Na segunda parte desta “biografia política” de Mário Pedrosa, a análise será centrada na sua militância em grupos trotskistas, e também em seu trabalho no Secretariado Internacional da IV Internacional, do qual foi forçado a sair. Por Manolo

1. Do Grupo Comunista Lenine ao Partido Operário Leninista (1929-1937)

Pedrosa retorna ao Brasil em agosto de 1929 já com a intenção de conversar com um grupo mais próximo de amigos sobre a formação de uma dissidência interna do PCB. O grupo formado por Pedrosa, Aristides Lobo (que já contava com mais de dez prisões no currículo e colaborara com Luiz Carlos Prestes na formação da Liga de Ação Revolucionária – LAR), Lívio Xavier, Rodolfo Coutinho, Wenceslau Escobar Azambuja e militantes da “célula 4R” formaria o Grupo Comunista Lenine. Pedrosa era o principal contato internacional do grupo. A estratégia era a mesma seguida por outros grupos oposicionistas mundo afora: criar frações internas aos partidos comunistas para tentar “recolocá-los no caminho da revolução”, sem fracionar o que seria “o instrumento revolucionário da classe operária”.

O jornal A Luta de Classe, lançado em 8 de maio de 1930 e publicado, muito provavelmente, até agosto de 1939, foi o veículo do grupo. De periodicidade irregular, editado em São Paulo, mas indicando como locais de saída Niterói, Belo Horizonte ou Juiz de Fora (muito provavelmente para driblar a repressão conjunta da polícia de Vargas e dos próprios militantes do PCB), o jornal – impresso até o n.º 33, mimeografado do 34 ao 49 – estampava em seu primeiro número algumas diretrizes gerais:

“A Luta de Classe” é, antes de tudo, a conseqüência dialética de dois fatos: a) uma situação objetiva favorável ao trabalho de agitação e organização das massas; b) o agravamento dos erros da direção do Partido Comunista. Surge, hoje, no momento mesmo em que esses erros, atingindo a sua culminância, vieram tornar imprescindível a edição de um órgão de luta de classe, onde se consubstanciem as idéias primaciais da obra revolucionária de Marx e de Lenine. (…) Por meio de uma crítica fraternal, até onde for possível, mas, tenaz e, por vezes, violenta, até onde for necessária – a “Luta de Classe” seguirá desassombradamente o caminho que lhe indicaram as imposições históricas, apontando às massas a solução revolucionária do problema social e mostrando a diferença fundamental que existe entre a concepção “retalhista” de Revolução (por etapas ou a prestações) e a verdadeira concepção marxista do desenvolvimento histórico, segundo a qual os acontecimentos se interdependem dialeticamente, marchando com o ritmo que lhes é próprio e não dando jamais a possibilidade de uma classe resolver os problemas da outra. Como se sabe, tem-se pretendido vulgarizar a idéia abstrusa de que o proletariado primeiro deve resolver os problemas nacionais da burguesia, para depois realizar a obra de sua libertação! A outra coisa, senão à traição mais evidente dos interesses vitais da classe operária, não podia conduzir a concepção estreitíssima de que a Revolução deva ser feita a retalhos. Denunciando a política dos golpes de força, a serviço de uma linha e, conseqüentemente, de uma finalidade oportunista – “A Luta de Classe” não perderá ocasião de desmascarar todos os atentados à integridade dos princípios, atentados que se caracterizam por uma nova modalidade de desvio revolucionário, o onanismo revolucionário, alternativamente praticado com a mão direita e a mão canhota. Feito para ventilar todas as questões que interessem diretamente ao proletariado e à sua organização, “A Luta de Classe” se dirige especialmente aos elementos ideologicamente mais íntegros, de fora e de dentro do Partido Comunista, chamando-os à luta franca e decidida contra a burguesia e os seus servidores conscientes ou inconscientes. Conta, por isso, com o apoio efetivo, moral e material, de todos esses elementos, a fim de que possam realizar mais eficientemente a obra que o movimento exige. E aqui estaremos sempre, sob as ameaças de duas polícias, cada qual mais atrabiliária – a polícia interna do Partido Comunista e a polícia burguesa das ruas. Tudo pela salvaguarda dos princípios revolucionários e pelos mais lídimos direitos e interesses da classe operária!

Se aproximariam do GCL outros como Mário Dupont, José Auto, Manuel Medeiros e Rachel de Queiroz.

O trabalho do GCL como “fração” do PCB deu resultados: em poucos meses se aproximaram grupos de socialistas que não se identificavam com a linha do PCB, como aquele formado por Mirno Tibor e Aziz Simão (estudante), Arnaldo Tommasini, Ariston Rusciolelli, Lelia e Fúlvio Abramo (comerciários), L. Mássara e Fernando Bertolotti (contadores) e Mário Colleoni (metalúrgico). Já em 1930, o Grupo Comunista Lenine, seguindo a tendência dos agrupamentos que se aproximavam do que seria mais tarde a IV Internacional, transformou-se em Liga Comunista (Oposição). A Liga ainda se considerava parte integrante do PCB:

A Liga Comunista (Oposição bolchevista-leninista) é, nacional e internacionalmente, a fração mais revolucionária do partido do proletariado. Ela agrupa em torno de si os operários mais conscientes do Partido, vivendo dentro e fora deste, educando e esclarecendo o espírito revolucionário do proletariado. Os melhores militantes, expulsos e não expulsos, lutam intransigentemente por seu programa de ação revolucionária, baseado nas teses e resoluções dos quatro primeiros congressos da I. C. A Liga Comunista, liderada internacionalmente por Trotsky e Rakovsky – ambos deportados e perseguidos por defenderem a integridade dos princípios que, em 1917, deram a vitória aos trabalhadores da Rússia -, tem um caráter bem definido de fração de esquerda do Partido, o que vale dizer: fração de esquerda da Internacional Comunista. Reivindicando o restabelecimento da liberdade de discussão nas fileiras do Partido, ela é, antes de tudo, o reflexo de uma imposição histórica: a luta pela regeneração da ditadura do proletariado na U. R. S. S., cuja estabilidade vem sendo ameaçada pelo perigo termidoriano, e a continuação do processo permanente e internacional da Revolução Proletária em todos os setores da luta de classes. (…) A oposição de esquerda não é, pois, como organização, estranha ao Partido, mas uma fração deste e, como tal, a mais revolucionária, a que realmente luta pelos supremos interesses de classe do proletariado.

Em 21 de janeiro de 1931 – dia dos sete anos da morte de Lenin – esta organização mudaria de nome para Liga Comunista Internacionalista, num ato de fundação realizado na Associação dos Empregados do Comércio na rua Líbero Badaró (São Paulo), que contou com as presenças de Aristides Lobo, Benjamin Péret (poeta francês), Manuel Medeiros, Mário Pedrosa, Lívio Xavier, Salvador Pintaúde, João Mateus e outros intelectuais e operários. É desta época a adesão ao grupo de uma série de exilados, como Rudolf Josip Lauff, Anton Mácek (húngaros, ex-soldados do Exército Vermelho) e Goffedo Rosini (italiano que desapareceria durante a Guerra Civil Espanhola, possivelmente assassinado a mando da GPU). Outras adesões foram de Paschoal Petraccone (editor que, junto com Salvador Pintaúde, colaborava com a tradução de obras estrangeiras); Livio Abramo (jornalista, desenhista e gravador); e Nestor Reis (médico, que viria a tratar as doenças pulmonares de Mário Pedrosa).

Em 1933, em São Paulo, Pedrosa funda e coordena a Casa Editora Unitas, que publicou vários textos marxistas, como a coletânea de textos de Trotski intitulada Revolução e contra-revolução na Alemanha, prefaciada por Pedrosa. Muitas das obras publicadas pela Unitas seriam reeditadas na década de 1960 pela Editora Laemmert.

Ainda em 1933, a Liga Comunista Internacionalista coordena a fundação da Frente Única Antifascista, que reuniu militantes anarquistas, socialistas e comunistas na luta comum contra os integralistas – chamados pelos integrantes da Frente Única Antifascista de galinhas verdes. Publicaria, também, o semanário antifascista O Homem Livre, dirigido por Pedrosa e Geraldo Ferraz. Em 7 de outubro de 1934 a Frente seria responsável pela Batalha da Praça da Sé, histórico enfrentamento antifascista em São Paulo, assim narrado por Pedrosa:

O nazismo vitorioso na Alemanha estimulou os fascistas caboclos a vestirem camisa verde, fazerem saudação de braço estendido, arranjarem um führer nacional, armarem-se e saírem às ruas espancando homens de esquerda onde encontrassem, e desfilando com sua milícia militarizada de milhares de homens até cerimônia de juramento à bandeira no Largo da Sé, em face do edifício Santa Helena, onde tinha sede a Federação Brasileira dos Sindicatos dos Trabalhadores, recém-criada. O aparato militar e acintoso da cerimônia visava, conforme tática nazista da conquista da rua antes da tomada do poder, intimidar os trabalhadores ameaçando a própria existência de seus sindicatos de classe. Apesar de inexperiente ainda, a federação compreendeu o perigo e o sentido da manobra e da ameaça. Então, a seu apelo, uma frente única de todas as esquerdas se formou com o fito expresso de, em face da passiva neutralidade do governo, dispersar pela violência aquele desfile. A 7 de outubro de 1934, com efeito, o povo em massa dos bairros proletários acorreu ao Largo da Sé armado de qualquer coisa (pau, faca, foice, espingarda, pistola) e dissolveu no peito (centenas de feridos, uma dezena de mortos dum lado e do outro, muitíssimas prisões) a parada dos galinhas-verdes que nunca mais desfilaram pelas ruas de São Paulo. Continuaram a fazê-lo porém no Rio até o golpe estado-novista de novembro de 1937, com que, com sua cumplicidade, a ditadura liberal indefinida de 1930 se definiu como fascista (…).

Em outro depoimento posterior, também de Pedrosa:

Em 1933-34, constituiu-se com minha participação ativa uma frente única antifascista de todas as esquerdas para barrar o caminho ao integralismo. A 7 de outubro de 1934, essa frente única consegue mobilizar a massa trabalhadora de São Paulo para dissolver a parada militar da milícia integralista, milhares de homens uniformizados e armados, provenientes de todo o Brasil, no Largo da Sé. Desde esse dia, os integralistas nunca mais desfilaram pelas ruas de São Paulo. Deu-se verdadeiro choque armado, com uma debandada quase geral dos integralistas, que deixaram pelas calçadas suas camisas verdes. A jornada, porém, foi pesada para os dois lados, com várias mortes, centenas de feridos, e grande agitação. Na esquina da rua Barão de Paranapiacaba com o Largo da Sé, o fogo foi muito cerrado, vindo sobretudo de integralistas estendidos pelo centro da Praça, e atingiu muitos companheiros. Um deles, um bravo estudante antifascista, atravessado pelas costas por uma bala, caindo em meus braços, exclama com uma golfada de sangue pela boca: “Estou ferido!” e logo depois sou também alcançado. A diferença é que Décio Pinto morria pouco depois, e Mário Pedrosa, mais feliz, saiu-se com umas balas na região glútea.

Pedrosa, neste dia, estava marcado de morte pelos integralistas, e refugiou-se na Galeria Itu, onde ocorria exposição de Portinari. Os ferimentos destes dias deixariam sequelas: andaria de bengala pelo resto da vida.

Essa primeira geração do trotskismo brasileiro deixou importantes marcas de sua luta, não apenas no campo sindical, no qual dirigiram o Sindicato dos Comerciários, o Sindicato dos Bancários e a então União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo – que, em termos de importância de suas posições, poderia ser comparada ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo dos anos 1980. Ou na luta política, com a Frente Única Antifascista. Mas, sobretudo, no terreno da análise e elaboração políticas, que pode ser conhecida em uma série de textos hoje já disponíveis. Eles revelam sua capacidade de compreender o que acontecia à sua volta e transcender os dogmas que amorteceram a capacidade de elaboração das lideranças comunistas locais por mais de seis décadas.

Num artigo de 1931 intitulado Aos trabalhadores do Brasil, a Liga Comunista (Oposição) apontava:

A “república nova”, evangelizada pelos velhos e jovens politiqueiros da “antiga”, auxiliados por um pronunciamento típico de oficiais superiores que hipotecavam seu apoio a Washington Luís (enquanto este não os mandou às linhas de fogo), foi feita em nome da unidade nacional em perigo. (…) Manter a unidade burguesa do Brasil, manter a centralização do poder político, sob a forma de ditadura militar manifesta ou mascarada, de baioneta calada sobre as massas exploradas e oprimidas, manter essa unidade num país em que o desenvolvimento das forças produtivas, nos diferentes estados, se faz desigualmente, acelerado o processo de desagregação pela invasão do capital financeiro internacional, pretender livrar a “pátria brasileira” do desmembramento, eis a “missão histórica” dos “generais da revolução”, dos Juarez Távora e Miguel Costa, dos João Alberto e Góes Monteiro a serviço da burguesia . A unidade nacional burguesa foi mantida graças à vitória da “Aliança Liberal”. Suprimidos do cenário político alguns figurões mais comprometidos, o acordo geral da burguesia está sendo restabelecido à custa de uma opressão maior das classes pobres, reduzidas às mais duras condições de vida. Esse acordo geral será no Brasil burguês a última forma conciliatória entre a centralização do Estado, processo econômico de desenvolvimento capitalista, e a forma federativa, garantia da unidade política. A falência financeira do Estado, a redução das reservas de ouro, como efeito da política monetária do governo perrepista, a crise econômica da superprodução agrária e industrial, agravarão o grau de dependência do Estado brasileiro à economia mundial imperialista.

Num Projeto de Teses sobre a Situação Nacional, de autoria dividida entre Mário Pedrosa e Lívio Xavier, a Liga atacava diretamente teses centrais da estratégia do PCB, como aquela do “camponês pequeno proprietário”:

Desde a sua primeira colonização, o Brasil não foi mais que uma vasta exploração rural tropical. A coroa de Portugal repartira as terras por seus serviçais e fidalgos, e assim, sob a forma de um “feudalismo particular”, criou-se o monopólio dos grandes senhores de terra. Não houve aqui terra livre, não se conheceu aqui o colono livre, senhor dos meios de produção. O pequeno proprietário não pôde desenvolver-se, na formação econômica do Brasil. O Estado brasileiro organizou-se com um rígido esquematismo de classes e repousou na exploração do braço escravo pela minoria de senhores de terra. Trabalho escravo, propriedade latifundiária, aristocracia rural, constituída aos azares do favoritismo da metrópole, na caça ao índio e do tráfico negreiro, imprimiram cunho particular à formação histórica do Brasil na América Latina, onde, em geral, a ausência da agricultura organizada acarretou a luta do colono pela terra, contra o índio e contra o monopólio da coroa espanhola. Numa sociedade assim constituída não há lugar para um desenvolvimento ponderável da classe dos pequenos proprietários (camponeses independentes) e podem-se considerar desprezíveis historicamente a burguesia urbana e a camada de trabalhadores livres, tão insignificante é o seu papel na produção nacional. A burguesia brasileira nasceu no campo e não na cidade.

Para Pedrosa e Xavier, “a contradição entre o processo econômico que se desenvolve desigualmente nos estados e a superestrutura federativa deve ser ponto de partida da análise geral da situação brasileira, pois criou as condições fundamentais do movimento armado de 1930, em que Minas e Rio Grande do Sul se insurgiram contra o predomínio de São Paulo na Federação”.

A burguesia nacional, segundo os autores, se via obrigada a subordinar sua defesa à defesa do próprio capitalismo, que vinha transformando o país através da harmonização do desenvolvimento da indústria nascente com a continuidade do monopólio do café no mercado mundial e à penetração do imperialismo devida também à industrialização. Já empregando a teoria trotskista do “desenvolvimento desigual e combinado” ao desenvolvimento econômico brasileiro, os autores apontam a contradição entre o desenvolvimento do capitalismo nos estados e a forma da Federação como força tendente a esfacelar a unidade nacional brasileira, apontando as formas transitórias de equilíbrio entre as diversas unidades da federação a vitórias militares, à repressão das massas trabalhadoras e das classes médias. O PCB, segundo Pedrosa e Xavier, errava ao considerar os proprietários rurais como “pequenos proprietários” quando eram, na verdade, trabalhadores semi-escravizados pelos grandes fazendeiros; errava, também, ao fundar sua política em generalizações, sem analisar a realidade concreta das classes sociais do país.

Análises do desenvolvimento econômico e político brasileiro até 1930 como as realizadas pela Liga Comunista Internacionalista seriam retomadas, décadas depois, por diversos historiadores brasileiros, como Boris Fausto em sua obra A revolução de 1930.

Em 1935 Pedrosa se muda para o Rio de Janeiro com sua companheira Mary Houston e trabalha na Agência Havas. Ajuda clandestinamente a Aliança Nacional Libertadora de Luis Carlos Prestes. Com a Intentona Comunista de 1935, passa a ser procurado pela polícia. Monta, em 1936, um prelo clandestino para imprimir A Luta de Classe e lança, em 1935, em conjunto com a ala esquerda do PCB liderada por Hermínio Sachetta, a candidatura simbólica de Luis Carlos Prestes – então aprisionado – à presidência.

2. Do Partido Operário Leninista à IV Internacional e exílio (1937-1945)

Ainda em 1936, já fora do PCB, a Liga Comunista Internacionalista fora transformada em Partido Operário Leninista (POL). Em reunião de 8 de dezembro de 1937, seu Comitê Central Provisório decidiu que Mário Pedrosa, por estar sendo processado pelo Tribunal de Segurança Nacional, deveria sair do país, com a missão explícita de buscar o estreitamento das ligações do POL “com o movimento revolucionário da 4ª Internacional”, o “estudo dos problemas da revolução brasileira e a colaboração regular nos órgãos do POL publicados no Brasil” e a criação de uma publicação teórica do POL no exílio. Por fim, o “camarada Gonzaga” (Pedrosa) deveria ir para os Estados Unidos para realizar tais missões. Pedrosa, na verdade, foi para a França, onde ficava a sede do Secretariado Internacional do Movimento pela IV Internacional (SI) e com o qual o POL se mantinha em contato. Pedrosa usou o passaporte de Nelson Chaves, um amigo, e rumou para a Europa, não sem antes escrever a Lívio Xavier:

Estamos aqui concordes que o golpe [de] Getúlio abriu uma nova fase no desenvolvimento da situação. Num certo sentido, comparável ao que se passou na Alemanha com o advento de Hitler: isto é, é preciso começar tudo de novo. O PC, que já estava em agonia, volatilizou-se, e aqui as perspectivas de renascimento são muito menores, tendo em vista a situação geral do mundo e a decadência pronunciada da IC. Não há tradições teóricas e organizatórias ponderáveis. Nós poderemos assim nos manter, e aproveitar o tempo para criarmos os primeiros quadros, isto é, tarefa propagandística e educadora em primeiro lugar. A fase de estabilização relativa, diante de nós, e a profunda derrota e depressão sofridas impõem a todos nós começar tudo outra vez do começo. Mas agora com maior experiência e maior concentração de esforços. Afinal no Brasil chegamos, numa marcha-ré violenta, a uma época em que se abre na prática a questão da emigração; quiseram os fados que fosse eu o primeiro a ser forçado realmente a emigrar (não tome a emigração no sentido puramente geográfico, mas sobretudo no sentido da atividade política, pois a emigração em si pode também ser para o interior do próprio país). […] Esta carta não é apenas uma carta particular minha, mas foi aconselhada pelos companheiros de organização. Aproveito a oportunidade para fazer o [que] de há muito andava querendo fazer: trocar idéias com você, principalmente agora em que sou forçado a expatriar-me, sob a ameaça de 5 a 8 anos de grade ou de ilha. Vou emigrar por decisão organizatória, e com plano de trabalho a executar ou a tentar executar. A primeira tarefa é nos tirar do isolamento provinciano em que todos estamos confinados; a segunda, é de ordem teórica; a terceira etc. Espero de você um endereço seguro para que possa utilizar-me de lá de fora e nos correspondermos e outro endereço para envio de material. Muito tinha ainda que conversarmos mas não há mais tempo. Abrace os amigos. Não lhe posso dizer detalhes sobre a minha excursão.

Escondido num navio apinhado de nazistas – para “se disfarçar”, vivia com um livro de Goethe à cabeceira – chegou à Europa e se pôs em contato com o Parti Ouvrier Internacionaliste (POI), seção francesa da oposição internacional de esquerda. Pierre Naville anunciou assim a Trotski a chegada de Pedrosa em Paris:

Para a América do Sul, temos agora um especialista de primeira ordem. É o camarada dirigente do Brasil, fugido após o golpe de Estado, condenado a 8 anos de prisão; sua mulher acaba de ser presa, pois foi acusada de escondê-lo. É membro da Oposição Internacional de Esquerda desde o princípio, antigo membro do PC que conheci na Europa em 1927 e com quem tenho amizade desde então. Tem muitos anos de prisão e clandestinidade absoluta nos últimos anos, e é um marxista completamente sério. Como você vê, este camarada irá nos ajudar consideravelmente a prosseguir nossos trabalhos. Ele já examinou as teses de Diego [Rivera] e está terminando sua tradução. Iremos examiná-las em seguida. Ele também já redigiu para a revista um primeiro artigo a propósito da declaração mexicana sobre o golpe de Estado de Vargas.

Com estas credenciais, Pedrosa foi integrado ao processo de construção da IV Internacional como membro do Secretariado Internacional do Movimento pela IV Internacional.

Em dezembro de 1937, foi realizada no México a Pré-Conferência Latino-Americana, preparatória para a Conferência de Fundação da IV Internacional. Pedrosa criticaria sua fraca representatividade, pois contou “só com a presença do México e outros países da América Central. Sem Brasil, Chile, Argentina”. Devido a esta crítica, o relatório desta pré-conferência seria reexaminado pelo Secretariado Internacional com a participação de Brasil, Argentina e México. Pedrosa seguia a linha da tese para a qual coligia dados, segundo a qual o Brasil seria o centro de interesse político latino-americano.

Enquanto isso, Pedrosa vivia com o auxílio de sua família e de colaborações na imprensa. Como o POL tinha poucos recursos e não havia como sustentá-lo, trabalhou como locutor de rádio e ajudou Trotski com pesquisas para o que depois viriam a ser as famosas biografias de Lenin e Stalin.

Em julho de 1938 Pedrosa acumularia mais tarefas: com o assassinato do secretário administrativo do Movimento pela IV Internacional, o alemão Rudolf Klement – esquartejado pela GPU, a polícia política da URSS – Pedrosa passou a dividir com o grego Georges Vitsoris o trabalho de preparação do congresso de fundação da organização. A posse de todos os arquivos do movimento deixava Pedrosa apreensivo – ele bem poderia ser a próxima vítima. Reclama a Lívio Xavier, seu principal correspondente:

Aqui várias obrigações outras caíram em cima de mim, de modo que tive de abandonar por enquanto as questões relativas especialmente à pátria amada. Virei especialista da Am. Latina pela força das circunstâncias, e em seguida tive também de afrancesar-me e agora, por cima de tudo, com o kidnapping do nosso amigo, coisa que provavelmente v. já sabe, novas responsabilidades vieram ajuntar-se às outras. Mas espero que até o começo de setembro essas complicações tenham passado e eu volte a ocupar-me especialmente com a querida pátria… se não tiver que ir dar com os costados na terra do [Diego] Rivera, como já há uma idéia no ar a esse respeito.

No Congresso de fundação da IV Internacional (3 de setembro de 1938, Perigny, França), Pedrosa seria, sob o pseudônimo Lebrun que usaria durante toda sua militância na organização, o único representante das dez seções latino-americanas (Brasil, Chile, Argentina, Cuba, Bolívia, México, Porto Rico, São Domingos, Venezuela e Uruguai). Segue com este status para o Comitê Executivo Internacional (CEI) da IV Internacional, para o qual é eleito, é mantido no Secretariado Internacional e é direcionado para o Comitê Pan-Americano (CPA) em Nova Iorque. Suas tarefas: organizar todas as seções da IV Internacional na América Latina e na América Central através da manutenção da correspondência entre elas; editar o Boletín de Información com as traduções dos textos mais importantes publicados na imprensa trotskista internacional; controlar politicamente a revista Clave de Diego Rivera e Charles Curtiss. Tudo isso enquanto permanecia trabalhando como tradutor e escrevendo artigos para a imprensa.

Já em abril de 1939 havia críticas sérias ao trabalho de Pedrosa à frente do CPA. Jan Frankel, tradutor tcheco e ex-secretário de Trotski que desempenhara a função antes de Pedrosa, reclamava a Trotski:

O PAC [Pan-American Comitee, nome original em inglês do CPA] é um mito. Foi depois de muita insistência que se pôde, do estrangeiro, receber dele uma resposta política. Me parece que não há reuniões regulares, nem decisões regulares, nem atas etc. Quem é o secretário responsável deste comitê? Parece que ninguém é responsável por quem quer que seja. De acordo com a carta do camarada G[oldman] de Paris, não vejo nenhum plano para a publicação de um boletim internacional etc. É possível que em Paris, e na Europa de modo geral, agora seja difícil de fazer qualquer coisa desse gênero. Por isso, é mais do que necessário que o PAC exista e aja. Minhas propostas concretas são: a) Definir exatamente a composição do PAC e quem é o seu secretário responsável; b) Criar um subcomitê técnico de três jovens camaradas, devotados e ativos, sob a direção do secretário responsável. c) Publicar em nome do PAC um boletim internacional em inglês e em espanhol. d) Se possível, transferir o camarada Curtiss de Los Angeles a Nova York e designá-lo como secretário do PAC. Nós não temos mais o direito de perder tempo no terreno internacional. Insistirei para que esta questão seja rapidamente resolvida.

No Brasil o POL tentava cooptar o Comitê Regional do PCB (Dissidência Pró-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionária). Este grupo paulista, liderado por Hermínio Sachetta e Heitor Ferreira Lima, era responsável por longos debates a respeito da linha política do partido com relação à burguesia nacional (seria ou não a “força motriz da revolução brasileira”?) e que haviam, a partir daí, para a crítica à política da Comintern em geral. Ainda em abril de 1939 o POL e o Comitê Regional uniram-se num Comitê Pró-Reagrupamento da Vanguarda Revolucionária do Brasil e, em agosto de 1939, se reuniriam numa pequena propriedade de Guarulhos para fundar o Partido Socialista Revolucionário (PSR), seção brasileira da IV Internacional. Pedrosa era seu representante no Secretariado Internacional.

Em outubro de 1939 chegavam a Nova Iorque Mary Houston, companheira de Pedrosa, e a filha de ambos, Vera. Ainda sobrevivendo de traduções e artigos eventuais, a família Pedrosa se apertava para sobreviver.

Com o início da Segunda Guerra Mundial, Pedrosa propõe que os membros do Comitê Executivo Internacional funcionassem como Secretariado Internacional provisoriamente, que os membros do Comitê Executivo Internacional residentes nos EUA funcionassem como CEI residente (também em caráter provisório). Isso levou à transformação do Comitê Pan-Americano em Departamento Latino-Americano (DLA), integrado por Abraham Golod [Gonzalez], Colay, Felix Morrow, Mário Pedrosa e Donald Berger.

As urgências financeiras prosseguiam: uma vez que Mary Houston conseguira um emprego de taquígrafa bilíngue no Departamento de Estado em Washington, toda a família se mudou para lá. Devido à mudança para Washington, Pedrosa não compareceria a mais reunião alguma do DLA, o que o levou a um progressivo isolamento político – que se mostraria fatal posteriormente.

Após a assinatura do pacto germano-soviético, a invasão da Polônia e anexação dos países bálticos pela URSS e o início da Segunda Guerra Mundial, o debate sobre a natureza da URSS e sua defesa em caso de guerra rachou a IV Internacional de cima a baixo, pois estas questões haviam sido resolvidas no movimento operário na base da paulada, do ostracismo e do assassinato, deixando o assunto em aberto inclusive entre aqueles que pensavam compartilhar posições[1].

O tema criou séria cisão no Socialist Workers Party (SWP) dos EUA em 1940; como grande parte do CEI era vinculada ao SWP, a discussão teve reflexos profundos na IV Internacional. Enquanto a facção majoritária, liderada por James P. Cannon, sustentava a posição de Trotski a respeito da natureza da URSS (“estado operário degenerado” etc.) para justificar sua defesa nos momentos de guerra com países capitalistas, a facção minoritária, liderada por Max Shachtman, James Burnham e Martin Abern, argumentava que a URSS não deveria ser apoiada na guerra contra a Finlândia, e mesmo que a URSS havia se degenerado a tal ponto que não mereceria qualquer tipo de defesa.[2]

Pedrosa participou desta discussão com o texto “A defesa da URSS na guerra atual” (9 de novembro), publicado no boletim do SWP. Nele, uma defesa radical do empirismo e do debate: ao indagar se a nacionalização dos meios de produção e a economia planificada sobreviveriam à guerra, perguntava também se a burocracia soviética seria sua defensora mais adequada em tempos de guerra. Como tais questões são bastante complexas, o debate entre os militantes seria a melhor solução, ao invés de encerrar-se o debate sob o argumento de que a URSS deveria ser defendida incondicionalmente por ser um Estado operário degenerado, como o fazia o SWP. Pedrosa via neste argumento a justificativa para que sua defesa fosse condicionada à conjuntura; caso a degeneração prosseguisse, dentro em breve seria necessário escolher entre a defesa da URSS e a defesa da revolução em outro país. Dizia Pedrosa:

Na base da estatização e da planificação da economia, ao estender seu poder discricionário sobre toda a vida econômica da sociedade, o Estado reconquistou liberdade plena: ele se tornou aquilo que Engels, em uma carta a Bebel, ao criticar o projeto do Programa de Gotha, definia como sendo o ‘Estado livre’: ‘Um Estado que é livre em face de seus concidadãos, conseqüentemente, um Estado com um governo despótico’. A URSS atual nos daria uma imagem desse Estado livre burocratizado. Mas tal Estado não tem futuro, não tem possibilidades de sobreviver. Em todo caso, parece que não vamos sair das tradições do marxismo se colocarmos em dúvida a justeza teórica da fórmula do “Estado operário degenerado” para admitir a hipótese sob condições excepcionais e passageiras, como fenômeno temporário, de uma certa deformação teratológica do conceito marxista de Estado, como a de um Estado livre burocratizado.

Eis os motivos para o reexame da defesa da URSS: a invasão da Polônia pela URSS não demonstraria seu caráter imperialista? As contradições entre a URSS e as potências imperialistas seriam de fato uma contradição entre um “Estado operário degenerado” ou entre potências imperialistas de fato? A política externa da URSS atrasava a revolução mundial, e sua política interna entrava em contradição com a estrutura econômica coletivizada, e o domínio da facção direita da burocracia soviética – materializado no pacto germano-soviético – enfrentava séria crise causada pela subprodução, o que a forçava a buscar nova base social para se apoiar. O pacto com os alemães, além de não resolver a crise, causaria fome no país, pois a URSS havia se comprometido a ser fornecedora de alimentos e matérias-primas aos nazistas. A parceria da URSS com a Alemanha era uma restauração do capitalismo na URSS, pois significaria sua coletivização, mesmo tendo em conta que a guerra era algo inevitável:

Stalin tem medo da guerra, mas ele está tentado. Ele brinca de guerra e, portanto, na realidade, seu jogo não pode impedir a guerra. Esta poderá ser fatal à estrutura econômica soviética ao abrir uma saída histórica para a burocracia ou pelo menos para a oligarquia dirigente. Entretanto, no terreno econômico, ela não teria conseqüências muito diferentes das resultantes de uma paz imediata com o triunfo de Hitler. Ela seria o fim do monopólio do comércio exterior como barreira contra a indústria estrangeira, isto é, alemã. O plano econômico, já superado devido às necessidades imediatas da mobilização e da anexação de novos territórios, seria posto de lado definitivamente para que toda a economia nacional pudesse ser adaptada às necessidades da guerra e da cooperação com a economia alemã. O impulso das forças centrífugas da economia e da acumulação primitiva nos setores mais fundamentais da vida econômica do país (agricultura, indústria leve e de consumo, produção artesanal já em vias de descentralização legal etc.) romperá todas as barreiras jurídicas, acabando por ser sancionado pelo Estado. De resto, isto vai ao encontro dos interesses ‘históricos’ da burocracia. É também o caminho do menor esforço. […] Sobre semelhante base, seria mais fácil para a burocracia desenvolver plenamente tudo o que nela tem a tendência de transformar-se numa nova formação social independente. […] Ela quer encontrar uma base econômica e social própria, estável, sobre a qual possa desabrochar à vontade e assegurar-se, na história, um lugar permanente como uma verdadeira classe social: é exatamente o que ela procura na sua política de aventura no exterior. (…) A continuidade de Stalin, na guerra ou na paz, é a colonização e o desmembramento da URSS ou o fascismo. Sua vitória na guerra é o fascismo na Rússia como no mundo. A bandeira da ‘suástica’ também é ‘vermelha’. A vitória de Stalin aliado a Hitler transformaria a burocracia em uma nova classe depois de um processo de nacionalização de que a própria burocracia seria o objeto.

Nestas condições, a defesa incondicional da URSS seria insuficiente, e deveria sair do programa da IV Internacional. Seria preciso debater e analisar as condições conjunturais desta defesa.

O texto de Pedrosa foi responsável por uma crise na IV Internacional, pois uma fração do CEI residente (Shachtman, C. R. L. James e Nathan Gould) era também militante do SWP, e favoráveis às teses de sua minoria a respeito da natureza da URSS e de sua defesa em tempos de guerra. Esta mistura de papéis os levou – por proposta de Pedrosa – a transferir um debate interno do SWP para toda a IV Internacional através de boletim interno em inglês e espanhol, e ao mesmo tempo a intervir na discussão interna do SWP como membros do CEI, endossando inclusive a publicação de um órgão informativo da corrente minoritária. Diante deste quadro, Trotski começa a afirmar aos quatro ventos que nem o CEI, nem o DLA existiriam mais, e articula a substituição dos membros do CEI em conjunto com a construção da “Conferência de Emergência” da IV Internacional (maio de 1940), que teria a dizer sobre Pedrosa:

A única comunicação recebida do Brasil pelo Comitê Executivo Internacional no período recente nos informa que a seção local mantém a posição de “defesa incondicional da URSS”, aceitando a disciplina da Quarta Internacional apesar das diferenças de opinião entre seus membros. Ela também repreende Lebrun [Mário Pedrosa] por negligenciar seus deveres com relação a seu próprio partido.

Mesmo o PSR o abandonara. Na verdade sua posição de liderança dentro do movimento trotskista no Brasil, devido a seu exílio, passara a Hermínio Sachetta, que chefiava a organização. Sobre o trabalho no Brasil, ficou nas resoluções o seguinte registro:

O movimento pela Quarta Internacional no Brasil é um dos mais antigos do continente, tendo sido organizado entre 1930/31. Desde sua formação passou por um número de crises políticas e organizacionais. Policamente, é um dos grupos mais ativos, mas, devido à falta de uma liderança firme e estável, sua vida política assume uma forma desorganizada e traduz-se, com frequência, numa crise organizacional. A “guinada francesa” [tática de “entrismo” das Ligas Comunistas nos partidos socialistas recomendada por Trotski entre 1934 e 1936] fez brotar uma desorganização completa e foi preciso longo tempo para que se reorganizasse. No presente, com a informação à nossa disposição, o grupo brasileiro apóia a posição dos desertores do SWP. Tendo como base um relatório do camarada Smith [pseudônimo de Farrell Dobbs, militante do SWP estadunidense e secretário-geral do partido entre 1953 e 1972], tem cerca de cinquenta membros. Não temos relação direta com eles, devido ao fato de Lebrun [Mário Pedrosa], seu representante, que desertou da Quarta Internacional, continuamente se recusar a nos dar seu endereço.

Sobre o trabalho de Pedrosa à frente do DLA, um relatório à Conferência aponta o seguinte:

Até o momento não fomos capazes de normalizar e estabilizar a vida do DLA, principalmente devido ao fato de que nos faltam as forças necessárias capazes de participar neste trabalho em particular. Desde o congresso mundial da QI, a vida e o trabalho do DLA passou por grande número de dificuldades que inevitavelmente afetaram o trabalho da QI nos países da América Latina. Previamente ao congresso, após uma reorganização das forças do DLA, tivemos sucesso em estabelecer relações com todas as forças da QI na América Latina e demos passos para coordenar seu trabalho; devido, entretanto, à decisão do congresso de trazer Lebrun [Mário Pedrosa] para os Estados Unidos e colocá-lo como responsável pelo trabalho nos países latino-americanos, o trabalho já concluído foi perturbado e desorganizado. No período de seis a sete meses durante o qual foi secretário do DLA, ele [Mário Pedrosa] deu mostras da mais lamentável ineficácia. Sua inabilidade administrativa foi longe ao ponto de abandonar praticamente todas as relações com grupos e seções da América Latina e paralisar a vida do DLA. Cartas ficaram sem resposta; reuniões do departamento não eram convocadas quando problemas surgiam, mas apenas de acordo com sua conveniência pessoal. Desde sua remoção como secretário temos conseguido restabelecer relações e normalizar, a um certo ponto, a vida e o trabalho do DLA. Com relação a isto, é necessário afirmar que a controvérsia sobre a questão da URSS teve repercussões em nosso departamento. Dos cinco membros que o compunham, dois, Lebrun [Mário Pedrosa] e Montanez, desertaram da bandeira e fileiras da Quarta Internacional. Deve-se também afirmar que, com relação ao nosso trabalho de coordenar as relações e atividades da QI nos países latino-americanos, o Departamento Latino-Americano não recebeu a cooperação necessária dos grupos e seções do continente, basicamente devido às razões supra-mencionadas, quer dizer, o fato de que nosso movimento está em processo de formação política e organizacional, e de que o próprio Departamento Latino-Americano tem sido débil, não tendo sido capaz, até o momento, de desempenhar o papel de um genuíno centro de liderança.

Numa resolução complementar sobre a polêmica envolvendo a defesa da URSS, a Conferência seguiria no massacre moral:

Lebrun [Mário Pedrosa], Johnson [C. L. R. James], Trent [Max Shachtman] e Anton [Nathan Gould] aproveitaram-se de sua maioria acidental para trair a confiança depositada nos membros do CEI pelo Congresso Mundial. É óbvio que o Comitê Executivo Internacional e, consequentemente, todo órgão operacional seu tinha como seu dever primário defender o programa da Quarta Internacional tal como adotado no congresso até que um novo congresso fosse convocado para alterar o programa. Lebrun [Mário Pedrosa] e cia. propuseram que o slogan da defesa incondicional, para começar, fosse retirado, e depois defenderam a mudança para uma posição do mais escancarado derrotismo da URSS. Eles, assim, violaram o programa e as decisões do congresso por cuja autoridade somente tinham posições no CEI. (…) Além de suas violações programáticas, esta maioria do CEI residente abdicou completamente de qualquer autoridade que poderiam ter imediatamente após a discussão dentro do SWP nos Estados Unidos. Apesar de ter maioria no CEI residente, eles não apenas não viram que reuniões estavam sendo organizadas e que questões de disciplina internacional ou de apoio internacional na moderação dos conflitos no SWP estavam acontecendo, mas, ao contrário, falharam em responder quando chamados à ordem pela secretaria administrativa do comitê cuja eleição eles unanimemente endossaram. (…) É importante mencionar que Lebrun [Mário Pedrosa] e cia. não representam absolutamente nada nas fileiras da Quarta Internacional agora. (…) A autoridade de Lebrun [Mário Pedrosa] repousava sobre o mandato dado a ele pelo Congresso Mundial como representante das seções latino-americanas. Todas as seções latino-americanas, até onde sabemos, expressaram-se favoravelmente à manutenção da posição da defesa incondicional, quer dizer, permaneceram leais às decisões do primeiro congresso mundial e aos princípios da Quarta Internacional. Mesmo sua própria seção, a brasileira, numa carta mencionada na declaração, declarou-se apta, apesar de uma forte corrente derrotista existir em suas fileiras, a continuar a defender o slogan da defesa incondicional até que uma decisão internacional seja alcançada. Assim, todos os supra-mencionados tornaram-se indivíduos sem qualquer autoridade nas fileiras da Quarta Internacional. Eles não representam nada e ninguém além deles mesmos, agora que traíram a confiança depositada neles pelo último congresso mundial.

Ainda em março, meses antes da “Conferência de Emergência”, Pedrosa escrevera a Trotski dizendo que sua mudança para Washington o colocara, “apesar de minha vontade, um pouco afastado da vida ativa na organização durante estes últimos três meses”, e que estranhava Trotski propagandear que o CEI não existia mais (afirmação que foi transformada em resolução da “Conferência de Emergência”). Dizia ainda:

A guerra veio e tornou-se necessário levar a sério a existência da organização internacional, apesar do sentimento de cansaço para com a Internacional, muito difundido, sobretudo entre os camaradas dirigentes do partido norte-americano, que sustentavam ser a Quarta Internacional uma ficção e que, além dos Estados Unidos, nada restava. Muitos desses camaradas tiravam então a conclusão de que era preciso recolher-se no âmbito do partido norte-americano e deixar cair o resto. (…) A luta fracional absorve todas as atenções dos dirigentes norteamericanos; e as preocupações com o organismo dirigente internacional são pouco significativas a ponto de o c[amarada]. Cannon duvidar de que possa contar com a maioria do comitê sobre a questão russa. A situação existente antes da Conferência Internacional não mudou. Sem o interesse e o apoio da seção norte-americana a Quarta Internacional torna-se uma ficção enquanto organização internacional. Isso é hoje ainda mais verdadeiro do que na época do Congresso de fundação da Quarta Internacional. Mas isso não importa dizer que a direção internacional deva ser, por conseguinte, um simples instrumento da fração dirigente desse partido; ainda admitindo-se previamente que essa fração detenha o monopólio da sabedoria política e represente com exclusividade o verdadeiro espírito bolchevique em nossa organização. Se a direção internacional não pode viver, nas condições atuais, senão com o sustento material e o apoio moral da seção norte-americana, ela não deve, entretanto, por isso, subordinar-se à vontade – mesmo admitindo-se que ela seja inspirada pelos motivos mais sadios e mais legítimos – da fração dirigente do partido. A não ser que se queira melhor decidir de uma vez por todas que a direção internacional deva ser formada, doravante, por um comitê composto exclusivamente de V. e do cam. Cannon, assistidos por um estenógrafo.

Encerrava-se com este episódio a vinculação de Pedrosa à IV Internacional. Poucos meses depois, Trotski seria assassinado. Pedrosa retornaria ao Brasil em 24 de outubro de 1940, seguindo Mary Houston, que retornara em setembro. Ao invés de retornar diretamente, voltou pelo Oceano Pacífico para contatar o maior número possível de grupos da IV Internacional para debater com eles a questão da URSS; passou pelo Peru, Bolívia, Chile, Argentina e Uruguai, entrando para o Brasil pelo Sul por terra e chegando ao Rio de Janeiro em 26 de fevereiro de 1941. Foi preso no dia 3 de março, tendo sido solto por interferência de seu pai junto a Filinto Müller com a condição de embarcar para os Estados Unidos imediatamente pra trabalhar na União Pan-Americana, onde arranjara emprego para ele e sua companheira.

Pedrosa, agora, ficaria “de molho” por um tempo, sem fazer qualquer tipo de militância política ostensiva – embora acompanhasse atentamente a política brasileira e internacional – e escreveria artigos sobre arte. Mas ao voltar definitivamente ao Brasil, em 1945, fundaria um jornal que seria um marco na história do socialismo no Brasil – Vanguarda Socialista.

NOTAS

[1] Para acompanhar este debate sobre a natureza da URSS no movimento revolucionário internacional, leia-se., p. ex., o livreto de Rudolf Rocker (Os sovietes traídos pelos bolcheviques. São Paulo, Hedra, 2007), os dois relatos de Emma Goldman (My disillusionment in Russia. Garden City (NY), Doubleday, Page & Company, 1923; My further dissilusionment in Russia. Garden City (NY), Doubleday, Page & Company, 1924) a terceira parte do livro de Ante Ciliga (Au pays du mensonge déconcertant: dix ans derrière le rideau de fer. Paris, Plon, 1950, pp. 95-236) e a excelente bibliografia organizada por Henri E. Morel (“As discussões sobre a natureza dos países de Leste (até a Segunda Guerra Mundial): nota bibliográfica”. Em: Castro Neves, Artur J. (org.) A natureza da URSS (antologia). Porto, Afrontamento, 1977).

[2] Para entender as posições deste mesmo debate – que não passa de um prolongamento retardado no tempo do debate anterior – v. The managerial revolution, de James Burnham, para entender os argumentos de uma facção, e Em defesa do marxismo, de Trotski, para os argumentos da outra.

REFERÊNCIAS

As obras de Dainis Karepovs sobre as origens do trotskismo no Brasil foram fundamentais para a redação desta parte, em especial Na contracorrente da história: documentos da Liga Comunista Internacionalista 1930-1933 (São Paulo, Brasiliense, 1984) e o artigo “Mário Pedrosa e a IV Internacional”, incluído no livro Mário Pedrosa e o Brasil organizado por José Castilho Marques Neto (São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001). Foi deles que retiramos o núcleo dos argumentos expostos e também os documentos citados. Outra fonte importante foi o Arquivo Marxista na Internet (http://www.marxists.org), em especial seu arquivo temático sobre a IV Internacional (http://www.marxists.org/history/etol/index.htm), onde foi possível encontrar as resoluções da Conferência de Emergência. Uma fonte alternativa foi a tese de doutorado de Marcelo Mari, Estética e política em Mário Pedrosa (1930-1950), que usamos para complementar as informações encontradas no material de Dainis Karepovs.

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