida das pessoas. Então, por que elas não reagem?”, questionam os lábios ao procurar entender um comportamento aparentemente contraditório.
– “Elementar, querido humano de olhos pequenos e vista curta – responde a coruja ao levantar a asa esquerda. De imediato, você não pode esquecer que as mudanças em curso na sociedade negam o coletivo, que na fase anterior apontava para a necessidade de romper a ordem social existente, e apresentam o indivíduo como sujeito e construtor exclusivo das condições do próprio reconhecimento social.

Há, porém, um outro aspecto igualmente importante. Trata-se do papel contraditório que o sofrimento assume já no início dos anos 90. Em primeiro lugar, as pessoas comuns começam a experimentar um sentimento de vergonha que nasce espontaneamente diante do crescente número de desempregados. Colocado frente a frente com o agravar-se da pobreza e da miséria, quem tem emprego e salário sente-se e passa a ser visto como um privilegiado. Não é que agora a empresa deixou de sugar o seu sangue, mas é que se fortalece no sujeito a estranha satisfação de saber que ele serve ao menos para ser explorado. Espremido entre o medo de perder o emprego e a vergonha de queixar-se diante de quem está pior, o trabalhador coletivo começa a reduzir a discussão sobre o que lhe causa sofrimento no ambiente de trabalho e se predispõe a agüentar mais e a se queixar menos diante das mudanças que começam a se instalar nos processos produtivos.

Esta atitude ganha um poderoso aliado no risco de demissão que ronda todos os setores da economia com boatos, planos de demissões voluntárias ou listas de dispensas do dia. A vergonha de revelar o próprio sofrimento no trabalho soma-se, então, ao medo de que as expressões verbais deste mesmo sofrimento sejam interpretadas como sinal de exaustão e sirvam para as chefias indicarem os próximos a serem despedidos. Nesta primeira fase do processo que leva trabalhadores e trabalhadoras a se policiarem diante da verbalização do seu sofrimento e a aumentarem o nível de tolerância ao mesmo, registramos uma quase completa ausência do movimento sindical no tratamento desta atitude contraditória. De um lado, a não inserção nos locais de trabalho e, de outro, a histórica não priorização das agressões à saúde como um dos caminhos pelos quais a exploração se manifesta através da relação doença-trabalho, impedem de perceber os mecanismos subjetivos que tendem a ampliar o distanciamento entre as direções e as bases que estas dizem representar.

Mas isso não é tudo. Na medida em que o trabalhador coletivo vê os crescentes níveis de informalidade e desemprego como ameaça constante, quem tem carteira assinada passa para um novo patamar. Além de lutar contra a expressão pública do seu sofrimento, cada funcionário tende a reduzir sua disponibilidade e tolerância diante das emoções e sentimentos nele despertados pela simples percepção do sofrimento alheio.

Mais do que de uma falta de sensibilidade, trata-se aqui de uma forma de defesa pessoal. O que acontece com os demais pode acontecer com ele. Se eles não agüentam, ele também pode sucumbir. E como isso representaria o fim de todos os sonhos, o senso comum prefere escolher o esquecimento no lugar de enfrentar a realidade que teima em elevar a sua angústia diante do futuro. A amnésia voluntária diante dos acidentes, da estafa, e dos distúrbios psicossomáticos que vitimam os colegas funciona como uma espécie de vacina diante da possibilidade da dor alheia vir a elevar a sensação de insegurança já presente no indivíduo em função da percepção do próprio sofrimento. Pior, a indiferença que aos poucos vai ganhando corpo não se limita a servir de barreira destinada a conter este âmbito de emoções e de reações, mas se estende aos elementos que estão na origem do próprio sofrimento dentro e fora dos locais de trabalho”.

***

– “Você não está querendo dizer que, além de começar a ver com naturalidade o desemprego e a informalidade, trabalhadores e trabalhadoras perdem a capacidade de se indignar diante do ritmo exigido e das mudanças nos processos produtivos que prometem levá-los ao seu futuro esgotamento?!?”, prorrompe o secretário assustado diante desta possibilidade inesperada.

Ciente de que suas palavras têm o efeito de uma bordoada numa caixa de marimbondos [vespas], Nádia deixa que instantes de silêncio fortaleçam o ambiente de reflexão mantido até o momento. Vagarosamente, deixa o assento improvisado e se aproxima do homem que permanece imóvel à sua frente. Ao apoiar a asa no seu ombro direito, diz:
– “Acalme-se e trate de registrar com cuidado as passagens que estamos elaborando. Em primeiro lugar, vale a pena resgatar o fato de que a indignação e a revolta não são reações automáticas diante da miséria e do sofrimento. Elas não costumam se manifestar, por exemplo, diante de um terremoto [terramoto], de uma doença incurável ou de condições sociais que pareçam impossíveis de serem modificadas. Mas é inegável que começamos a sentir um fogo ardendo no peito e ficamos furiosos quando percebemos que estas mesmas condições poderiam ser mudadas e não o são. Ou seja, só reagimos com indignação quando percebemos, ou alguém nos faz perceber, que nosso mais elementar sentimento de justiça foi pisoteado, enfim, quando o que acontece ao nosso redor é lido como uma injustiça que fere a dignidade e exige uma atitude de rejeição.

alienacao-depressao9O problema é que não basta sermos pessoalmente vítimas da injustiça para ter reações desse tipo. Nos anos 90, as pressões e o ritmo de trabalho tornam-se literalmente infernais, mas poucos se revoltam, menos ainda são os que adotam ações prolongadas de resistência, ao passo que a grande maioria procura agüentar. A diferença com as épocas anteriores está num elemento do qual já falamos: o individualismo exacerbado nas próprias relações entre os colegas.

No passado, as manifestações de descontentamento (pouco importa se abertas ou vivenciadas ‘na moita’), gestavam a consolidação de uma identidade coletiva baseada em idéias, valores e atitudes que, aliada à percepção da injustiça, constituíam o motor de toda resposta ao avanço da exploração do trabalho. A maior parte destas reações não estava baseada na consciência de classe, mas sim na convicção de que a exploração havia passado dos limites e a dignidade ferida levava a práticas de resistência que costumavam parar quando as coisas voltavam ‘ao normal’. Apesar de limitadas, estas posturas contribuíam à construção de um espírito de coletividade e de sentimentos de indignação que a ação da militância de base fazia evoluir para algo mais consistente em termos de organização, ação e percepção da realidade. Mas, com o indivíduo em primeiro plano, qualquer adesão mínima às propostas coletivas passa pelo rígido crivo do atendimento prioritário das demandas do sujeito que, diante da insegurança na manutenção do emprego, prefere responder às conseqüências nefastas do sistema com sentimentos de piedade e comiseração do que com uma participação efetiva na rejeição da injustiça que está debaixo de seus olhos.

Estas breves reflexões permitem visualizar apenas parte dos mecanismos pelos quais o sofrimento no trabalho começa a levar um número significativo de empregados a considerar natural, normal e ético não só o afastar-se do sofrimento alheio como até mesmo o infligir ou aumentar a dor dos próprios colegas. Diante das ameaças de marginalização que permeiam os ambientes em que vivem, o jeito não é enfrentar, mas sim afastar de si todo elemento que venha despertar a consciência dolorosa de que a própria falta de reação tem certo grau de colaboração e responsabilidade no agravamento das adversidades e dos problemas coletivos. Na medida em que esta atitude alimenta o conformismo, a resignação ou o consentimento em aderir ao sistema de exploração, e em que a inserção no local de trabalho e a organização de base deixam de ser a preocupação real dos sindicatos, trabalhadores e trabalhadoras se fecham em si mesmos, vão perdendo sua confiança nas possibilidades da luta, buscam com afinco o que pode dar respostas imediatas aos seus desejos de consumo e se contentam em conseguir algo que, ao proporcionar algum reconhecimento social, acabe ajudando a tolerar o intolerável.

Este percurso tortuoso ganha dois aliados. O primeiro deita raízes na ação capilar dos meios de comunicação. Para manter a situação sob controle e canalizar o descontentamento social para o que favorece a reestruturação e o aprimoramento do sistema, rádio, tv, jornais e revistas se encarregam de reafirmar que as medidas econômicas implementadas pelo governo são necessárias para evitar que a situação fique ainda pior e que a ‘globalização’ impõe desafios perante os quais o país não pode seguir outro rumo a não ser o de nadar de acordo com a correnteza. Tudo é apresentado como obra do acaso ou de relações que não dependem da vontade das pessoas. Não há culpados pelos estragos e suas vítimas, além de não conhecer o rosto dos responsáveis, acabam no banco dos réus por suas atitudes e sentimentos de revolta.

O segundo aliado é totalmente inesperado. Incapazes de esboçar respostas consistentes, inúmeros sindicatos apresentam as mudanças em curso como algo natural, inevitável, já aplicado no primeiro mundo, enfim, como medidas perante as quais não há o que fazer, como reagir, mas, no máximo, buscar o mal menor. As poucas e honrosas exceções que ferem o consenso das maiorias apresentam suas reflexões com uma linguagem incompreensível ao trabalhador coletivo, atordoado entre os sonhos e a dura realidade. Isso ocorre porque, de um lado, a denúncia é feita com expressões que podem ser entendidas somente pelos que convivem com aquelas organizações políticas e, de outro, porque não há ações conseqüentes e capazes de reverter as mudanças em curso. O resultado é que a forma com a qual se tenta agitar e mobilizar o local de trabalho contribui mais para elevar o medo do desemprego e acelerar os mecanismos de defesa que levam à ausência de reação do que para colocar as pessoas em movimento. No fim, a luta pelo ‘posto’ de trabalho passa a ocupar um lugar de destaque tanto para os trabalhadores quanto para os sindicalistas”.

– “Agora só falta dizer que até os jovens recém ingressados nas empresas passam por isso?!?”.
– “Na mosca! Além deste setor da população não ser alheio ao impacto dos mecanismos já descritos e raramente ter experiência de luta e organização, o jovem só entra com carteira assinada depois de passar por momentos terríveis. Horas de pé numa fila que dá a volta ao quarteirão, uma seleção rigorosa do currículo pela gerência e uma entrevista com psicólogos cujas perguntas traiçoeiras medem o grau de motivação, a disposição para um compromisso sério com a empresa e o gosto pelo esforço, pela superação e pela disciplina são apenas as etapas iniciais que levam à possível admissão do candidato.

Superada esta barreira, é a vez dos testes que avaliam a competência profissional. Uma vez admitido à fase de experiência, o sujeito passa pelo treinamento que, nas médias e grandes empresas, não é mais proporcionado pelos trabalhadores mais experientes, mas sim pelos que já exercem algum cargo de chefia. Longe de ter acesso a macetes, dicas de comportamento defensivo e transmissão inicial da identidade coletiva de resistência, o novato depara-se agora com a comunicação e a prática dos procedimentos prescritos, com posturas que reafirmam o fato dele ter sido escolhido por ser um dos melhores e com um tratamento que procura transformá-lo em militante do capital. Cabe a ele não decepcionar as expectativas daqueles que lhe concedem o ‘privilégio’ de acolhê-lo entre seus membros e assegurar sua permanência na empresa com toda a sua garra, seu anseio de realização pessoal e sua dedicação no cumprimento das metas desejadas.

Após esse calvário de ansiedades, dúvidas, incertezas e tensões de todos tipos, começa o primeiro dia de trabalho. Desejoso de mostrar serviço, nosso jovem aceita tudo sem regatear. Ao mesmo tempo, porém, começa a ser perseguido por uma angústia inquietante: ele entrou para substituir quem foi demitido, logo, se fraquejar, a próxima cabeça a rolar será a sua. Entre o desejo de assegurar algo mais do que a sobrevivência e o pesadelo da demissão, não lhe restam mais do que três opções: 1. Recusar a se submeter, fazer corpo mole e, de conseqüência, ser despedido; 2. Superar as expectativas (que, além do esforço para atingir as metas exige espírito de liderança e capacidade de passar por cima dos próprios princípios éticos) na secreta esperança de vir a ocupar cargos de chefia que deixem para trás o posto ocupado quando do ingresso na empresa; 3. Manter um autocontrole sobre o corpo e as emoções capaz de garantir o equilíbrio possível entre os sonhos de reconhecimento social e a execução das tarefas estafantes que são exigidas.

Some agora estas reflexões à realidade que apresentamos anteriormente e verá que, como os demais empregados, os novatos se deparam com a repetição exaustiva deste mantra: ‘Você é o único capaz de garantir sua empregabilidade!’. Sendo assim, a causa do desemprego é vista e incorporada cada vez mais como responsabilidade do indivíduo (que não tem atitude ou não se esforça o suficiente) e não como peça essencial de um sistema que almeja lucros cada vez maiores e tem nela um aliado imprescindível. Novamente, o sofrimento gerado nas relações que se estabelecem dentro e fora dos locais de trabalho tende a ocultar os mecanismos que, em grau maior ou menor, irão encurralar o indivíduo entre a submissão e a adesão ativa à lógica de exploração presente na sociedade.

– “Então, se não entendi errado, é com esse tipo de atitudes que a classe trabalhadora passa a fazer a leitura das mudanças que ocorrem nas empresas?”.
– “Exatamente, meu caro! Mas este é um assunto que exige uma reflexão maior. Por isso, vou tratá-lo no próximo capítulo ao falar justamente de…

2. A reestruturação produtiva e seus reflexos no trabalhador coletivo”.

Nota:

[1] Dados publicados em GANZ, Lúcio Clemente, Desemprego à vista, em Le Monde Diplomatique Brasil, Ano 2, Nº 17, dezembro de 2008, pg. 10.

[Fim da 1ª Parte. Em breve publicaremos a continuação do artigo.]

3 COMENTÁRIOS

  1. Diante de um mundo sedento de novidades, nossos anseios tendem a se tornar divergentes, mesmo de forma insconsciente incorporamos o papel dos objetos que assim como as pessoas tornam-se descartáveis. As relações humanas no ambiente de trabalho se tornam embrutecidas sob o peso do individualismo e da competitividade desmedida que vê sempre no outro uma ameça, um perigo, um verdadeiro adversário. Não jogamos do mesmo lado mesmo estando na mesma empresa. Na verdade não somos vistos como seres humanos e os seus valores mas sim como meros consumidores ávidos por expor a sua força e dignidade através dos bens que adquirimos. Gostei muito do seu texto e de sua exposição, esclaredor. Expande o entendimento e nos impulsiona a uma firme decisão de mudança e transformação interna, modificando atitudes e comportamentos.

  2. “quando, na verdade, tudo não passa de um reflexo que inverte as relações sociais”

    não concordo
    as relações sociais não apenas aparecem invertidas
    Elas são invertidas, na realidade
    Alienação é quase que uma extensão do fetiche
    relações sociais nas quais o abstrato passa a ser o essencial e o concreto o superficial.
    o valor que se valoriza, o capital, torna-se a totalidade abstrata
    e submete a vida

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