À ciência como um todo é feita a crítica de que seu atual instrumental não poderia lidar com uma realidade que se mostra muito mais complexa e misteriosa. Nesse sentido, fechar-se nos pressupostos científicos consagrados (isto é, baseados em argumentos de autoridade) significaria obstar qualquer caminho alternativo a um regime de verdade. Por Victor Vigneron

A pequena cidade de Wismar não é gratuitamente pacata; o caráter ordeiro de sua disposição urbana manifesta antes uma determinada topografia burguesa. Porto florescente no Báltico sob a proteção empresarial (contra a concorrência pirata) da Liga Hanseática, o lugar tem nos seus canais o próprio enraizar-se da sua condição comercial, ao prolongarem-se por ali suas rotas marítimas. A mera presença destes “acidentes fluviais de lavra humana” aponta para o paciente trabalho envolvido na “construção do pacato” em Wismar, isto é, de uma geografia (“natural”) antes civilizada que acidental ou mesmo selvagem. Tal disciplina fluvial é exemplarmente complementada pelo espraiarem-se, às margens dos canais, de homogêneas construções de tijolos, sólidos testemunhos de uma existência confiante de si. De fato, existem, aqui e ali, algumas residências abandonadas, mas estas são antes problemas de gestão contábil, a serem contornados por um começo de mercado imobiliário, muito distante ainda da selvageria especulativa mexico-paulistana. Há também o mar, impossível de ser submetido, mesmo que se encontre igualmente enquadrado sob uma disciplina cartográfico-náutica com objetivos comerciais, ainda que subsista nas praias de Wismar um quê de maravilhoso, vagamente ambarino. Completam o cenário, enfim, os próprios habitantes do lugar: são majoritariamente figurantes e parecem sisudos, convencidos de que estão na ficção de suas vidas.

Mas esse é apenas o relato de certa Wismar, um cenário cujos habitantes são igualmente atores. E o artífice dessa metamorfose é o diretor (estrangeiro) Werner Herzog, que, em busca de uma verossimilhança que se mostre eficaz, precisa, por vezes, filmar às escondidas para “naturalizar” seus figurantes. Wismar é, em realidade, Delft, outra cidade comercial, agora nos Países Baixos. A primeira, após o trabalho de edição, resta pacata em 1830, o que, por essa época, também significa dizer vagamente periférica e estagnada, longe de seu fausto hanseático de outrora, especialmente tendo-se em vista o porto não muito distante de Hamburgo. Delft, por seu turno, enquadra-se numa tranqüilidade muito conveniente (e necessariamente contraditória) à dialética do turismo. Em 1979, comporta-se como um living museum (sem cólera, tifo ou peste bubônica, claro está) às câmeras bem-vindas de todo o mundo, ciosas de compartilhar daquela peculiar atmosfera que alimentara (transcendentalmente mesmo) a pintura de certo Vermeer.

As filmagens de Nosferatu, o fantasma da noite, certamente causaram alguns transtornos aos comerciantes de Delft, que se viram privados dias a fio de seus clientes (devidamente informados acerca das virtudes do queijo Gouda, dos Stroopwafels e da porcelana local), ainda que, no longo prazo, tenha se mostrado sábia a decisão dos administradores municipais em apostar nas possibilidades publicitárias do cult (Herzog já não era um desconhecido). Ironicamente, porém, a opção cênica do diretor (Wismar em Delft) foge em parte à sua concepção geral do filme, que fora idealizado como uma homenagem à Sinfonia do horror, de F. W. Murnau. Numa opção peculiar entre os diretores alemães das primeiras décadas do século XX, a Wismar de Murnau é captada não em estúdio (como a Holstenwall de O gabinete do Dr. Caligari), mas numa locação ao ar livre, aliás, a própria Wismar (que não possui canal algum). Trata-se, porém, de outra cidade: Weimar, que, se não está imediatamente representada, constitui o substrato do filme, uma espécie de reflexão acerca do regime instaurado com o fim da Primeira Guerra Mundial. Como se vê, portanto, Herzog não realiza um remake, mas uma espécie da “homenagem apropriativa”, que dialoga com a Sinfonia do horror por aproximações e distanciamentos (tendo-se em perspectiva, enfim, a oposição entre Weimar e Delft, sob a identidade Wismar-Wismar).

Da mesma forma Nosferatu dialoga igualmente com outra tradição, muito mais central na ordem capitalista novecentista. Ironicamente, uma Londres de finais do século (prenhe de veleidades imperiais) é trazida à tona por sua periferia mais imediatamente outra (católica, agrária, famélica, imigrante, separatista etc.), sob a ótica dublinense de Bram Stoker. Seu Drácula aparece como matriz literária catalisadora (e normatizadora) de tradições populares, especialmente camponesas, desenvolvendo-se, no plano formal, através de duas convenções literárias extremamente representativas à sua época: o romance, enquanto forma expressiva por excelência do individualismo burguês, e a carta, que dá conta de uma dimensão geográfica onde o exótico é crescentemente aproximado pelas novas tecnologias (telégrafo, trens, navios a vapor, etc.). Nesses quadros, aparecido em outro romance, Phileas Fogg (A volta ao mundo em oitenta dias) é o novo herói que, em oitenta dias, substitui, em eficiência, o périplo de Fernão de Magalhães/Sebastião Elcano. Mais do que isso, Fogg é o protótipo do homem novecentista: um gentleman discreto, prudentemente ousado, abastado e liberal (além de ótimo jogador de uíste); sua figura representa o indivíduo comprometido com a utopia imperial londrino-britânica, conformando-se, enfim, enquanto verdadeiro “homem do século”, cuja cartografia entrelaça mercados e culturas/religiões (nesse sentido, aos nativos, manifesta-se, ao mesmo tempo, enquanto Cecil Rhodes e Deus). Entretanto, Stoker, assim como Herzog e Murnau, trabalha de forma crítica com relação à sua “Wismar” londrina.

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Uma singularidade essencial perpassa o romance de Stoker. Ali, ao contrário do que ocorre em Murnau e em Herzog, a viagem do conde Drácula a Londres, isto é, sua passagem da extrema periferia (os Cárpatos transilvânios) ao centro do sistema, não é acompanhada por qualquer epidemia. Note-se, aliás, o simétrico entre esta passagem do Drácula e a trajetória vivida pelo próprio Stoker, de Dublin a Londres. Acrescente-se ainda que a descrição da residência romena do conde fora inspirada num sombrio castelo de Aberdeen, a Escócia como outra margem imediatamente periférica do Império Britânico, a espelhar o exótico do Leste Europeu. O exotismo da alteridade, mesmo que nobilitada, é acentuado ao associar-se a figura misteriosa (e pejorativa) dos ciganos ao conde, enquanto seus servidores. Mas, voltando ao fundamental, é importante destacar que a chegada do conde não está relacionada a nenhum surto epidêmico. Além disso, sua ação revela o quanto há de intercambiável entre as esferas da saúde e segurança pública, na medida em que, à ação deletéria do Drácula, são empregados em resposta seja o corpo médico seja a polícia (o mesmo ocorrerá, décadas mais tarde, em M, o vampiro de Düsseldorf). A doença, espalhada individualmente pelo conde, veicula-se através do seu poder (noturno) de sedução, inoculando-se numa das mais sensíveis regiões à moralidade vitoriana: o erótico, especialmente sob sua figura feminina. É contra essa ação (sedução) mortal que ganha relevo a figura do Dr. Van Helsing.

É com Van Helsing que se percebe o alcance e os limites da crítica de Stoker à sociedade britânica de fins do século XIX, na medida em que dessa personagem saem as apreciações mais relevantes com relação ao estatuto epistemológico da própria ciência. Não se trata, porém, é importante notar, de um médico inglês, mas de um especialista advindo do continente, mais especificamente dos Países Baixos. Especialista em áreas às quais a medicina sempre foi reticente em reconhecer (hipnose, ciências ocultas, etc.) Van Helsing é, pois, portador de uma credibilidade diminuta em círculos médicos convencionais, ou, no mínimo, uma figura de grande excentricidade (forma socialmente aceitável, ainda que com precaução, de loucura). A ponte que o liga aos acontecimentos na Inglaterra, diga-se de passagem, é um de seus antigos pupilos, John Seward, não à toa, psiquiatra responsável de um hospício.

À ciência como um todo é feita a crítica de que seu atual instrumental não poderia lidar com uma realidade que se mostra muito mais complexa e misteriosa. Nesse sentido, fechar-se nos pressupostos científicos consagrados (isto é, baseados em argumentos de autoridade) significaria obstar qualquer caminho alternativo a um regime de verdade. Todo o desafio de Van Helsing no seu combate ao Drácula, portanto, reside em encontrar caminhos, possivelmente inusitados à lógica científica, que cheguem de forma eficaz à cura, à profilaxia e à própria erradicação da doença. Ao mesmo tempo, porém, é possível entrever aí os limites da crítica feita por parte de Stoker com relação à ciência médica tradicional. Trata-se de uma apreciação negativa não com relação à ciência em si, mas aos desvios daquilo que deveria ser a verdadeira busca da verdade. Dessa forma, o próprio regime de verdade sobrevive às críticas a uma ciência do imanente, aproximando-se do transcendental na medida em que o combate ao Drácula é feito sob o domínio do religioso (com água benta, crucifixos, etc.). Assim, ao autoritarismo cientificista da relação médico-paciente (que conhece momentos críticos, por exemplo, nas campanhas de vacinação), Stoker apenas adiciona um argumento religioso, o qual, ainda assim, aponta para a positividade essencial (com relação à imanência) que conforma a sociedade disciplinarizadora do século XIX. Acrescente-se, finalmente, o fato extremamente sugestivo de que, no combate à ação erótica do Drácula, sejam usados instrumentos ritualísticos da religião/moral cristã. Nesse sentido, tendo em vista o círculo de relações de Stoker, pode-se apontar uma sua maior afinidade, no plano literário, com Conan Doyle, ao passo que tome certa distância da ousadia sexual colocada por Oscar Wilde. Trata-se de uma posição prudente entre o “sir” e o exilado.

Foi Murnau, muito mais que Stoker, que se aproximou das questões propostas por Wilde, décadas mais tarde. Isso na medida em que seu homossexualismo (muito menos aparente) jamais encontrou qualquer aceitação na sociedade alemã (ou norte-americana) ao longo das primeiras décadas do século XX, sendo que essa desilusão com o fechamento da sociedade transparece de forma indireta em seu Nosferatu, sinfonia do horror. Ao retomar-se a questão da doença, nota-se que, como Herzog, Murnau associa o aparecimento do conde Orlok (o Drácula, cujo nome fora alterado por questões de direitos autorais) à epidemia que grassa Wismar. Entretanto, ali, muito mais que nas outras obras, a doença e a personagem do conde adquirem contornos morais bastante pronunciados. A peste aparece ali como manifestação de um “mal absoluto”, idéia de fundo kantiano, recorrente em vários pensadores alemães (até, pelo menos, parte da obra de Hannah Arendt). Todo esse mal, a doença a ele associada e, enfim, o próprio Nosferatu, seu herói negativo (posto que opera através da destruição), são instrumentos utilizados pelo diretor para criticar o regime político de Weimar, seu conservadorismo sob os social-democratas.

Todas as expectativas abertas com a assunção daquele grupo político ao poder, com o fim do Estado monárquico, haviam sido substituídas, já em 1919-20, por uma visão extremamente amarga em O gabinete do Dr. Caligari. Afora o conservadorismo do próprio diretor do filme, Robert Wiene, o roteiro, de Carl Mayer e Hans Janowitz, conforma-se num libelo crítico ao estado policialesco mantido sob o regime Weimar, cioso de sua estabilidade política. Se bem que colocado sob narração de um louco (mudança fundamental feita ao roteiro por Wiene, que termina por eximir a película de qualquer tom crítico), o filme desenvolve-se numa atmosfera de perseguição por parte do Estado e das instituições públicas (a polícia, o hospício, etc.) num ambiente sufocante, um estúdio maravilhosamente composto por sombras quebradiças, um relevo sinuoso e construções opressivas. Entretanto, se por um lado Murnau compartilhe dessa crítica à República de Weimar, igualmente repressiva na esfera moral-sexual, sua narrativa entrevê uma alternativa ao “mal absoluto”, inexistente em Caligari. Ao concluir-se o filme, Nosferatu é de fato derrotado, não por uma religião específica (Van Helsing, aliás professor Bulwer, é aqui uma personagem irrelevante), mas pela força igualmente transcendental do amor, na medida em que Ellen Hutter a ele se entrega (isto é, morre) para salvar seu marido e sua cidade daquele mal. Acrescente-se que essa sua entrega (novamente de coloração erótica) ao conde, ao contrário do que ocorre em Stoker, onde as mulheres são antes irresistivelmente inconseqüentes, é voluntária e mesmo fundamental à redenção final de Wismar e, poder-se-ia mesmo dizer, de Weimar enquanto esperança político-sexual.

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Mas a solidez das instituições morais européias de finais do século XIX não é alvo de críticas apenas por parte das obras de Stoker ou de Wilde: também a trajetória de Freud é extremamente significativa nesse sentido, revelando-se, aliás, parcialmente simétrica à figura do Van Helsing de Drácula. Formado no espírito cientificista ligeiramente periférico do Império Austro-Húngaro (como os Países Baixos de Van Helsing), Freud é testemunho de certa esterilidade conhecida pela mais avançada comunidade médica do continente (sua grande descoberta propriamente “médica” foi a localização das gônadas da enguia macho). Mas foi em Paris, sob a orientação do célebre Dr. Charcot, que Freud tomou contato com os problemas relacionados à histeria, doença tida por exclusivamente feminina. Da mesma forma que Van Helsing, pois, Freud termina por adentrar em territórios proscritos pela medicina convencional (a hipnose como terapia), o que, no que tange à sua carreira, mostrou-se uma opção desmoralizante, ao menos de início. De volta a Viena, uma sociedade moralmente enrijecida, sua atenção voltou-se para outras dimensões pouco exploradas pela medicina (aliás, a Psicologia desenvolver-se-á fora dos domínios médicos), tais como os sonhos, as piadas e os lapsos, trabalhando agora através da livre associação. É, portanto, no âmbito daquilo sobre o que a moral burguesa estende o mais espesso silêncio (comungado pela própria ciência), a dimensão erótica, especialmente feminina e infantil, que se desenvolvem as formulações freudianas. Essas dimensões, embora banidas da vida consciente, nela se manifestam, fragmentariamente, sendo que, para descrever tal processo, Freud lance mão da noção romântica alemã de “inconsciente”. Assim, o centro de gravidade do indivíduo desloca-se de sua consciência, trazendo à tona tudo aquilo que restava escondido, ainda que central, à sociedade burguesa.

Não deixa de ser interessante o fato de que outro grande revelador do secreto labirinto que permeia toda a sociedade burguesa austro-húngara tenha sido Franz Kafka, corretor de seguros de Praga. Em última instância (e deixando de lado o caos burocrático de O processo e de O castelo) uma das tensões fundamentais de A metamorfose, onde a doença (acordar enquanto um inseto monstruoso) joga um papel fundamental, é a relação entre a moral familiar tradicional e o bizarro acontecimento que faz emergir a verdade de uma existência monstruosa. Assim, a identidade étnica do parentesco (a importância do judaísmo em Kafka) faz ainda mais atormentadora a forte oposição estabelecida no interior do seio familiar entre humano e monstruoso. Daí que a opção tácita (silenciosa) da família, tendo em vista a preservação da estabilidade dos laços parentais, seja pela exclusão do doente, trancado inicialmente em seu quarto e, por fim, “esquecido” à morte.

No outro extremo do Império, em Trieste, Ítalo Svevo (aliás, tradutor da obra de Freud) constitui, nos primeiros anos do século XX, uma das primeiras criações literárias de cunho estritamente psicanalítico, o romance significativamente intitulado A consciência de Zeno. Convidado pelo seu analista a escrever suas memórias, Zeno Cosini, o protótipo de uma burguesia abastada e inútil, isto é, que vive da dilapidação de confortáveis rendas, traz à tona aquilo que seria muito secreto para ser publicado (em realidade, o analista o publica apenas com o fito de irritar seu paciente). Nesse sentido, são temas centrais a (não-episódica) importância sexual da instituição das amantes, o conformismo ante a monotonia do matrimônio e do trabalho, o vício escapista do tabagismo (e a obsessão do antitabagismo), numa série irônica de pequenas frustrações pessoais. Entretanto, a perspectiva de cura de Zeno, a psicanálise, nos remete ao eixo anteriormente apontado com relação à obra de Stoker. Assim, de forma análoga ao que ocorrera ao Dr. Van Helsing, Freud teria enquadrado sua intuição romântica do “inconsciente” a uma matriz kantiana de pensamento. Desse modo, segundo Martin Heidegger, se bem que a formulação freudiana tenha o mérito de apontar para os limites da consciência, seu enquadramento objetificante do inconsciente (tendo em vista a instituição da cura) termina por estender o procedimento científico à esfera mais íntima da existência humana, de modo a esvaziar o homem enquanto sujeito.

Da mesma forma, é interessante colocar em perspectiva, brevemente, a narrativa contida em Nosferatu, de Murnau, com relação a algumas das formulações avançadas por Max Weber. Isso porque se trata de um autor que se coloca igualmente em contraposição ao regime de Weimar, porém com motivações e conseqüências radicalmente diversas. As mais variadas problemáticas que coloca derivam, basicamente, de sua preocupação fundadora com relação ao processo de “racionalização”. Weber via sua realidade contemporânea como o ápice desse processo, isto é (dentro de seu vocabulário preciso), da adequação entre meios e fins. E tal condição instrumental da realidade, na opinião de Weber, encontrava-se hipertrofiada também com relação ao domínio do político. É inclusive a partir da investigação sobre as origens dessa racionalização que a sociologia weberiana desenvolve toda a sua análise acerca da afinidade entre os ethos capitalista e protestante para, mais adiante, indicar um ultrapassar da ética religiosa pelo capitalismo, no âmbito de um processo de “desencantamento do mundo” e de “autonomização das esferas da vida”. Tendo em vista a reconstituição desta “genealogia da racionalização”, Weber, ao lidar com sua profunda desilusão perante o regime de Weimar propõe, assim como Murnau, sua alternativa política. Entretanto, o próprio Weber o reconhece, trata-se de uma aposta bastante arriscada: a ascensão de um líder carismático que unisse o povo alemão (a “nação” é outro tema caro ao autor) de modo a poder equacionar a (necessária) racionalização do mundo e um fundamental ethos germânico.

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A chegada do vampiro na Wismar de Herzog é solitária, apenas um barco que misteriosamente adentra nos canais da ordeira cidade. Ainda assim, trata-se de uma viagem cuidadosamente planejada pelo conde Drácula. Dessa forma, ao inserir-se no mercado imobiliário, nas rotas comerciais, a ação de Nosferatu ocorre já nos quadros de uma lógica comercial bastante definida, onde a ética da propriedade privada atua no sentido de garantir sua integridade física. De qualquer forma, mesmo nesses quadros, os efeitos deletérios da sua presença manifestam-se já quando da sua viagem marítima entre Varna e Wismar. Assim, após eliminar toda a tripulação, Nosferatu é a mão invisível que conduz a embarcação até seu destino, onde, através dos inúmeros ratos que acompanham seu carregamento, pode enfim, levar a epidemia a novos patamares. Cientes do aparecimento de um misterioso barco em seus canais, as autoridades político-médicas do lugar tomam logo contato com o livro de bordo, onde estão relatados os acontecimentos da viagem. A mera existência desse instrumento, a serviço das autoridades marítimas, comerciais e médicas (que se confundem em Wismar), é um testemunho da disciplina imposta a uma atividade potencialmente rebelde como é a navegação, lembrando-se que um dos objetivos da Liga Hanseática fora justamente o combate à pirataria que infestava o Báltico.

Entretanto, ao descobrir-se, no livro de bordo, a iminência da peste, a comunidade político-esclarecida entra em desespero, fugindo do grande salão em que se reunira, deixando de lado mesmo qualquer possibilidade de tomar decisões para enfrentar a epidemia. Mais adiante, ainda que acuada, a autoridade invisível, esclarecida, toma algumas medidas profiláticas necessárias (e infrutíferas) à contenção da peste. Comercialmente, a questão ganha especial significado na medida em que se trata de uma cidade portuária, potencialmente sujeita às doenças, como que comercializadas com todo o mundo. Entretanto, ao verificar que tais medidas (o encerramento de casas, restrições à movimentação, etc.) não dão o resultado esperado, e tendo em vista o desaparecimento físico das autoridades, a população passa crescentemente ao desespero, ante a visão da inutilidade de seus esforços frente a um elemento que ultrapassa a potência da ciência humana, cujo limite fundamental, desde seus inícios, é a morte, crescentemente retardada, mas irremediável. Mais que o desespero, a própria loucura enquanto fuga às restrições sociais mostra-se possível no estado de completa exceção representado pela peste. Uma verdadeira fúria pela vida, por necessidade e desespero com relação à consciência da sua curta existência toma a cidade. Homens e animais colocam-se no mesmo plano, a diversão e o dinheiro são gastos desesperadamente.

Entretanto, o desfecho coloca um elemento extremamente significativo, exclusivo ao filme de Herzog. Uma etapa subseqüente ao desespero popular é a rearticulação da autoridade esclarecida, o que não se dá necessariamente com o refluir do Drácula, mas sim de seus sintomas mais deletérios. Mais que isso, a nova autoridade é que salvaguarda a existência do próprio vampiro sob seu novo avatar (Jonathan Harker), ao prender o Dr. Van Helsing (que adquire aqui uma posição mais importante, por seu titubeio esclarecido). Dessa forma, fica estabelecida uma espécie de pacto em que se asseguram a continuação, abrandada, da ação sedutora do Drácula, finalmente institucionalizado enquanto figura respeitada (ainda que excêntrica) de Wismar.

Esse estatuto final da doença chamada Nosferatu indica para uma apreciação completamente singular de Herzog com relação ao tema. Trata-se agora de uma doença interiorizada, banalizada. Como em A peste, de Camus, as regras sociais são mantidas, por vezes mesmo exacerbadas, a morte sendo crescentemente cotidiana e a via, automática; da incerteza da morte, surge o hábito da precaução com a vida em “estado de sítio”. Mas, para além de Camus, Ionesco também compõe um quadro extremamente significativo de análise da doença no novo momento que se descortina ao homem após a Segunda Guerra Mundial. Em O rinoceronte, a doença aparece não como algo fundamentalmente deletério, mas socialmente necessário a partir do momento em que as redes sociais encontram-se totalmente submersas numa realidade doente, em que todos estão transformados em rinoceronte e ter um corno é, mais que uma necessidade, um desejo.

Assim, para além de sua banalidade, a doença também pode aparecer como desejo, ou ao menos como dado necessário à sociedade. No caso de Herzog, é a crise causada pelo Drácula que permite a recomposição, em bases ideológicas mais sólidas (resistentes a doenças similares) da autoridade. É nesse sentido que a doença mostra-se passível de ser analisada ali, finalmente, enquanto produto necessário de uma “sociedade de consumo”, onde não há mais uma manipulação através de um falso, mas sim a consciência de um falso que participa enquanto tal do regime de convencimento, de publicidade. Mas trata-se de uma publicidade que não opera através de um “convencimento espúrio”, mas que só é possível no interior de uma sociedade em que a sanha de consumo não resida na posse, mas na falta, ligada ao contínuo desperdício. A narrativa realizada por Herzog, ao colocar a doença em Nosferatu finalmente despida de seu caráter autofágico, aponta para a sua necessidade por parte de uma sociedade (esclarecida e autoritária) revigorada através da crise. Trata-se, enfim de Delft, a cidade das porcelanas, símbolo quebradiço do desperdício.

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