A oposição de esquerda denunciou a relação entre, por um lado, a entrega da direcção das grandes empresas aos antigos capitães de indústria e, por outro lado, a militarização da força de trabalho, a extinção da autonomia dos sovietes locais e a eliminação do poder exercido pela base. Por João Bernardo

Depois da queda do Muro de Berlim − que aliás não caiu mas foi cortado aos pedaços e vendido em leilões de graffitis e de souvenirs − os jornalistas, e até vários historiadores, criaram a ilusão de que as críticas ao sistema soviético haviam sido elaboradas apenas pela esquerda social-democrata e pela direita anticomunista. Na realidade, a extrema-esquerda fez críticas ao regime soviético desde a sua origem e entre todas essas obras merece um lugar de destaque o livro de Lucien Laurat L’Économie Soviétique. Sa Dynamique, son Mécanisme. Mas antes de abordar a obra e o autor convém conhecer, ainda que resumidamente, a realidade a que ele se referia e saber o que outros haviam dito e escrito a esse respeito.

A começar por Rosa Luxemburg, que, apesar de ter sido assassinada pouco depois de a revolução bolchevista cumprir um ano, deixou uma crítica às concepções de Lenin que contém em embrião muito do que pôde depois ser censurado ao sistema político e económico soviético. Entretanto, a ala esquerda dos menchevistas, que não tinha abandonado o programa de combate à burguesia, formulava críticas igualmente pertinentes à estatização da economia na Rússia soviética e à liquidação da capacidade reivindicativa dos sindicatos. A questão central aqui consistiu no facto de o vanguardismo político, ao mesmo tempo que desapropriou a massa trabalhadora da iniciativa política, a ter deixado também sem possibilidade de intervir nas decisões económicas.

Rússia, 1918
Rússia, 1918

Como observou Edward Hallett Carr, o melhor dos historiadores da revolução russa, os bolchevistas serviram-se dos comités de fábrica para destruir a resistência económica e política da burguesia, mas atacaram-nos quando se tratou de edificar uma economia estatal. A criação do Conselho Supremo da Economia Nacional, em Dezembro de 1917, forneceu o quadro institucional em que a fiscalização operária e, por maioria de razão, o controlo operário ficaram esvaziados de qualquer substância e em que as suas funções foram apropriadas pelo governo soviético. Em pouco tempo os comités de fábrica ficaram subordinados aos sindicatos e convertidos em secções sindicais, apesar de − ou quem sabe se por isso mesmo! − os sindicatos só alcançarem então uma escassa representatividade. O Conselho Supremo da Economia Nacional, que, segundo as palavras de Alexey Rykov, seu presidente, «surgiu a partir dos comités de fábrica de Petrogrado», tinha já deixado de ser um conselho no Outono de 1918 e passara a funcionar para todos os efeitos como um departamento do Estado. A autonomia operária convertera-se no seu exacto oposto. Mal haviam começado a tomar forma, os critérios proletários de organização da economia foram liquidados e substituídos por uma administração de tipo tradicional.

Muitos dos antigos gestores e alguns grandes empresários não tardaram a ver de que lado estavam os seus interesses e ofereceram habilidades e competências ao Conselho Supremo da Economia para ajudá-lo no esforço de centralização. E o Conselho, sobretudo a partir de Março de 1918, quando passou a ser chefiado por Rykov, Yuri Larin e Vassili Milyutin, abriu os braços aos especialistas provenientes das velhas classes dominantes, reconhecendo a posição dos gestores técnicos e administrativos e, no interior das empresas industriais, até dos ex-proprietários. Do mesmo modo, a corrente maioritária no partido bolchevista prontificou-se a admitir que os antigos directores dos bancos nacionalizados continuassem a exercer funções de administração e empregou antigos grandes proprietários rurais como directores e técnicos nas explorações agrícolas do Estado. A guerra civil interrompeu as conversações com os grandes empresários mas não diminuiu a integração dos antigos técnicos e administradores no regime soviético, antes pelo contrário. Quando Lenin declarava − e fê-lo inúmeras vezes, por palavras sempre equivalentes − que «sem pôr no posto de comando especialistas de diferentes ramos do conhecimento, da técnica e da experiência, a transição para o socialismo é impossível», ele não estava só a formular um programa de alianças sociais mas igualmente a definir o socialismo, o seu socialismo, como decorrente da acção dos gestores. «É curioso», observou Carr, «que as medidas de maior alcance tomadas na indústria durante a fase do comunismo de guerra fossem em grande parte aplicadas graças à colaboração activa de antigos técnicos e industriais burgueses».

Mas a administração de empresa tem duas faces intimamente ligadas, e se acabámos de ver o que se passou com os dirigentes, devemos ver agora o que ocorreu com a força de trabalho.

Rússia, 1919
Rússia, 1919

A partir do decreto de mobilização geral de 10 de Abril de 1919 e sobretudo a partir do Inverno de 1919-1920 o governo soviético multiplicou as medidas de controlo da força de trabalho e introduziu uma legislação laboral cada vez mais compulsória. Na continuação deste processo ocorreu a militarização do trabalho, discutida e adoptada no 9º Congresso do partido, em Março de 1920. Nessa época a utilização do regime prisional para fins produtivos não atingiu as proporções sistemáticas que conheceria mais tarde, embora seja certamente possível argumentar que, com a mobilização geral e a aplicação de uma multiplicidade de medidas obrigatórias, era desnecessário sujeitar a um quadro especial de escravismo uma parte da força de trabalho quando toda ela estava já escravizada. De qualquer forma, em Abril de 1919, precisamente no mesmo mês em que se promulgou o decreto ordenando a mobilização geral, foram organizados campos de trabalho forçado. E apesar de a actividade dos prisioneiros se reger pelo código do trabalho e o pagamento corresponder às tarifas estabelecidas pelos sindicatos, a administração de cada campo tinha o direito de descontar um quarto das remunerações. Ao mesmo tempo instituíram-se campos de concentração, com condições mais severas, e se bem que estivessem inicialmente reservados a pessoas incriminadas de conduta contra-revolucionária, depressa começaram a albergar todo o tipo de inimigos do regime. Estava desencadeado, e desde muito cedo, o movimento que levou à proliferação do sistema concentracionário na União Soviética.

Encontrando-se, por um lado, na primeira linha dos que defendiam a entrega da administração das empresas aos tecnocratas e aos antigos empresários, ou seja, àqueles que já as administravam antes da revolução, Trotsky propunha, por outro lado, a instauração de um verdadeiro escravismo de Estado. Se lermos o seu discurso no 9º Congresso do partido, em Março de 1920, onde foram adoptadas as suas teses sobre a militarização completa do trabalho, ou a sua intervenção, pouco depois, no 3º Congresso Panrusso dos Sindicatos, vemos que, em resposta às críticas dos menchevistas, que haviam declarado que «o trabalho obrigatório foi sempre pouco produtivo», ele afirmou que essa noção constituía um «velho axioma burguês convertido num preconceito» e que, se fosse exacta, a própria via de transição para o socialismo estaria condenada, já que ela se baseava precisamente no trabalho forçado. «[…] as críticas que aqui se ouviram pondo em causa a organização do exército do trabalho são inteiramente dirigidas à organização socialista da economia na nossa fase de transição», declarou Trotsky, que em seguida expôs as suas ideias de maneira muito clara. «[…] durante a fase de transição a coacção desempenha um imenso papel na organização do trabalho e, se o trabalho forçado for improdutivo, então a nossa economia está condenada. […] se a coacção for incompatível com a produtividade do trabalho, então, por mais espertos que sejamos e o quer que façamos, estaremos fatalmente votados ao declínio económico». O regime bolchevista, pela voz daquele que era então um dos seus mais distintos representantes, identificou-se peremptoriamente com o trabalho forçado. «Sem as formas de coacção governamental que constituem o fundamento da militarização do trabalho, a substituição da economia capitalista pela economia socialista seria uma mera palavra vazia», explicou depois Trotsky aos sindicalistas.

Foi nesta época que Lenin, contra a oposição de esquerda no interior do seu partido, procedeu à curiosa descoberta de que o inimigo imediato do socialismo eram os pequenos proprietários e o capital comercial, não os grandes empresários industriais. O socialismo encontrava-se confundido com o poder dos gestores. Nas teses publicadas em Abril de 1918, a oposição de esquerda denunciou a relação entre, por um lado, a entrega da direcção das grandes empresas aos antigos capitães de indústria e, por outro lado, as propostas de militarização da força de trabalho, a extinção da autonomia de que haviam gozado os sovietes locais e, em geral, a eliminação do poder exercido pela base. As concepções que Rosa Luxemburg criticara no plano político haviam já mostrado os seus resultados no plano económico.

Bibliografia e referências

Os leitores interessados por este assunto devem ler o pequeno mas substancial livro de Maurice Brinton intitulado na versão portuguesa Os Bolcheviques e o Controle Operário, editado em Portugal pela Afrontamento, e também o segundo volume da monumental A Revolução Bolchevique, de Edward Hallett Carr, igualmente editado em Portugal pela Afrontamento.

A opinião de Edward Hallett Carr acerca da forma como os bolchevistas usaram os comités de fábrica encontra-se em A History of Soviet Russia. The Bolshevik Revolution, 1917-1923, Harmondsworth: Penguin, 1966, vol. II, pág. 78. A frase de Rykov vem citada em id., ibid., vol., II, pág. 80 n. 2. A declaração de Lenin sobre a atribuição dos postos de comando à tecnocracia está em id., ibid., vol. II, pág. 186. A passagem de Carr acerca da colaboração da tecnocracia e dos antigos empresários nas medidas económicas tomadas durante o comunismo de guerra é extraída de id., ibid., vol. II, pág. 189. As passagens citadas do discurso de Trotsky no 9º Congresso do partido vêm transcritas em László Szamuely, First Models of the Socialist Economic Systems. Principles and Theories, Budapeste: Akadémiai Kiadó, 1974, pág. 44. A intervenção de Trotsky no 3º Congresso Panrusso dos Sindicatos está incluída em L. Trotsky, Terrorisme et Communisme (L’Anti-Kautsky), Paris: Union Générale d’Éditions (10/18), 1963, págs. 201 e segs., encontrando-se na pág. 213 a passagem citada; na pág. 210 está a moção apresentada pelos menchevistas no 3º Congresso Panrusso dos Sindicatos.

4 COMENTÁRIOS

  1. Acredito que este tema aparece igualmente em autores que foram de algum tipo de esquerda bolchevique e que, posteriormente, se tornam de direita, centro ou verde, isto é, quando eles eram militantes, prontamente justificariam quaisquer aspectos da política do capitalismo de estado e ignorariam as críticas esquerdistas da política dos bolcheviques. Mas quando aceitam algum tipo de crítica, invertem de lado, tornando-se de direita, mas novamente deixando de lado a crítica levantada como se a única forma de esquerda que houvesse fosse o bolchevismo.

    Há um professor da USP que recentemente passou por esta transformação, mas quando refaz o percurso histórico da história russa, alivia o Trotsky, como neste momento em particular citado em seu artigo, por ter sido ex-trotskista.

    Terrorismo e Comunismo, que compilava tais discursos de Trotsky é impressionante. A discussão com a social democracia e os mencheviques (tb socialdemocratas) quando estes criticavam o trabalho escravo girava em torno do fato do trabalho escravo ser mais ou menos produtivo que o trabalho assalariado. Ninguém questionava o trabalho escravo em si. Seria porquê aceitariam o mesmo nas colônias ?

    Do mesmo modo Gramsci no seu texto sobre o Fordismo critica Trotsky pela forma, mas concorda com o espírito da ação, ele sugeria outros modelos em seu lugar como o Taylorismo, que ele achava melhor, através do controle do consumo do trabalhador e restringindo e regrando sua vida privada, ao proibir-se alcool, tornar os costumes mais rígidos seriam uma alternativa de ajudar no desenvolvimento do trabalho.

    Mas uma das frases que mais me espantou em Trotsky foi:
    “toda a história da humanidade é a história da organização e da educação do homem social para o trabalho a fim de se obter uma maior produtividade”, isto é, estava aparentemente vencida a idéia de luta de classes em prol de um tipo de teoria de modernização, como a das transições das economias em desenvolvimento que, salvo engano, sempre pressupõe algum tipo de teoria da acumulação. E como formulou o Preobajensky mais tarde, a “acumulação primitiva socialista”.

    A expropriação do camponês como acontece até hoje.

  2. Na sua ‘Historia da rev. Bolchevique’, Carr traz algumas observações acerca da desorganização das unidades produtoras logo após a revolução.

    Uma das narrativas diz respeito ao fato de que, em algumas empresas entregues ao controle operário (apesar de o próprio Carr reconhecer a dubiedade desse termo; ora utilizado como representativo do poder dos sovietes, ora utilizado para defender uma política de controle central), os próprios trabalhadores terem promovido a venda de maquinaria e o fechamento das fábricas.

    Então, a minha questão é: como reorganizar a estrutura produtiva de um país com dimensões continentais, em uma situação de miséria e guerra, sem recorrer a unidades centralizadas de planejamento e tal…

  3. Ainda a respeito do controle operário, Carr conclui o Vol. 2 de maneira simpática à política de centralização economica:

    Dizia Lênin no VTsIK, ‘Quando ouço centenas de milhares de queixas quando há fome na Rússia, quando se vê e se sabe que essas queixas são justas, que temos pão mas não o podemos transportar, quando ouvimos sarcasmos e protestos dos comunistas de esquerda contra medidas como o nosso decreto (centralizador) sobre os caminhos de ferro…’ e interrompe o discurso com um gesto de desprezo aos críticos.

    Finaliza Carr, ‘o controle operário serviu sucessivamente dois fins: quebrou a resistência da velha ordem hostil à revolução e, quando levado a sua conclusão lógica, demonstrou, sem possibilidade de contradição, a necessidade de novas formas de controle mais rígidas e mais centralizadas.’

  4. Bem sincera a posição do Carr. 100 anos depois o problema da centralização versus maior autonomia na transição socialista segue sem resposta prática em vários âmbitos, de modo que vamos repetir erros do passado, inevitavelmente. Um âmbito complicado é o militar: como não organizar o exército revolucionário de modo centralizado e hierarquizado, com uma contrarrevolução vindo com força? Não temos resposta, mesmo com os avanços organizativos que vimos no exército popular na revolução espanhola. A esperança é que o avanço das forças produtivas facilite nossa tarefa, e não tenhamos que defender um “socialismo da miséria”, porque se for assim está tudo perdido de antemão.

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