Mesmo não havendo nesta zona uma agressão de maior gravidade, podem aparecer aí problemas graves no futuro. “Permanecem as intenções de dividir as pessoas, avançando com projectos à socapa [disfarçadamente], esperando que caiamos na ratoeira de aceitar apoios”. Por Brigada Europeia em Apoio aos Zapatistas

A Junta de Bom Governo (JBG) “Hacia la Esperanza” do Caracol 1 de La Realidad recebeu-nos para nos falar sobre a situação actual e os progressos da autonomia naquela zona.

Situação actual

A tensão mais grave actualmente encontra-se na região de Montes Azules e afecta 7 comunidades, das quais 3 são zapatistas. O mau governo está a tentar fechar a biosfera natural, praticando a expulsão das comunidades indígenas e com o fim de aproveitar comercialmente a sua riqueza natural. “Eles dizem ter como objectivo a protecção do meio ambiente mas isso, obviamente, não é a verdade”. O que querem é expropriar os recursos naturais (água, petróleo, minerais) e privatizar a terra – não para benefício nacional mas das grandes empresas multinacionais. Para retirar as comunidades da região, o mau governo está a oferecer indemnizações de 200.000 pesos [cerca de 12.100 euros ou R$ 27.800] às pessoas que partem e um espaço para reinstalarem apenas as suas casas. Famílias da ARIC [Associação Regional de Interesse Colectivo, que congrega a nível nacional produtores-exportadores de café] aceitaram, bem como outras comunidades, mas os zapatistas não quiseram nada com isso.

17-2010-07-14-la-realidad-_15_Os zapatistas resistem e afirmam que não estão a destruir nada, que têm o direito de permanecer ali e que a terra não é para vender. A terra é de quem a trabalha, e é vida, e não vão permitir que lhes tirem o que é seu. Por isso estão a ser alvo de provocações, intimidações e ameaças, não só através do governo, mas também por parte dos vizinhos, aderentes da CIOAC oficial [Central Independente de Operários Agrícolas e Camponeses], que quer vender os terrenos. O objectivo é dividi-los e intimidá-los, mas não vão cair nas provocações e vão aguentar-se: continuarão a lutar pelas coisas justas, e não só no seu interesse próprio.

As autoridades da JBG contaram também que o exército federal entrou no município Terra y Libertad com o pretexto de procurar armas, ameaçando as pessoas.

Mesmo não havendo nesta zona uma agressão de maior gravidade, podem aparecer aí problemas graves no futuro. “Permanecem as intenções de dividir as pessoas, avançando com projectos à socapa [disfarçadamente], esperando que caiamos na ratoeira de aceitar apoios”.

O governo privatiza partes do país em benefício de grandes empresas para se aproveitarem dos grandes recursos naturais: água, madeira, …

A JBG insiste em que todos estes ataques foram outras tantas experiências para se organizarem mais frente ao capitalismo. Pensaram na forma de melhorar os trabalhos em todas as áreas, para se manterem autónomos. Verificaram como, cada vez mais, esta situação os leva a serem mais resistentes, a pensar na questão da produção, da saúde, da educação ou do percurso para um melhor futuro desta luta. Pensam em todos os que estão a ser prejudicados, não apenas nos zapatistas.

Progressos da economia

Os zapatistas continuam a desenvolver a sua resistência com avanços de organização e autonomia. Assim, os membros da JBG, responsáveis pelas diferentes áreas, falaram-nos dos maiores progressos verificados.

Saúde

Uma companheira, jovem, responsável da saúde autónoma, fala-nos da organização e dos progressos nesta área. A saúde é coordenada por meio de autoridades locais e de comités de saúde. Os promotores organizam-se em grupos com coordenadores eleitos e rotativos ao nível de zona e de município. De três em três meses organizam reuniões conjuntas com os membros da JBG com o objectivo de avaliar os progressos, os atrasos, as necessidades e os planos de formação nos diferentes municípios. Há também uma coordenação no hospital com turnos de 4 ou 5 pessoas.

Em coordenação com os promotores da medicina de patente, funcionam três áreas de medicina tradicional: ervanária (plantas medicinais, xaropes, cápsulas, …), parteiras e endireitas. E pergunta-se aos pacientes se preferem medicinas tradicionais ou de patente.

Actualmente há uma casa de saúde em cada comunidade, onde trabalham promotores de saúde eleitos pelo próprio povo, e no total há mais de 200 promotores de saúde na zona. Em três dos quatro municípios também existe uma clínica e, ao nível de toda a zona, um hospital geral. Neste último podem ser atendidos casos de maior gravidade, até cirurgias que se organizam de três em três meses com a ajuda de médicos solidários de Comitán [a quarta maior cidade do Estado de Chiapas]. Nas clínicas, como nas casas de saúde, também se recebem pessoas que não são zapatistas. Têm de pagar o transporte para a clínica, a consulta e os medicamentos, mas tudo custa menos do que nos hospitais oficiais. Os pacientes zapatistas não têm de pagar a consulta porque participam nos trabalhos colectivos. Se uma pessoa doente não pode pagar, existe a possibilidade de pagar com um atraso de dois ou três meses.

Além disso, foi definido um programa de prevenção com 47 pontos (como higiene escolar, higiene doméstica, alojamento dos animais, …). Os promotores de saúde têm a responsabilidade de o difundir nas comunidades e de verificar se é cumprido.

Nos últimos anos, a formação dos promotores melhorou muito e agora podem trabalhar em muitas áreas diversas. Actualmente continua-se a formar os promotores, em particular para a vacinação. Também se está a preparar a formação para o planeamento familiar.

Apesar de haver ainda muitas necessidades na área da saúde – como uma ambulância, bisturi eléctrico, recursos para o equipamento dos médicos e enfermeiros de Comitán –, a situação da saúde nesta zona melhorou muito desde o levantamento de 1994. A companheira conta-nos que agora quase não há mortalidade de mães ou de bebés nos partos.

Educação

Quanto à educação, a JBG conta que se discutiu e analisou muito. Na zona, definiram-se quatro níveis de educação que duram o tempo necessário a cada aluno para adquirir as capacidades:

– o primeiro nível (pré-escolar) chama-se Despertar e começa a partir dos 4 ou 5 anos; as actividades são canções, jogos, actividades em grupo, …

– o segundo nível é chamado Novo Amanhecer;

– o terceiro nível chama-se Nova Criação;

– e o quarto nível chama-se Caminho para o Futuro.

As matérias a partir do segundo nível são: leitura, escrita, matemáticas, vida e meio ambiente, línguas, história… Geralmente, os horários das aulas são das 7h às 13h, com um intervalo para o pequeno-almoço, e há escola 3 dias por semana. Normalmente não há férias, mas os povos podem organizar-se conforme as suas necessidades e por vezes fazem-se férias [escolares] durante a colheita do café. As aulas também estão abertas às crianças de famílias que não são zapatistas.

O responsável põe muita ênfase na importância da educação para a construção da autonomia: “É uma obrigação para nos prepararmos para a luta e contra os nossos inimigos”. É fácil enganar uma pessoa que não sabe ler. “Por isso a educação é obrigatória e aberta não só às crianças mas também aos adultos”.

Em todas as comunidades trabalham promotores de educação que recebem uma formação em dois níveis. Até agora foram formadas seis gerações de promotores do primeiro nível e vai-se começar uma formação de segundo nível feita por um grupo já formado. Na quinta geração de formação, ensinou-se a alfabetização de adultos para que a possam desenvolver nas suas comunidades.

Os promotores não trabalham por dinheiro, mas por consciência. “Eles não recebem um salário pelo seu trabalho mas as comunidades organizam-se de diferentes maneiras para os manter e por vezes ajudá-los no seu trabalho”.

Trabalhos colectivos

O trabalho colectivo tem um papel importante na autonomia zapatista. Existem cooperativas de herdades, de lojas, de adegas, etc. ao nível das comunidades e dos municípios que se organizam através de assembleias e de uma administração própria eleita no nível correspondente.

Agro-ecologia e água

15-2010-07-14-la-realidad-_12_A JBG explica-nos que se procura uma maior formação nas comunidades sobre alternativas aos líquidos tóxicos que são muito maus para a terra e a natureza e difunde-se a ideia do cuidado com a terra, com a água e com a natureza. A questão do lixo é tratada na prevenção sanitária como um dos 47 pontos do programa. O lixo é classificado: o lixo orgânico volta a ser utilizado e o lixo inorgânico é depositado num espaço delimitado.

As comunidades que têm um manancial ou um regato aprenderam que não se deve derrubar as árvores para que ele não venha a secar. Quando lhes falta água, junta-se a água das chuvas e fazem-se projectos de captação de água. Há problemas de contaminação dos rios que atravessam várias comunidades.

Até agora não foi detectado milho transgénico na zona.

As mulheres

Agora está a ser impulsionado o trabalho das mulheres em questões de trabalho colectivo, de saúde, de educação e de autoridades, para participarem mais. Está a ser difícil porque as mulheres pensam que não vão ser capazes. Mas isso também é transmitido a partir da educação e há reuniões de mulheres. Quando têm responsabilidades, o marido encarrega-se dos filhos e, se não, é a comunidade que se organiza e apoia.

Cultura

Na cultura as pessoas mais velhas, os avôs, são um recurso importante a muitos níveis. Na educação transmitem os seus conhecimentos e o respeito mútuo. No campo sabem como se respeita a mãe terra (licença para semear ou cortar árvores…). Também dão ideias sobre como se podem organizar e resistir. Transmitem, além disso, os seus conhecimentos sobre plantas medicinais e sobre a história (relatos, experiências vividas). Tudo isso “permite compreendermos onde estamos agora”.

Quanto à música, existem grupos juvenis nas aldeias. A música permite transmitir, é um modo de alegria, de conhecimento, de experiência, de luta. Agora com a tecnologia que há por todo o lado estamos a perder os instrumentos tradicionais, como a marimba, a guitarra ou os tambores.

Comunicação

Há duas rádios na zona, cujos locutores foram formados para aprender como se faz. Fazem-se programas de saúde, de educação ou de pedidos; passam todo o tipo de música: tradicional, actual ou revolucionária. Não têm muita potência mas são ouvidas pelo menos nas comunidades em torno das cabinas.

A “Rádio Despertar, a voz dos MAREZ” transmite manhãs e tardes a partir de Chayavez. Organizam-se em 4 turnos de 5 pessoas, que duram 15 dias.

A “Radio San Pedro, a voz da Esperança”, do município Emiliano Zapata, transmite com gerador, o que é muito dispendioso. Por isso trabalha só aos sábados e domingos. Organiza-se em 8 turnos de 4 pessoas que duram 8 dias.

Quando aos vídeos, são dados cursos para fazer filmes e gravações que são usados para as rádios e a educação.

Autonomia política

21-2010-07-15-sjdel-rio-1Em La Realidad, a JBG conta com 24 membros, todos nomeados nas assembleias dos municípios. Um dos princípios, no momento da nomeação, é a aplicação da equidade homens-mulheres. As autoridades da JBG têm um mandato de 3 anos e, com a preocupação de uma transição eficaz, após 2 anos de trabalho, uma parte da futura JBG integra a equipa em funções. Aqui como nas outras zonas, as responsabilidades são exercidas por turnos. Assim, a cada quinzena, há um novo turno que substitui o anterior. Um elemento distintivo em La Realidad é que cada membro da Junta tem uma delegação específica: cada turno conta com o seu encarregado da saúde, da educação, da comunicação, da agro-ecologia…

As aldeias nomeiam encarregados para a comissão de vigilância cuja responsabilidade é verificar que as acções da JBG são conformes aos objectivos de que foi encarregada.

O acesso às responsabilidades é condicionado por dois critérios: ter pelo menos 18 anos e, para a Junta, ter já exercido um cargo ao nível da aldeia ou do município.

O Caracol de La Realidad agrupa 4 municípios e cada um deles designa as suas próprias autoridades nas suas assembleias.

A justiça

Fazer justiça, nas comunidades zapatistas, não pode conceber-se à imagem desta justiça institucional, que sanciona com dinheiro e garante a dominação dos poderosos. Aqui, em La Realidad, as sanções medem-se em dias de trabalho ao serviço da comunidade. De facto há uma cela de encarceramento para os casos mais graves mas trata-se de uma medida de extrema excepção e, em todos os casos, é usada por períodos muito limitados e associada a um trabalho colectivo.

Não há uma idade determinada para se poder ser sancionado mas, se for uma criança, tem de ser reconhecida como consciente do seu erro quando este ocorreu. Não sendo assim, não se aplica nenhuma sanção, antes uma explicação para que compreenda.

As comissões encarregadas da justiça existem a todos os níveis da organização: aldeia, município e zona. A grande maioria dos casos são resolvidos no primeiro grau desta cadeia. É muito raro que a Junta seja chamada a arbitrar um conflito.

O banco

Em La Realidad existe uma estrutura do movimento zapatista única até agora: “O Banco Popular Autónomo Zapatista, BANPAZ”. O seu nome não define exactamente a função já que a sua vocação é responder à problemática do empréstimo, e até agora somente em questões de saúde. O banco zapatista não tem, de forma alguma, a possibilidade de um serviço de aforro. Foi constituído em Janeiro de 2008, na base de um fundo reunido graças ao imposto de 10% sobre as estradas cobrado ao governo. O banco é um órgão de empréstimos destinado aos membros da organização que se encontram em dificuldade financeira por razões de saúde. Empresta quantidades que andam à volta dos 5.000 a 6.000 pesos e que podem chegar a um máximo de 10.000 pesos e que são reembolsados com uma taxa de 2%, enquanto o juro de empréstimo que se pratica lá fora anda à volta dos 16%. A aplicação desta taxa não corresponde, evidentemente, a nenhum tipo de juro especulativo. Trata-se apenas de garantir a estabilidade do fundo perante a realidade de outra taxa, a da inflação. Os empréstimos concedidos só são acessíveis aos zapatistas e estes têm de ter um certificado do promotor de saúde da sua comunidade para pedir o acordo da JBG.

Até agora, a caixa de empréstimos limitou-se a acções de saúde. No entanto, depois de mais de dois anos de funcionamento, o balanço é muito positivo e a questão da sua extensão a iniciativas agrícolas colectivas está a ser ponderada.

Original em castelhano aqui. Tradução: Passa Palavra

[FIM DO 7º DIÁRIO]

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