Mário Pedrosa dialoga com Gorz (Estratégia Operária e Neocapitalismo, 1964), para retomar suas questões sobre «revolução e reforma», «Ocidente e Oriente». Por Cláudio Nascimento

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Neocapitalismo, mundo do trabalho e autogestão

«Num livro sob muitos aspectos novo e construtivo pela originalidade de conceitos e sobretudo pela maneira de repor o problema capital da estratégia da revolução socialista em nossa época, André Gorz retoma de alguma forma a questão da natureza das reformas e contra-reformas, revolução e contra-revolução de que é tão cheia nossa época… images2Gorz trata o problema posto por nós nos idos de 40: a natureza de certas transformações havidas ou por haver no funcionamento ou nas estruturas do capitalismo. Gorz dirige-se especialmente ao movimento socialista nos países desenvolvidos da Europa ocidental. Dir-se-ia não nos tocar. Engano. O problema da revolução nos países subdesenvolvidos é diferente, sem dúvida, do da revolução nos países de alta industrialização. A diferença maior, quanto à forma, está em que a velha alternativa entre a luta pelas reformas e a insurreição armada deixou praticamente de existir, principalmente nos velhos países altamente industrializados do Ocidente. Quanto à força motriz dos movimentos, contrariamente ao que se pensa, continua nos países de alto desenvolvimento, a poder ser representada pela classe trabalhadora redefinida. Os “assalariados produtores” a que se referia Marx não podem mais ser confinados a noção de “trabalhadores manuais”, criadores de mais-valia, pagos por peça ou hora. O desenvolvimento tecnológico e produtivo ampliou extraordinariamente essa noção».

No «capitalismo global», diz Pedrosa, «a alienação que outrora recaía sobre os operários, como produtores mutilados pela sua concentração nas tarefas parceladas na fábrica, agora se completa quando ele aparece como consumidor, ao qual a publicidade arrebatou a possibilidade de escolher ou mesmo de reconhecer suas próprias necessidades pessoais».

Para Pedrosa, esse capitalismo global é resultante das reformas contra-revolucionárias dos anos 20 e 30.

kollwitz_death_and_woman-1910«Sob o regime das reformas contra-revolucionárias institucionalizadas, inclusive nos países democráticos ocidentais, a eficiência produtiva aumentou, a racionalidade econômica cresceu, a cultura chegou às “massas”, mas tudo em detrimento do homem, do homem com os seus fins e aspirações contraditórias, substituíveis estes por jornadas de trabalho mais curtas mas infinitamente mais intensas e um dia cada vez mais cheio de mata-tempos, distrações e divertimentos organizados, sistemas de informação crescentes em quantidade e relativa diminuição do valor, propaganda das vantagens da melhor democracia,da melhor cerveja, do melhor calista, do melhor negócio, da melhor igreja, do melhor cinema, circo ou jogo, do melhor político, do melhor campeão, do melhor governo, do melhor trabalhador ou patrão, do melhor doutor, da melhor mãe, etc., etc… Tudo isso vem do arsenal totalitário das reformas contra-revolucionárias. As categorias sociais desaparecem, o homem é atomizado; é o ideal da democracia, da boa, isto é, representativa. Esse ideal foi criado pelo fascismo. É o que impera nos Estados Unidos».

Claramente, vê-se que Pedrosa assimilou profundamente sua vivência nos EUA. «Nos Estados Unidos, o mecanismo da produção em massa do neocapitalismo criou uma suprema categoria social, medida pelo maior número de bens duráveis que possui um cidadão. A classificação do homem na sociedade tende a desligar-se de seu trabalho e de sua função na produção para caracterizar-se pelo grau de seu consumo. (…) Ao fabricar em massa as coisas mais espontâneas ou casuais, por definição artesanais ou do fazer manual, são institucionalizadas, como a torta, a maionese, a pipoca, o sorvete, o brinquedo, a gravata, o bonde, o berimbau, o saxofone, a esteira, o rosário, o santo, a imagem, a lembrança, o amor, o casamento, etc. Assim, a população inteira, todos os dias, de norte a sul, de leste a oeste do país, come a mesma torta, a mesma salada, nas mesmas horas, de alto a baixo da escala social».

peter_html_m676c382aPara Mário, «a revolução socialista opõe ao consumismo alienante do neocapitalismo outra concepção das necessidades. É uma gigantesca tarefa social, econômica, cultural, ética, desalienante. A equipe dos trabalhadores cientistas representa papel primordial. Onde o trabalho é parcelado, é subordinado à norma de rendimento, onde produz fadiga nervosa e física, periodicamente, sistematicamente, onde se faz um ambiente de massa ou coletivo, seriado, mas no qual não tem o trabalhador uma visão de conjunto do produto em elaboração, onde o estatuto pessoal do trabalhador é subsumido no grupo ou categoria na fabrica, no laboratório, no escritório, na empresa, no empreendimento, onde as relações pessoais entre o trabalhador, o assalariado individual e o diretor, o gerente, o patrão, não existem mais – estamos em face do produtor assalariado, seja um trabalhador manual, um operário qualificado, um técnico, um engenheiro, um pesquisador, um sábio. E na categoria de produtor assalariado são todos membros, potencialmente, essencialmente, da classe operária. Não é o capitalismo, nem mesmo o neocapitalismo que dispõe ainda de fronteiras abertas. O mundo do trabalho é o mundo de fronteiras abertas; ele não pode, porém, como mostra Belleville (Une Nouvelle Classe Ouvrière, 1963), esperar passivamente que suas fileiras cresçam. Tem ele, em compensação, a possibilidade de reivindicar as fronteiras novas. Compete à ação sindical moderna esse reivindicar de novas fronteiras para o trabalho».

Uma civilização do trabalho, obra da práxis da classe operaria, é a alternativa à civilização neocapitalista.

Bases de um projeto nacional cultural

Pedrosa retoma sua questão da reforma. «A reforma revolucionária nos países de neocapitalismo é a transformação deste, por dentro, em socialismo (…) As nossas reformas são a revolução dos subdesenvolvidos – revolução mais ampla e menos definível, mais contraditória e complexa, mais impetuosa e mais plebéia, mais popular, isto é, menos homogênea socialmente. Ela é todo um processo de mudanças contínuas nas estruturas da sociedade, desde uma alteração profunda no dinamismo social das populações rurais, em que uma velha classe de proprietários fundiários desaparece para dar lugar a uma nova classe de capitalistas agrícolas em face de um novo proletariado rural direta e organizadamente assalariado, a uma modificação não menos radical na ordem econômica geral, com crescimento considerável do setor da propriedade pública até colocar sob o seu controle as principais alavancas de comando da economia nacional. O peso específico da classe trabalhadora tende a aumentar e o crescimento das forças produtivas irá depender de mais a mais das técnicas de planejamento e de uma política de investimentos de caráter acentuadamente social. Ela também visa a dar às populações que vivem no interior de seu território um sentimento novo, o de uma participação coletiva num todo nacional cultural [grifo nosso] enfim acabado ou completo, capaz de falar, entender-se, comunicar-se com o mundo num acento que lhe é próprio».

Segue Pedrosa: «Esse é o modelo que a história e a experiência empírica têm elaborado para o Terceiro Mundo. As revoluções dos países do Terceiro Mundo tendem a refletir-se umas sobre as outras e a revelar uma face internacional cada vez mais pronunciada. As revoluções nacionais dos subdesenvolvidos têm não só problemas comuns mas também inimigos comuns. Elas não podem vencer sem uma reforma profunda na estrutura do comércio internacional e, logo, da economia internacional (…) A revolução dos subdesenvolvidos é absolutamente anti-imperialista. A luta anti-imperialista, para ser vitoriosa, tem de ser levada a efeito numa frente comum dos países subdesenvolvidos, como sua política permanente, independentemente de conjunturas nacionais críticas ou crónicas (…) Nessa política externa está contida a condição fundamental para a realização do objetivo nacional permanente – a emancipação. As tarefas internas urgentes serão irrealizáveis – ou para realizá-las o esforço e o sacrifício serão ainda mais penosos – sem uma ação coletiva das nações incompletas em marcha para a integração nacional no plano regional e no plano internacional».

A revolução dupla (anti-imperialista e anticapitalista)

«A revolução dos subdesenvolvidos é assim dupla: a emancipação nacional em face dos interesses imperialistas alheios e contrários à emancipação social das classes oprimidas e de baixos e médios rendimentos, internamente. Não basta que desenvolvamos ou criemos uma indústria, equipando-a com todos os recursos de que precise, arrancando os capitais onde estiverem para aquele fim, mas – nas próximas décadas – já não se poderá tolerar que essa tarefa se faça exclusivamente às custas da miséria das nossas populações. É preciso que ao mesmo tempo se alimente o povo, se vista o povo, se abrigue o povo, se o eduque, para uma nação moderna e modernamente equipada. O controle das rendas terá de ser severo, o controle dos investimentos implacável, a redução dos ganhos improdutivos será uma necessidade, a estandardização dos bens de consumo e duráveis uma imposição social, o monopólio do comércio exterior e do câmbio sem brechas, prioridade absoluta dos instrumentos públicos de ensino e educação tecnológica para o povo (inclusive guerra ao analfabetismo); destruição do velho aparelho estatal e sua remodelação completa para servir as transformações da economia e da sociedade, abolição das forças armadas e sua substituição por milícias populares, aproveitamento de seus serviços técnicos e industriais para aplicações civis no desenvolvimento das infra-estruturas sociais e econômicas».

kollwitzcrop1«Não há, assim, reformas de meio termo para contentar alguns grandes Estados ricos e protetores. Toda reforma que nos países subdesenvolvidos se confinar a alterações administrativas, técnicas ou legais de ordem interna, será reforma tipicamente contra-revolucionária, pois visa a enquistar ou calcificar a subordinação da economia primária à do Estado ou Estados imperialistas, controladores dos recursos financeiros internacionais. Não emancipa o país. Ao contrário. E implica a permanência no estágio da estagnação ou dos níveis do subconsumo ou da mediocridade. Quer dizer da dependência».

Nos países altamente industrializados, o problema da revolução ou reforma contra-revolucionaria é diferente. André Gorz o coloca nos seguintes termos:

«É possível do interior do capitalismo – quer dizer, sem antes o ter abatido – impor soluções anticapitalistas que não sejam incorporadas e subordinadas ao sistema?» E volta ele à velha questão: reforma ou revolução? Era questão primordial quando o movimento parecia ter a escolha entre a luta pelas reformas ou a insurreição armada. Não é mais o caso da Europa ocidental. E por isso mesmo a questão já não tem a forma de alternativa. A questão agora diz respeito a reforma. Mas, sustenta Gorz, trata-se de saber se são possíveis o que chama de «reformas revolucionárias», ou «reformas que vão no sentido de uma transformação radical da sociedade».

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