O desejo formulado por Francisco Louçã – fazer com que a luta pelo emprego e a organização capitalista do trabalho marquem o presente e o futuro – tem implícita a perpetuação do actual modo de produção. Por Ricardo Noronha

«Holloway contra o direito ao emprego». Foi sob este título que Francisco Louçã publicou um artigo na revista on-line Vírus, comentando em tom polémico uma intervenção proferida por John Holloway no Colóquio Internacional «Maio de 68: Política, Teoria e História», realizado no Institut Franco-Portugais em Abril de 2008.

As notas que se seguem optam por enquadrar o artigo de Francisco Louçã num posicionamento mais geral do partido de que é dirigente (o Bloco de Esquerda) e numa concepção da política comum à Esquerda parlamentar europeia que se define como anticapitalista ou, pelo menos, antineoliberal. Furtamo-nos, desde logo, a reproduzir os termos em que Holloway expôs os seus pontos de vista ou aqueles em que Louçã os criticou. Para o que nos interessa, limitamo-nos a esquematizar o ponto da situação.

“Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho esse sobrenatural poder de criação: pois que precisamente do facto de o trabalho estar na dependência da natureza se deduz que o homem que nada possuir além da força de trabalho será forçosamente, em qualquer estado social e de civilização, escravo de outros homens que se terão erigido em detentores das condições objectivas do trabalho. Ele não pode trabalhar nem, por conseguinte, viver, a não ser com a autorização destes últimos. […] Esta é a lei de toda a história até hoje. Por conseguinte, em vez de frases gerais sobre o “trabalho” e a “sociedade”, era preciso indicar aqui com precisão como é que, na actual sociedade capitalista, estão finalmente criadas as condições materiais e outras que permitem e obrigam o trabalhador a quebrar essa maldição social.” (Karl Marx, Crítica do Programa de Gotha, 1875)

a-41. Há, segundo Francisco Louçã, três razões avançadas por Holloway como justificação política da recusa da luta pelo direito ao emprego: 1) devemos deixar de recriar continuamente o capitalismo através da produção mercantil; 2) é possível criar nichos de recusa e dissidência onde o valor de uso predomine sobre o valor de troca; 3) tomar o poder não é uma condição para a transformação do mundo, tratando-se pelo contrário de lhe contrapor um antipoder. Trata-se, do seu ponto de vista, de uma política que é simultaneamente uma fuga. Para Holloway, pelo contrário, segundo a sua afirmação no referido colóquio, a reivindicação do «emprego» ao lado das reivindicações de «saúde» e «educação» não faz mais do que reproduzir, banalizando-a, a representação do trabalho assalariado como bem essencial à sobrevivência humana e horizonte incontornável da organização social.

2. “Seria necessariamente um «nicho» onde não existiria moeda, porque qualquer troca monetarizada pressupõe a medida de valores de troca. Ora, este «interstício» não poderia existir em nenhuma sociedade capitalista; porventura poderia ser criado numa comuna retirada do mundo, sem consumos que não correspondessem à produção local. É uma utopia, mas uma utopia reaccionária. Só um regime concentracionário poderia imaginar este idílio em que os consumos são determinados sem escolha individual, em que o gosto é dirigido, em que não há acesso a formas de comunicação ou de acção global.” Assim descreve Francisco Louçã o que considera ser o desenvolvimento lógico das ideias de John Holloway. E, aproveitando o embalo, passa à crítica da proposta formulada por Antonio Negri, relativamente a um rendimento universal que separe o nível de subsistência da actividade produtiva, considerando que a mesma deixa o seu beneficiário “dependente do Estado”.

Remata Francisco Louçã contrapondo o êxodo, a fuga e o rendimento universal à luta pelo pleno emprego: “Se quiserem seguir o meu conselho e certamente o que lhes diz a sua experiência, os e as desempregadas continuarão a lutar pelo direito ao emprego e pela margem de autonomia que um salário permite, para que essa acção e organização social marque o presente e o futuro.”

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«Trabalho zero e rendimento integral. Toda a produção automatizada»

3. A consciência de que o desemprego é uma arma à serviço do capital para fazer descer os salários e aumentar a exploração acompanha o movimento operário desde a sua formação. O «Direito ao trabalho» foi uma das principais reivindicações operárias em França a seguir à Revolução de Fevereiro de 1848, tal como Marx a descreveu em As lutas de classes em França e O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. Queria dizer, sobretudo, direito a uma remuneração fixa independente do ciclo do capital e das suas oscilações entre picos de frenética actividade e períodos de estagnação produtiva.

Há que reconhecer, no entanto, que as coisas mudaram, e muito, desde esse ano longínquo. Aliás, é também Marx quem nos conta que a reivindicação do «Direito ao trabalho» apenas assustou a burguesia enquanto foi impossível transformá-la no contrário do seu sentido original, através da criação de «Oficinas Nacionais», onde o Estado garantia ocupação e salário aos operários desempregados: obras de aterro aborrecidas, monótonas e improdutivas num regime prisional ao ar livre. Num sistema em que tudo aquilo que é sólido se desvanece no ar, seria estranho que as formas históricas de luta do proletariado mantivessem ao longo do tempo toda a sua frescura.

4. Para além da imagem romântica da comuna extra-capitalista, a-histórica e tendencialmente autárcica, a história da luta de classes não cessou de apresentar exemplos de lutas concretas contra o trabalho assalariado, no coração da própria produção capitalista. Desde logo todos os processos de industrialização foram marcados por processos de luta contra a sujeição ao trabalho industrial, contra a apropriação privada de recursos colectivos, contra os processos de mercantilização e monetarização da vida social, contra os procedimentos de disciplinamento das camadas populares. Nos primórdios do capitalismo, cada conflito laboral continha em si os elementos de uma guerra civil cuja pacificação se transformou, progressivamente, numa ciência capaz de combinar métodos sofisticados com procedimentos brutais. Essas lutas não cessaram desde então e atravessaram a história do capitalismo, constrangindo-o a modificar-se constantemente, a expandir-se e a desenvolver-se. Cada uma delas resultou numa evolução do modo de produção apenas na medida em que – a par dos métodos repressivos empregues contra os elementos mais radicais, politizados e intransigentes – o capitalismo recuperou, incorporou e respondeu às exigências operárias, inserindo-as na dinâmica do seu próprio desenvolvimento. A tendência histórica de crescente abstracção do trabalho e separação do trabalhador relativamente às condições de produção – o aumento da composição orgânica do capital, o incremento da produtividade e a regulação política das relações de exploração – marcaram a evolução das sucessivas etapas históricas de desenvolvimento capitalista e o processo de subordinação da actividade humana à acumulação de capital. Foi a pressão da luta de classes que constrangiu o modo de produção capitalista a estender a todo o globo o seu domínio e a subordinar toda a sociedade à Lei do Valor, ao mesmo tempo que aprofundava os mecanismos de exploração característicos da mais-valia relativa.

5. Parece, portanto, ser conveniente equacionar as questões nos próprios termos em que a luta de classes as colocou e não em fuga aos mesmos. A centralidade do pleno emprego no horizonte estratégico do Bloco de Esquerda não é uma novidade nem propriamente uma originalidade. Da mesma maneira a reivindicação de uma herança iluminista, que glorifica a modernidade e narra a História enquanto progresso, acompanhou sempre a institucionalização das organizações do movimento operário no seio do Estado capitalista. O desejo formulado por Francisco Louçã – fazer com que a luta pelo emprego e a organização capitalista do trabalho marquem o presente e o futuro – tem implícita a perpetuação do actual modo de produção. Igualmente, a apologia da margem de autonomia conferida pelo salário, bem assim como a da escolha individual, do gosto autónomo e do acesso a formas de comunicação e de acção global, compõem um discurso político que naturaliza os mecanismos de exploração e dominação ao mesmo tempo que economiza a descrição das violências, sofrimentos, frustrações e misérias que os fazem funcionar.

6. O fetichismo da forma jurídica em que assenta esse discurso denuncia por sua vez uma identificação fundamental do Estado capitalista como o lugar privilegiado da política. Trata-se de reivindicar direitos, protestar pela sua não concretização, contestar a sua diminuição, fiscalizar a sua aplicação. A condição de possibilidade de cada estratégia torna-se a sua compatibilidade com a ordem capitalista, a democracia representativa, a legalidade e a institucionalização dos conflitos. Dentro deste limitado horizonte histórico, a fórmula do «pleno emprego» pressupõe um contrato entre capital e trabalho à escala de toda a sociedade, regulando a relação salarial como uma transacção entre duas partes. Postas as coisas nestes termos – os das mercadorias e do seu respectivo valor – uma análise de custos e benefícios por parte da burguesia não poderá deixar de fazer depender a evolução da massa salarial de uma completa pacificação e integração da força-trabalho nos seus esquemas de gestão e produção. Os custos do pleno emprego só poderiam então ser suportados por uma radical economia do conflito laboral.

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escultura de Jean Tinguely

7. No que respeita à outra parte do contrato, as razões para o entusiamo também não parecem evidentes. A contradição que Francisco Louçã pretende inexistente no interior do modo de produção capitalista – entre valor de troca e valor de uso – manifesta-se precisamente na figura do trabalhador assalariado, que recebe sempre na figura do salário um valor de troca inferior ao valor de uso que representa para o patrão a sua força-trabalho. Do ponto de vista de quem trabalha, portanto, o salário é apenas uma fracção do valor total que produziu. Torna-se difícil, adoptando um olhar interrogativo e crítico, celebrar uma margem de autonomia que assenta, fundamentalmente, num mecanismo de exploração. E ainda mais difícil imaginar que a única alternativa a essa margem de autonomia consista em nenhuma autonomia.

8. Mas, entrando na materialidade dos trabalhos monótonos, repetitivos, entediantes ou estupidificantes – para não falar dos que são simplesmente extenuantes, perigosos ou nocivos – que constituem a esmagadora maioria dos trabalhos, a coisa torna-se ainda mais problemática. A multiplicação das formas tecnológicas de controlo e monitorização da actividade laboral, o alastrar da disciplina fabril ao sector terciário, a precarização das relações laborais, a generalização do medo e do silêncio, a aceleração dos ritmos e a infinita extensão dos horários de trabalho são outras tantas condições para uma acentuada desvalorização da mercadoria força-trabalho. As condições que actualmente tornam atractivo um investimento de capital são aquelas mesmas que tornam cada vez mais insuportável a actividade laboral e, crescentemente, a própria vida quotidiana.

9. O outro lado desta situação – o jogo biopolítico implícito nas «culturas de empresa» e as suas versões mais ambiciosas de informalidade e horizontalidade nos sectores de ponta da nova economia – também não tem propriamente trilhado os caminhos da autonomia, repartindo-se entre o cinismo impotente dos mais lúcidos e a domesticação incondicional dos mais dóceis. O mercado de trabalho apresenta-se hoje, na melhor das hipóteses, como algo de suportável, apenas porque é a única forma possível de subsistência e de satisfação de necessidades materiais, num contexto de mercantilização geral. Mas ninguém é estúpido ao ponto de ignorar completamente que a vida que se vende é infinitamente mais preciosa do que a subsistência que se compra.

10. Se as formas de solidariedade e identidade colectiva que outrora marcaram os comportamentos da classe trabalhadora parecem agora recuar por toda a parte e até mesmo desaparecer, talvez não seja completamente inútil identificar na própria organização do trabalho o segredo desse desaparecimento. Mais do que tornar o trabalho economicamente produtivo, as modernas formas de organização ocupam-se em tornar os trabalhadores políticamente inexistentes. É nessa relação problemática que se insinua o espaço para uma renovada crítica da economia política.

11. Será ainda possível pensar poder quebrar o círculo vicioso da dominação? Se a fuga se apresenta como uma via de saída de um sistema que não tem saída – porque está em toda a parte e constitui uma gigantesca fábrica social – talvez o seu contrário se apresente estrategicamente mais interessante: as linhas de uma possível fractura podem estar nos comportamentos espontâneos da força-trabalho contra o controlo a que é sujeita. Sob a passividade aparente pode haver muito mais do que resignação. Igualmente a determinação de algo – uma planta, um objecto, um espaço, uma viagem, um filme, uma praia, um copo de água, oito horas de vida – enquanto mercadoria, permanece subordinado a um jogo simbólico e a uma determinada relação de forças que a crítica radical pretende, precisamente, transformar. Mais do que um salário, um posto de trabalho fixo ou um cartão sindical, o que caracteriza o proletariado é a sua ambivalência fundamental: um papel subordinado no seio da sociedade capitalista coexiste com um potencial de insubordinação que o capital procura por todos os meios esconjurar, enquadrar, recuperar e domesticar. Com ou sem emprego, com maior ou menor salário, com mais ou menos (ou nenhuns) direitos, o fundamental, do ponto de vista da ordem capitalista, é que ele aceite o que tem como o melhor dos mundos possível e se resigne aos comportamentos que lhe são prescritos como «normais» – sejam eles o consumo desenfreado ou a austeridade forçada, o trabalho clandestino ou o contrato colectivo, o subsídio de desemprego ou a emigração. Inversamente, se se comportar no interior do sistema capitalista como um objecto estranho, encarando-o do seu ponto de vista específico e parcial, recusando deixar-se determinar por ele, é constrangido a encarar o círculo vicioso para o quebrar.

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escultura de Jean Tinguely, usada por uma visitante da exposição

12. A luta contra o trabalho apresenta-se assim mais como um desenvolvimento estratégico consciente e colectivo de uma atitude individual generalizada, do que propriamente uma condenação moral do sistema e uma busca de nichos no seu seio. É a própria estratégia de dominação que assinala os pontos frágeis e as brechas da actual situação. Os alarmes, as câmaras, a proliferação de seguranças privados, a desinformação generalizada, os sistemas informáticos de monitorização, as fronteiras fortificadas, a privatização do espaço urbano e o controlo biométrico são outros tantos sinais de que a burguesia não dorme descansada. Os processos de fragmentação e de separação próprios da sua organização do trabalho seriam inúteis perante um esforço de recomposição de classe apontado à multiplicação dos espaços de sociabilização e dos instrumentos de comunicação. A função carcerária da sua arquitectura seria impotente para travar o uso generalizado das paredes pela arte anónima e das ruas pela festa não autorizada. As mercadorias vendidas nas suas lojas perderiam todo o valor se apropriadas directamente por quem delas necessita ou simplesmente as deseja.

Sob a capa tranquilizadora do seu discurso triunfante, a burguesia tem medo. Os economistas, urbanistas, sociólogos e informáticos que emprega mantêm-na bem informada dos perigos que corre. E os seus historiadores mais lúcidos continuamente a relembram daquele maldito mês de Maio, há 40 anos, em que não se encontrava em toda a cidade de Paris um único trabalhador disposto a obedecer-lhe.

13. O debate estratégico e teórico acerca da superação do modo de produção capitalista apresenta dificuldades evidentes. Desde logo, aparece como que encurralado entre dois tempos, o tempo curto da acção política quotidiana e o tempo longo das transformações históricas. A fuga a essa prisão implica geralmente a escolha de um desses tempos e uma divisão do trabalho – entre os teóricos que teorizam e os activistas que agem – que reproduz as características fundamentais da sociedade que precisamente se procura superar. Unir os dois tempos e elaborar estratégias de luta com um horizonte histórico mais amplo do que o imediato apresenta-se como uma tarefa exigente. Talvez a sua única possibilidade esteja no desencanto instalado entre quem seguiu uma das duas vias – ou as duas sucessivamente – e não encontrou em nenhuma delas os resultados que esperava. A multidão de dissidentes que se acumula incessantemente nas margens de partidos, correntes e tradições subversivas pode mudar as regras deste jogo simplesmente decidindo-se a jogar.

Para quê lutar para ter um emprego quando se pode lutar para ter tudo?

7 COMENTÁRIOS

  1. Há aqui uma questão que eu gostava de levantar: como pode um operário pensar pela sua própria cabeça? Teorizar a sua situação no modo de produção capitalista e partir daí para traçar o seu futuro? Por mais repressiva que possa ser, a fábrica ou empresa é a grande universidade dos proletários. Foi lá que em mim foi germinando a revolta, que despertou a solidariedade de classe,que despertou o desejo de começar a ler e a discutir aquilo que lia com os outros assalariados.O problema para mim é a falta de consciência dos proletários e é muita gente a falar em seu nome sem conhecerem a sua vivência e aspirações.
    Acho que teorizar, se bem percebi, esquemas muito avançados, fora da realidade social será bom para o ego mas não resolve nada.
    E não quero aqui defender as posições de Francisco Louçâ, que considero um apêndice, pelo seu partido e pelas suas ideias, do aparelho de estado burguês.
    Manuel Monteiro

  2. Olá Manuel, está tudo?
    Nunca me passou pela cabeça que a fábrica não seja um lugar de luta e de aprendizagem. Seguramente foi o teu caso e o de muitos outros. Repara porém que muitas fábricas estão a fechar sem que os seus trabalhadores sigam um percurso semelhante ao teu e, em muitas outras, a posição dos trabalhadores recua. Não quero dar lições a ninguém, mas parece-me que a posição defensiva a que os trabalhadores – a começar pelos portugueses – se viram reduzidos é uma parte do problema e está relacionada com a ausência de uma perspectiva mais ousada na luta contra a exploração capitalista. Por outro lado, esses mesmos trabalhadores resistem numa base quotidiana ao acréscimo de exploração a que são submetidos e essa resistência é uma base real para qualquer estratégia de ruptura. O que me interessou aqui foi assinalar as potencialidades do que já existe de luta proletária contra a organização capitalista do trabalho. Falo do que vejo ou leio sem qualquer pretensão de autoridade. Igualmente não me proponho ter uma solução teórica para os nossos problemas, porque os nossos problemas não são apenas do domínio da teoria.
    Sou dos que perguntam mais do que dos que afirmam. Este texto serve precisamente para ser submetido a críticas como a tua. Oxalá mais venham.
    Um abraço

  3. Meu caro Manuel Monteiro,
    Se seguirmos o teu comentário até às suas consequências lógicas, tu delegas nos capitalistas a incumbência de estabelecerem relações de solidariedade entre os trabalhadores. E isto foi sem dúvida verdade enquanto durou o fordismo e houve fábricas com milhares e milhares de operários. Mas esta situação já praticamente não existe. Não será que os trabalhadores podem eles próprios estabelecer relações de solidariedade, directamente nas lutas? Parece-me ser esta a principal lição dos movimentos sociais na América Latina.
    Um abraço.

  4. Olá João. Olá Ricardo.
    Camaradas (isto começa como uma espécie de resolução política) o que eu gostava era de conclamar os operários para descermos às avenidas, aos jardins, às esplanadas, navegarmos numa canoa no Tejo, e mandar os capitalistas e a sua alienante e repressiva produção pró caralho.
    Só que os operários não me ouvem nem me seguem. Eles têm que aprender a aspirar a uma nova vida. E onde podem aprender isso?
    Não vejo outro local que não seja a fábrica. Aí, apesar de toda a repressão, de todas as contradições, um operário pode juntar a experiência da exploração de que é vítima à teoria que lhe pode ser transmitida pelos operários mais conscientes.
    Vivi na fábrica no tempo do fascismo, no tempo do processo revolucionário, e depois voltei para lá depois de deixar de ser deputado, já com a democracia burguesa novembrista consolidada. A conclusão a que cheguei foi sempre a mesma: aqui é o sítio de todas as revoltas e de todas as revelações…
    E, João, a quantidade de operários numa empresa não é a questão determinante. Acompanhei como reporter do Mudar de Vida, recentemente, uma luta com ocupação das instalações, a Multivending, na Abóbora. Eram trinta trabalhadores. Pois eles,nesses 15 dias de luta, foram eles que me disseram, aprenderam mais sobre exploração do que em toda a vida.
    Depois, mais uma vez para ti, João, acho que poes o carro à frente dos bois quando dizes que as grandes fábricas vão acabar. Pelo menos na Europa, e na China, e também nos Estados Unidos, as grandes empresas continuam a existir, embora com menos trabalhadores. E pensas que significa muito para a aprendizagem operária uma empresa passar de 2000 para 500 trabalhadores? 500 trabalhadores é uma multidão…
    É claro que os capitalistas não montam fábricas para os operários aprenderam a revolução. É uma necessidade que eles têm e é uma oportunidade que devemos aproveitar…
    Segundo as leis burguesas as fábricas são dos capitalistas. É, portanto, território deles. Ao lutarmos no terreno do inimigo estamos a mostrar uma força que nos leva a contestar as normas de exploração na fábrica, mas a olhar para a cidade, para o país e para o poder. Isto é poesia? Não, camaradas, foi aquilo que eu senti e é aquilo que os 30 operários da Multivending sentiram, apesar de derrotados.
    Claro que eu não contesto outras experiências de luta e organização dos trabalhadores fora das fábricas. Não são incompatíveis porque milhentas formas de luta e organização o povo pode e deve inventar para contestar e por em causa a sociedade burguesa.
    Quero esclarecer uma questão: não me referia ao Ricardo quando coloquei as questões que coloquei. O artigo do Ricardo foi um pretexto para fazer estas considerações. Não me considero dono de nenhuma verdade nem de nenhuma experiência que possam abafar as contribuições que cada um de nós tem que dar para a encruzilhada, teórica e prática, em que o mundo do trabalho se encontra.
    Aos dois, um abraço.

    Manuel Monteiro

  5. Eu estou de acordo com quase tudo o que escreves Manuel. Limito-me a constatar que a estratégia que aponta à «defesa dos postos de trabalho» ou à «luta pelo emprego» rende pouco. Não para os meus gostos pessoais ou para as minhas preferências teóricas, mas para as vidas dos trabalhadores em causa. Podiamos debater aqui exaustivamente cada uma das empresas que fecharam nos últimos 5 anos e constatar que em todas elas essas palavras de ordem redundaram no mesmo resultado.
    Nota que quando os trabalhadores ocupam uma empresa já é outro horizonte que começa a esboçar-se. Eles estão a tomar controlo sobre as suas próprias vidas e a furtar-se ao poder patronal. Como sabes, outros problemas começam então a surgir, porque uma empresa em auto-gestão continua a estar inserida no mercado capitalista.
    E quando o que está em causa é impedir a retirada de equipamentos e matérias-primas já não é pelo emprego que se está a lutar, mas contra as manhas do patrão, por uma indemnização que não constrinja o trabalhador a lançar-se desesperadamente no mercado de trabalho e a aceitar qualquer fonte de rendimento que surja. É uma luta defensiva, mas não é uma luta pelo emprego. Esse já está irremediavelmente perdido. Trata-se então de garantir que a derrota não vai ao ponto de enfraquecer ainda mais a posição dos trabalhadores.
    De resto e pelo que tu próprio escreves, o que politiza os trabalhadores, mais do que o trabalho, é a luta. É pelo facto de ser propícia à luta que a fábrica se torna a «universidade dos trabalhadores». Mas isso é válido para outros locais de trabalho, que, aliás, se assemelham cada vez mais a fábricas.
    Assim sendo, trata-se de encarar a melhor perspectiva estratégica para fazer essas lutas crescerem e consolidarem-se, comunicarem entre si e tecerem cumplicidades várias. Na minha opinião, quando luta contra um acréscimo de exploração, o trabalhador está a lutar contra o trabalho, contra a sua utilização enquanto força produtiva ao serviço do capital. A questão será então fazer dessa luta contra o trabalho o centro de uma estratégia política anti-capitalista.

  6. Apesar de se basear no Marx, na perspectiva do que caberia aos “filósofos” e nos conceitos que usou na sua crítica da economia política, parece-me que acaba querendo fugir ao que seria o “socialismo científico” do próprio Marx. Parece-me, neste aspecto, um interessante exercício, porque como reconhece o “debate estratégico e teórico acerca da superação do modo de produção capitalista apresenta dificuldades evidentes”. Acrescento eu, talvez porque a superação de qualquer modo de produção nunca tenha sido teorizada, mas realizada pelas necessidades quotidianas dos agentes sociais irem existindo nas formas que a realidade lhes possibilita quando um modo de produção deixa de lhes assegurar a possibilidade de existirem como até então.

    Daí que a sua tirada de que “ninguém é estúpido ao ponto de ignorar completamente que a vida que se vende é infinitamente mais preciosa do que a subsistência que se compra” não passe duma boutade. É que aqueles que se vêem na necessidade de comprar a subsistência não têm outro modo de ter vida, e, por isso, para eles, a subsistência que compram é mais valiosa do que a vida que vendem. E isto tem sido assim desde tempos imemoriais; o capitalismo apenas lhe mudou as formas e, por necessidade própria, monetarizou a generalidade das trocas.

    Pelo uso que faz de conceitos do Marx — mercadoria força de trabalho, Lei do Valor, contradição entre valor de troca e valor de uso, o salário como valor de troca inferior ao valor de uso que representa para o patrão a força de trabalho, etc. — sem submetê-los a qualquer exercício crítico, precisamente o que o Marx procurou fazer em relação à ideologia dominante, parece-me que não irá longe nos seus esforços para desenvolver “uma renovada crítica da economia política”. A crítica da economia política, antes de mais, é a crítica das concepções que explicam o seu fundamento — a génese da exploração — e não a crítica da política relacionada com os restantes campos e domínios em que se organiza a vida social. E nesse aspecto, como noutros, as concepções do Marx são erradas.

    Ainda que a crítica da economia política não tenha capacidade para superar modos de produção — que perecerão pelas suas características intrínsecas de esgotarem as suas capacidades para empregar a principal força produtiva social, o trabalho humano, sendo substituídos por outros que os actores sociais irão inventando como lhes for possível e com as características que forem possíveis — ao menos permitirá ter outra consciência do que de facto é a realidade social, explicando-a melhor. Poderá, talvez, ajudar os trabalhadores assalariados a compreenderem que o seu futuro está em deixarem de ser assalariados, continuando trabalhadores. Nada mais contraditório com a conhecida consigna marxista.

    JMC.

  7. Ricardo, tens todo o meu apoio no que escreveste.
    Quanto ao Louçã acho que quando ele escreve: “Só um regime concentracionário poderia imaginar este idílio, em que os consumos são determinados sem escolha individual, em que o gosto é dirigido, em que não há acesso a formas de comunicação ou de acção global.” só me posso rir, visto que estamos a falar de um tipo que concorre para Primeiro Ministro de Portugal de 4 em 4 anos. Caro Louçã, este idílio em que os consumos sao determinados, em que o gosto (e o pensamento, e as opinioes) sao dirigidas e em que nao ha acesso a formas de comunicacao ou acao global é o mundo capitalista em que vivemos. E quem tem dúvidas quanto a isto que fique sentado no sofá a escolher entre a telenovela e o futebol na TV enquanto disfruta da “autonomia que um salário permite”. Aliás esta expressao diz tudo. Queres liberdade? Queres autonomia? Entao que tenhas aquela que o teu salário te permite e se fores um miserável já sabes que vais ter zero autonomia ou liberdade. Se nao fores um miserável terás a liberdade e a autonomia que mereces – quanto mais rico mais livre. Este tipo de pensamento qualitativo é, aliás, algo que nao nos deixa ter dúvidas sobre o tipo de pessoa que é o líder do BE.
    Passando para os comentários do Manuel, gostei do que ele disse mas nao podemos restringir-nos ‘as nossas experiencias pessoais, caso contrário os horizontes sao curtos. Eu, por exemplo, enquanto morei em Lisboa sempre trabalhei em empresas que tinham zero (sim zero absoluto) de luta e contestacao. Eram empresas hipócritas e totalizantes em termos de pensamento, linguagem e comportamentos. Nessas empresas o patrao nao era visto como patrao e apenas mais um colaborador diferenciado apenas pelo seu salário (justificado pelos mecanismos de avaliacao criados pelos próprios patroes) e mais nada. Tudo o que aprendi de luta, classes e por aí afora, aprendi FORA do trabalho. O trabalho tem muitas vezes o mérito, se calhar apenas esse, de nos mostrar em termos nada subtis a existencia e a forma da opressao e repressao capitalista. Mas por outro lado nao é este um sistema global? Presente nao so nas horas que passamos no trabalho mas também nas horas fora do trabalho que cada vez mais sao organizadas como um trabalho? Presente nas nossas relacoes pessoais que tantas vezes sao analizadas como meras relacoes comerciais – “quanta felicidade é que esta pessoa pode trazer ‘a minha vida e quanto tempo terei de gastar com ela para ter um bom retorno do meu investimento?”. A analogia fácil e curta é sempre a dos 2 peixinhos doirados no aquário. Um pergunta ao outro: “nao achas que a água está um bocado suja hoje?”. E o outro responde: “qual água?” Eu sei que vivo dentro dessa água, nao preciso de a ver ou sentir ou de ela estar mais suja ou menos suja num determinado dia.

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