Os problemas económicos da Grécia puderam converter-se numa crise devido à insuficiente supranacionalização da União Europeia e da zona do euro. Por João Bernardo

Um exemplo flagrante da insuficiência dos mecanismos de regulação é a crise financeira da Grécia e os problemas surgidos com outros países da margem meridional da zona do euro. (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso português, chamo mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e bilião ao que no Brasil se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012.)

A crise na Grécia

O problema fundamental da Grécia, como de muitos outros países, é um atraso tecnológico que provoca uma baixa produtividade e, portanto, lhe diminui a capacidade concorrencial, agravado por uma inflação superior à média europeia, que compromete a competitividade avaliada em termos monetários. Apesar disto, depois de a Grécia ter aderido ao euro em 2001, a sua economia cresceu até 2008 a uma taxa anual de 4%, mas entretanto o défice orçamental aumentou para 12,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2009 e a dívida pública, que já era superior a 100% do PIB aquando da adesão ao euro, subiu para 115% em 2009 e para 124% em 2010.

crise-8-bAntes de prosseguir, convém meditar um pouco sobre o facto de não existir uma bitola científica para estabelecer o que seja uma dívida pública demasiado elevada. Até ao começo da crise financeira de 2007 admitia-se comummente que os países ricos podiam sem problemas suportar dívidas públicas até 60% do PIB. Este limite era aceite pelo Fundo Monetário Internacional e foi mesmo adoptado no Tratado de Maastricht, que estabelece as normas de adesão à zona do euro. Mas os especialistas não conhecem quaisquer bases sérias para sustentar a regra dos 60%, e as autoridades económicas deixam-se guiar por princípios cuja antiguidade faz esquecer a falta de fundamentação.

crise-8-aUma regra, porém, torna-se válida desde que todos acreditem nela, e a Grécia foi uma nova vítima. O que agravou a situação da Grécia, no entanto, foi o facto de a sua economia ter passado a depender cada vez mais dos empréstimos estrangeiros, porque existe uma grande diferença entre dívidas financiadas pela poupança interna e dívidas financiadas por capitais transnacionais voláteis. A partir do momento em que estes capitais começaram a recear que o governo grego fosse incapaz de cumprir as suas obrigações, retraíram-se e passou a ser mais onerosa a obtenção de novos empréstimos. Perante isto, quais as opções do governo grego?

O tipo de inflação suscitado pela desvalorização, que constitui um recurso habitual para reduzir a carga da dívida pública, é impossível num país que não dispõe de moeda própria. O governo grego não pode combinar a severidade fiscal com o laxismo monetário. Resta apenas o corte das despesas e o aumento dos impostos, duas medidas que suscitam naturalmente a hostilidade da população e cuja aplicação é politicamente pouco tranquila, tanto mais que, segundo Friedrich Schneider, da Universidade de Linz, a economia paralela representa na Grécia, em 2010, 25% do PIB. Ora, as pessoas evitam pagar impostos porque acham que o Estado não lhes dá uma compensação suficiente em serviços públicos e, se em condição normais 1/4 da economia grega foge ao fisco, o que sucederá quando o corte das despesas governamentais reduzir mais ainda os serviços públicos? Os governantes não têm meios para escapar a este dilema, mas sem o agravamento fiscal e a diminuição das despesas os credores estrangeiros perdem a confiança e sobe o custo da dívida. Ora, 70% da dívida pública grega dependem do crédito externo. Entre a confiança da população e a confiança dos credores, não há que hesitar. O governo grego anunciou um plano para baixar o défice orçamental para 8,7% do PIB em 2010 e para 3% em 2012 ou 2013.

Os gregos gritaram a sua indignação tão alto que em todo o mundo foram ouvidos. Mas os períodos de crise, apesar de serem aqueles em que as contradições mais agudamente se fazem sentir, não são propícios a grandes lutas. Uma crise, reduzindo a actividade económica, provoca o aumento do desemprego e, portanto, o aumento da concorrência entre os assalariados no mercado de trabalho. Os patrões sabem que o medo de perder o emprego é um importante factor de acalmia social, a tal ponto que, para travar as lutas, promovem frequentemente despedimentos [demissões] superiores ao necessário; tanto mais que agora, com a precarização das relações de trabalho e o trabalho informal, eles podem precipitar as pessoas no desemprego formal sem sequer ficarem privados da sua actividade. Os sindicatos fizeram na Grécia o que sempre fazem nestas ocasiões, lançaram os trabalhadores na rua, para que eles desafogassem ali a sua cólera em vez de a materializarem dentro das empresas. E organizaram greves simbólicas, que não acirraram significativamente a luta contra os patrões. Mas a luta de classes é mais — ou é outra coisa — do que a luta contra o governo.

É elucidativo constatar que durante esta crise a literatura económica especializada não tem revelado qualquer receio de um surto de contestação. Penso que, se ocorrer, a contestação será menos no âmbito das empresas e mais no plano das políticas estatais, devida à insatisfação dos funcionários do Estado com a redução do défice orçamental e devida ainda à tentativa de manter certas regalias corporativas. O problema é que os conflitos neste plano estão longe de corresponder à luta contra o capital e podem mesmo distorcê-la. Por mais barulho que façam, as lutas que se verificam na rua e não nas empresas não colocam limites ao processo de exploração. Aliás, desde o início da crise financeira só dois governos caíram, o da Islândia e o da Letónia.

E assim talvez o governo grego consiga a margem política suficiente para impor aquele colossal corte de despesas. Trata-se de uma perversa vitória de supply siders de um novo tipo. Os anteriores, adoptando um ponto de vista empresarial, procuravam reanimar a economia mediante o corte das despesas públicas acompanhado pela diminuição dos impostos que recaíam sobre as empresas. Com efeito, na década de 1990 alguns países conseguiram um elevado crescimento económico reduzindo os impostos, de forma a atrair do estrangeiro investimentos e crédito. Mas isso implicou o aumento do défice orçamental e da dívida pública, e agora este aumento serve de pretexto para uma política de corte de despesas que continue a atrair os capitais. Só que os supply siders que triunfaram na crise grega representam não os empresários mas os credores, e propõem-se reduzir as despesas e ainda aumentar os impostos, apenas para satisfazer os capitais voláteis transnacionais. Esta política é tanto mais perversa quanto os cortes orçamentais irão agravar a recessão, fazendo com que piore a situação do país. Entre o final do primeiro trimestre de 2009 e igual período de 2010 a economia grega contraiu-se 2,5%, e em meados de 2010 os gregos sofriam o sétimo trimestre consecutivo de retracção. Em Maio de 2010 a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) previu para este ano uma contracção de 3,7%. Ainda mais pessimistas foram as estimativas da economista Laurence Boone, do banco de investimentos Barclays Capital, avaliando que os cortes orçamentais gregos representam 7% do PIB do país em 2010 e 4% em 2011. A Standard & Poor’s, uma firma especializada no estabelecimento de índices de crédito, calculou que só em 2017 o PIB grego voltará a alcançar o seu nível de 2008. E como o governo necessita desesperadamente de grandes empréstimos, sucederá que, ao mesmo tempo que a recessão leva o PIB a reduzir-se, a dívida aumenta, agravando-se o problema pelos dois lados. Os especialistas calculam que, apesar das brutais medidas restritivas prometidas pelo governo, e em parte também por causa destas medidas, a Grécia se veja com uma dívida pública de 150% do PIB e sem possibilidades de crescimento económico.

crise-8-eOs detentores dos capitais voláteis, especialmente propensos a entrar em pânico e a disseminá-lo, temiam que o governo de Atenas não cumprisse as suas obrigações e decretasse a falência da Grécia, e foi este mesmo o conselho que a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, deu aos gregos, lembrando a falência do seu próprio país. Mas esta solução não é viável, porque a Grécia está integrada numa zona monetária mais ampla, o que não sucede com a Argentina. Um relatório publicado em Setembro de 2010 por Research on Money and Finance, um grupo de especialistas de esquerda, apontou que uma falência do país e uma saída da zona do euro «exigem alianças radicais no plano político e social». Estarão os trabalhadores gregos em condições de impulsionar um processo revolucionário? Entretanto, The Economist de 17 de Abril de 2010 calculou que o montante de títulos do governo grego detido pelos bancos da zona do euro se situasse entre um mínimo de 62 milhares de milhões de euros e um máximo de 121 milhares de milhões; e o montante detido pela globalidade dos bancos estrangeiros situar-se-ia entre 106 milhares de milhões de euros e 207 milhares de milhões. Segundo o Banco de Pagamentos Internacionais, os empréstimos feitos por bancos estrangeiros ao governo grego, aos bancos gregos e ao sector privado grego ascendiam, no final de 2009, a 164 milhares de milhões de euros, dos quais talvez 76 milhares de milhões fossem detidos por bancos da zona do euro. Uma falência da Grécia repercutir-se-ia para além destes montantes, já de si muito elevados, e desencadearia um pânico financeiro que possivelmente não pararia na Europa.

Mas como pôde tudo isto suceder devido a uma economia como a grega, que apenas contribui com 2,6% do PIB da zona do euro?

Atrasos e hesitações

O problema foi agravado pelo facto de os dirigentes da zona do euro terem sucessivamente adiado a sua resolução, de cada vez aumentando o pânico no mercado de capitais. Para resumir a saga a poucas linhas, em Abril de 2010 os outros quinze países da zona do euro decidiram adiantar à Grécia até 30 milhares de milhões de euros, esperando-se que o Fundo Monetário Internacional adiantasse mais 15 milhares de milhões. Mas entretanto nada se fez, e a procrastinação dos dirigentes europeus, avolumando a inquietação nos mercados financeiros, levou a que não houvesse capitais privados interessados em abrir crédito ao governo de Atenas e, portanto, disparasse o custo da dívida. Deste modo, nos primeiros dias de Maio parecia já necessário que os dirigentes europeus adiantassem à Grécia mais de 100 milhares de milhões de euros ou mesmo, segundo outros cálculos, 150 milhares de milhões ao longo dos três próximos anos. Finalmente, na reunião de 8 e 9 de Maio de 2010, os dirigentes da União Europeia comprometeram-se a alimentar um fundo de estabilização para a zona do euro no montante de 500 milhares de milhões de euros, que deveria ser apoiado por uma contribuição do Fundo Monetário Internacional até ao montante máximo de 250 milhares de milhões de euros.

crise-8-hOs atrasos e as hesitações dos dirigentes europeus contribuíram para que, num mês, o montante máximo previsto aumentasse 1567%. Mas esta «extraordinária incompetência», como a classificou The Economist de 1 de Maio de 2010, parece-me ter causas institucionais e não pessoais. As dificuldades económicas da Grécia converteram-se numa crise devido à insuficiente supranacionalização da União Europeia e da zona do euro. Por um lado as soberanias nacionais estão limitadas, mas por outro lado este facto não foi reconhecido publicamente e não se estabeleceram instituições reguladoras supranacionais com amplos poderes de decisão. Os governantes europeus dependem de eleições nos respectivos países, embora tenham de governar um conglomerado de nações, e esta insuficiente supranacionalização impede a União Europeia e a zona do euro de responderem eficazmente aos movimentos transnacionais de capital. A esquerda que fez campanha contra o reforço das instituições coordenadoras da União Europeia não teve pudor em considerar como seus os resultados obtidos com a soma dos votos da direita nacionalista. O nacionalismo de esquerda não é só uma política funesta. Ele é hoje, também, uma política arcaica. Foi por não ter o mínimo poder de escolha que o governo grego se viu sem opções, ou com uma única opção, que talvez seja a pior de todas. A impossibilidade de os governos das economias menores da zona do euro saírem do círculo vicioso não significa que, mesmo dentro do capitalismo, não haja outros rumos possíveis. Significa que esses rumos não dependem do país que contribui com 2,6% para o PIB da zona do euro, mas da Alemanha, onde a tecnocracia se tem oposto às propostas francesas em prol de um governo económico comunitário com capacidade de decisão sobre a política fiscal e a política monetária.

crise-8-jOs problemas da zona do euro não vêm de ela incluir países díspares e em situações económicas muito distintas, porque um país com moeda própria também é formado por regiões diversas, com diferentes taxas de inflação locais e com problemas diferentes; mas obedece a uma centralização monetária e fiscal. O grande absurdo foi edificar uma união monetária sem ao mesmo tempo instaurar entre os países membros dessa união mecanismos centralizados de coordenação fiscal. Para agravar a situação, o euro foi instituído sem ficar previsto um sistema que permitisse auxiliar um país membro incapacitado de recorrer ao mercado de capitais. Mas quando o governo alemão, em Março de 2010, pôs a circular a ideia de constituir um equivalente europeu do Fundo Monetário Internacional, o acolhimento não foi entusiástico e Axel Weber, presidente do banco central alemão, o Bundesbank, e aliás uma das personalidades faladas para próximo presidente do Banco Central Europeu, considerou a proposta contraproducente. Decerto isto se inscreveu no conflito entre tendências que ultimamente tem atravessado o Banco Central Europeu.

Segundo Thomas Mayer — economista-chefe do Deutsche Bank e um dos primeiros a propor, em 2009, a ideia de um fundo monetário europeu — a recente participação do Banco Central Europeu no pacote de salvamento da Grécia ultrapassou dois limites que o Bundesbank julgava que não seriam violados, o de que cada país assumiria a responsabilidade pelas suas finanças públicas e o de que o Banco Central Europeu nunca seria um agente da política fiscal. Com efeito, o Banco Central Europeu, que até então mantivera uma linha rigorosamente monetarista, começou a comprar no mercado títulos governamentais, com o objectivo de reduzir os custos do crédito para os países da zona do euro que enfrentavam maiores dificuldades. Este tipo de operações equivale a aumentar a massa monetária em circulação — neste caso no montante de 16,5 milhares de milhões de euros — o que parece indispensável perante a crise de crédito que afecta a Grécia e outros países da zona do euro. Mas os monetaristas, que sempre defendem os interesses dos credores, consideram que nessas circunstâncias se deve unicamente proceder ao corte das despesas governamentais, quaisquer que sejam os efeitos catastróficos que isto provoque no crescimento económico. Entretanto o Banco Central Europeu reforçou a ajuda prestada aos bancos privados da zona do euro, tendo-lhes adiantado pelo menos 800 milhares de milhões de euros até ao começo de Junho de 2010. Numa interpretação caridosa, as declarações contraditórias proferidas durante a crise grega pelo presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, podem explicar-se como uma tentativa de manter um equilíbrio precário entre correntes opostas, mas a função reguladora do Banco não sai fortalecida.

A crise que ameaça Portugal

O próximo país que se apresenta na fila de espera é Portugal. O endividamento total, tanto público como privado, é muito alto, equivalendo em conjunto a 479% do PIB no final de 2009, enquanto na Grécia a taxa correspondente foi 296%. A dívida pública equivaleu em 2009 a 77% do PIB e equivale a 85% em 2010, mostrando tendência para aumentar, e a taxa de endividamento dos agregados familiares está perto de 100% do PIB, aproximando-se de 140% a dívida das companhias não-financeiras. Por seu lado, o défice orçamental não anda muito longe do grego, mantendo-se numa média de 9% do PIB em 2001-2008 e passando em 2009 para 9,3% ou 9,4%. O pior é que a economia portuguesa depende muito do crédito externo, mais ainda do que sucede na Grécia. Enquanto a dívida externa portuguesa equivalia no final de 2009 a 233% do PIB, a grega equivalia a 162%. Mas, contrariamente ao que sucede na Grécia, onde no final de 2009 um pouco mais de metade da dívida externa era da responsabilidade do governo, em Portugal o governo é responsável por cerca de 1/4 da dívida externa, cabendo 55% às companhias financeiras. Usando outra perspectiva de avaliação, 19% da dívida pública portuguesa no final de 2009 era interna, enquanto 81% dependia do crédito externo. Uma vez mais, note-se que na Grécia as taxas correspondentes foram 30% e 70%, o que confirma o grau superior de exposição da economia portuguesa. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a dívida líquida internacional (o montante devido pelos residentes aos estrangeiros, menos os activos estrangeiros na posse de residentes) de Portugal equivaleu em 2008 a 96% do PIB e a 112% em 2009, uma percentagem maior do que a grega. E, segundo o Banco de Pagamentos Internacionais, os bancos estrangeiros detinham, no final de 2009, 198 milhares de milhões de euros da dívida bruta, o correspondente a cerca de 120% do PIB, em grande parte da responsabilidade de empresas e agregados familiares. Pior ainda, a dívida líquida dos bancos portugueses ao estrangeiro correspondeu em 2009 a cerca de 46% do PIB. Assim, toda a economia portuguesa se tornou dependente da confiança dos capitais estrangeiros, num grau superior à Grécia.

crise-8-cTambém em Portugal não existem — a menos de uma revolução, que infelizmente não parece estar na ordem do dia — opções possíveis no interior de um país responsável por apenas 1,8% do PIB da zona do euro, menos do que a Grécia, e sujeito em elevado grau ao crédito externo. Só o eleitoralismo dos partidos de oposição pode fazer crer o contrário. Em Lisboa, tal como em Atenas, não se encontrou outro caminho senão aumentar os impostos e reduzir as despesas públicas. E já que, segundo Friedrich Schneider, a economia paralela corresponde em Portugal, em 2010, a 20% do PIB, também aqui o dilema é o mesmo. Ora, como as medidas que o governo português se vê obrigado a tomar começaram a prejudicar seriamente aqueles segmentos a que os jornalistas costumam chamar «classe média», e como estes segmentos desfrutam de uma influência desproporcionada nos órgãos de informação de massa e nos blogs da internet, avoluma-se o coro dos protestos. Isto não teria qualquer importância se não se avolumassem igualmente as ilusões nacionalistas, fazendo crer que os governantes do mais miserável país da zona do euro podem tomar opções que cabem apenas aos principais espaços económicos da zona. As populações da Grécia e de Portugal sofrem com as actuais medidas de restrição financeira e de agravamento fiscal, mas sofreriam muito mais se a crise atingisse a Alemanha e a França. Assim, talvez um dos resultados da crise grega e da crise portuguesa seja o reforço da supranacionalização no seio da zona do euro e da União Europeia e uma redução da soberania dos países membros.

Deve avaliar-se nesta perspectiva a iniciativa tomada em Setembro de 2010 pelos ministros das Finanças da União Europeia, permitindo que as políticas económicas e orçamentais dos Estados membros sejam, de acordo com o comunicado oficial, «vigiadas durante um período de seis meses em cada ano, a partir de 2011, a fim de detectar qualquer incompatibilidade ou desequilíbrio à nascença», e só posteriormente os orçamentos sejam submetidos à aprovação dos parlamentos nacionais. No que diz respeito a Portugal, o reforço da internacionalização era já constatável ao sabermos que em Maio de 2010 os bancos portugueses duplicaram relativamente ao mês anterior os empréstimos contraídos junto ao Banco Central Europeu, perante a dificuldade crescente de obterem fundos no mercado de capitais.

O governo português propôs-se cortar o défice orçamental de 9,3% ou 9,4% do PIB em 2009 para 2,8% em 2013. E em Lisboa, do mesmo modo que em Atenas, embora com mais compostura e menos esquerdistas, os sindicatos canalizaram para a rua a indignação dos trabalhadores e pouparam os patrões a um confronto de classe. Não é difícil prever os efeitos que estas medidas recessivas terão numa economia que se caracterizava já pela debilidade estrutural. É certo que a economia portuguesa cresceu 1,7% entre o primeiro trimestre de 2009 e o primeiro trimestre de 2010 e 1,5% entre os segundos trimestres de ambos os anos, mas ficou praticamente estagnada durante o segundo trimestre de 2010, registando um crescimento de 02%. Desde 2001, data da adesão ao euro, até 2008 o PIB português aumentou a uma taxa média anual inferior a 1%, o aumento real mais baixo da zona. Não só as empresas portuguesas não conseguem concorrer com as outras empresas europeias em termos de produtividade, devido ao atraso tecnológico e a um nível relativamente baixo de qualificação da força de trabalho, como também não conseguem concorrer em termos de simples competitividade, medida pelo valor nominal dos salários em euros ou em dólares, porque existem noutros continentes e no leste da Europa países onde os salários nominais são inferiores e onde é idêntica a qualidade dos produtos e dos serviços.

É certo que o governo tem um plano para aumentar a produtividade, baseando-se nos centros de pesquisa científica para criar microempresas muito sofisticadas e vocacionadas directamente para nichos do mercado mundial. No papel, a proposta é interessante, mas será que se consegue transformar assim o tecido social do empresariado português? De acordo com um inquérito realizado pelos institutos nacionais de estatística dos dois países ibéricos, em 2004 apenas 11% dos empresários portugueses tinham licenciatura universitária (29% na média da União Europeia), enquanto 13% dos empregados tinham licenciatura universitária (24% na média da União Europeia). Não é só a diferença relativamente à média europeia que importa ressaltar, mas o facto anómalo de haver em Portugal uma maior percentagem de trabalhadores do que de patrões com o curso universitário. A diferença agravou-se, porque em 2010, segundo o Instituto Nacional de Estatística, 9% dos patrões possuíam curso universitário, contra 19% dos empregados. Estas cifras dizem muita coisa acerca da travagem dos mecanismos da produtividade em Portugal.

crise-8-kOs cálculos de Laurence Boone, que mencionei já a propósito da Grécia, indicam que os cortes orçamentais decididos pelo governo de Lisboa representam 2,5% do PIB em 2010 e 3,1% em 2011. Entretanto, segundo o Banco Mundial, as despesas com as forças armadas consumiram 2,2% do PIB em 2005, e 2% em 2007 e 2008. A Grécia parece, aqui também, superar Portugal, dedicando aos seus militares 3,6% do PIB em 2008. Como termos de comparação, convém saber que em 2008 a Espanha gastou 1,2% do PIB com as suas forças armadas; a França e o Reino Unido, que possuem armas atómicas, gastaram respectivamente 2,3% e 2,5%; o Brasil limitou-se a 1,5%; e a China dedicou ao seu colossal exército exactamente a mesma percentagem do PIB despendida em Portugal. Compromete-se o crescimento económico enquanto se sustenta um aparelho militar inútil no plano externo, porque nas actuais formas de guerra Portugal é indefensável nas suas fronteiras, e inútil no plano interno, porque são outros os órgãos repressivos. Entre generais e almirantes supérfluos e empresários ignorantes fica pouco espaço para a modernização capitalista.

Esta série inclui os seguintes artigos
1) O declínio dos Estados Unidos
2) A nova hegemonia
3) A China em primeiro plano
4) O problema da produtividade
5) Transnacionalização e espaços nacionais
6) A crise do neoliberalismo
7) Uma crise de regulação
8) A crise de regulação na zona do euro

2 COMENTÁRIOS

  1. Caro João Bernardo,

    Muito obrigado por esta série de artigos. Mas muito obrigado mesmo!

    Não farei grandes comentários, pois a complexidade do tema me escapa em vários pontos, limitando-me, portanto, a fazer algumas perguntas que podem parecer banais:

    1) Se compreendi bem, a principal causa do tal “decoupling” entre as economias emergentes e as centrais seriam os ganhos de produtividade das primeiras em detrimento das últimas. Se este for o caso, consigo muito bem entender que isso se aplique à China, mas, em um país como o Brasil, o motor do crescimento não seria ainda a grande valorização das commodities que se deu nos últimos anos – uma valorização que favoreceu sensivelmente a balança comercial do governo, aumentando sua capacidade de investimento e de intervenção financeira?

    2) As economias dos países emergentes estariam realmente tornando-se mais produtivas do que a dos países centrais, ou estariam apenas tirando o atraso e provocando, assim, uma situação concorrencial inédita, mas com “prazo de validade”? Se a segunda opção for verdadeira, o fluxo de capitais destinado aos países emergentes e a sua consequente expansão econômica seriam motivados pela expansão da fronteira do capital nestes países, a qual tende a diminuir em alguns anos. Se isto realmente acontecer, as vantagens competitivas dos países emergentes não terão deixado de existir, e não se produzirá uma nova situação concorrencial outra vez favorável aos países centrais de hoje?

    Pergunto isto porque, com exceção da China (e talvez da Índia, que não conheço bem), não vejo entre outros países emergentes o mesmo nível de investimento tecnológico e em educação, o qual segue sendo ainda muito inferior ao dos países centrais. O que hoje são, para países como Brasil e África do Sul, fatores de expansão econômica, como a venda de commodities, o investimento em infraestrutura básica e a inclusão de novos contingentes de assalariados, amanhã pode representar um atraso, pois em uma ou algumas décadas as novas fronteiras do capital estarão ligadas à criação de novas necessidades, o que exige grandes investimentos tecnológicos.

    3) Por fim, a pergunta que considero mais importante: quais são, na sua opinião, as consequencias desta transição de hegemonia no capitalismo para a classe trabalhadora e para um projeto de transformação radical das relações sociais? Sobretudo considerando-se que a China é dirigida por uma ditadura, e que a expansão de países como o Brasil, a China e a Índia não vem acompanhada de reformas sociais de base, ameaçando ainda mais os fragilizados Estados de bem-estar da Europa ocidental.

  2. Peço-lhe antecipadamente desculpa, Eduardo Tomazine, pela extensão da minha resposta, mas é mais fácil formular perguntas breves do que réplicas breves, sobretudo quando as questões são como as suas. E agradeço-lhe ter-me dado oportunidade para estas digressões.

    Em economia já é difícil estabelecer factos ou tendências, mais complicado ainda é definir-lhes as causas, sobretudo porque nunca se trata de uma causa única, mas de uma estrutura hierarquizada de causas. Ora, o decoupling observa-se numa variedade de aspectos fundamentais e eu enunciei alguns deles. A questão da produtividade é uma condição necessária para o decoupling, mas está muito longe de ser a condição única. E eu referi a aceleração das taxas de crescimento da produtividade não na globalidade dos países emergentes, mas em três deles, a que alguns economistas, com a moda dos acrónimos, têm chamado os BICs, ou seja, os BRICs sem a Rússia, reduzidos ao Brasil, à Índia e à China. (Os acrónimos são realmente uma moda, e agora, com a crise na faixa meridional da zona do euro, já há quem fale dos PIGs, que em inglês significa porcos, ou seja, Portugal, Itália e Grécia. Mas voltemos às coisas sérias.)

    É certo que as matérias-primas constituem uma rubrica importante nas exportações brasileiras, mas será que isto coloca o Brasil no mesmo nível, por exemplo, do leste do Congo? Uma empresa como a Vale dispõe de uma tecnologia sofisticada, e neste caso a exportação de minério não indica qualquer atraso tecnológico, mas, pelo contrário, um grande avanço. Ou vejamos o exemplo da carne e dos preparados de carne. O Brasil deu origem a uma empresa transnacional que é actualmente a maior em todo o mundo no ramo do abate e comercialização de bovinos, e do mesmo modo vejo citada na imprensa especializada a Perdigão e Sadia como campeã na criação e aplicação de tecnologias muito produtivas. O mesmo a respeito do agronegócio brasileiro e da exportação de soja.

    Desde a época do regime militar, e independentemente da cor política dos governos seguintes, o Brasil prosseguiu uma política sistemática de qualificação da força de trabalho, pondo fim à universidade vocacionada para a formação de elites e desenvolvendo a universidade de massa. Quando eu comecei a leccionar no Brasil, há vinte e cinco anos atrás, a grande moda nas faculdades de Educação e nas de Administração era falar de «capital humano». Tratava-se de criar um proletariado muito qualificado, e é para isso que as universidades servem hoje. Ora, quando os empresários brasileiros, apesar da expansão do ensino universitário de massa, se queixam da escassez da oferta de força de trabalho qualificada, eles estão a assinalar uma forte tendência de fundo para o crescimento da produtividade.

    Não devemos ser aqui demasiado entusiastas, porque qualquer economia matura tem obrigatoriamente uma taxa de crescimento inferior à de economias que estão a proceder a um arranque. Mas no caso da China, do Brasil e da Índia parece-me que não se trata só dessa natural diferença de taxas, mas de rumos divergentes. Os tipos de dados são infindáveis e o economista selecciona alguns que considera como indicadores relevantes, ou seja, que considera que irão indicar o comportamento da globalidade da economia. Terei eu escolhido os dados certos? Ou, mais modestamente, terei eu seguido os economistas que fizeram a escolha acertada? Veremos durante a próxima década.

    O comportamento futuro dos investimentos externos directos, ou seja, em termos genéricos, os investimentos das empresas transnacionais, fornecerá a esse respeito uma indicação decisiva. Até agora, a maior fatia deste tipo de investimentos, entre 4/5 e 2/3, tem circulado no triângulo constituído pela União Europeia, os Estados Unidos e o Japão. Será que o triângulo se converterá num pentágono ou mesmo num hexágono, incluindo a Índia?

    O capitalismo indiano depara com problemas de integração muito graves, que foram superados na China e no Brasil. Não me refiro aqui apenas às infra-estruturas materiais, mas ao que denomino de condições sociais de produção. A China é, dentro das suas fronteiras, uma cultura multimilenar unificada, enquanto a Índia nunca o foi. O Brasil unificou-se socialmente graças a três instituições: um serviço de correios muitíssimo bom, a nível mundial; a rede Globo de televisão, que padronizou a língua e unificou os interesses quotidianos; e uma enorme rede de transportes rodoviários, que cobre praticamente todas as povoações. Duvido que um filme como Central do Brasil, cujo argumento é estruturado pelo transporte rodoviário, pudesse ter sido feito noutro país. Hoje os correios foram superados pela internet, e vejo com frequência análises baseadas no número ainda reduzido de agregados familiares brasileiros com acesso à internet. Estas análises parecem-me viciadas se não levarem em conta a proliferação de cyber cafés e de lan houses. Não conheço nenhum país onde existam tantas como no Brasil. E, se a rodoviária continua a ser fundamental para o transporte da população trabalhadora, desenvolveu-se uma rede de companhias de aviação suficiente para as necessidades dos gestores de baixo nível (os altos gestores viajam em aviões privados ou fretados) e que, nos anos recentes, tem começado a voltar-se também para os trabalhadores mais bem pagos. Ainda a este respeito, recorde-se o que indiquei nesta série de artigos acerca dos investimentos que o governo chinês tem promovido nos serviços de transportes. Ora, estes mecanismos de integração social, que constituem uma das condições gerais de produção indispensáveis ao desenvolvimento do capitalismo, são ainda muito precários na Índia. Penso que este é um dos aspectos em que deve incidir a nossa atenção nos próximos anos, se pretendermos avaliar as possibilidades de desenvolvimento da Índia.

    Mas nada disto significa que os países emergentes ou só os BRICs ou só os BICs tenham assegurada uma posição sólida. Isso não existe no capitalismo, que é o primeiro modo de produção que cresce e progride apenas mediante a instabilidade. Por isso abundam na extrema-esquerda aqueles que a cada espirro gritam com entusiasmo «crise, crise»! Instabilidade e desenvolvimento desigual são condições estruturais da normalidade capitalista. O que eu quero dizer ao sustentar que vivemos hoje uma crise no — e não do — capitalismo é que estão a ser criadas condições para um novo fôlego de média ou longa duração. E, se o meu diagnóstico estiver certo, em que situação ficam os trabalhadores?

    Se suceder desta vez o que sucedeu noutras ocasiões, a maioria dos trabalhadores em países onde a economia está em recessão ou estagnada, ou seja, nos Estados Unidos, no Japão e em alguns países europeus, preferirá aceitar uma descida do nível de vida a pôr em risco a continuidade dos empregos e contribuir para o aumento da taxa de desempregados. Contrariamente ao que sucede com os professores universitários e com os alunos que dispõem de bolsas de pesquisa e que, portanto, podem ganhar a vida tranquilamente dando aulas e escrevendo monografias acerca da crise terminal do capitalismo e do horizonte de lutas que se avizinha — ou que já está aí — os trabalhadores ganham o sustento vendendo a força de trabalho e só optam pela revolução quando sentem que ela é uma alternativa viável a muito curto prazo. É por isso que há mais «revoluções» nos campi universitários do que fora deles. Em alguns daqueles países, nos serviços públicos, onde os sindicatos ainda são relativamente fortes, é possível fazer greves que, pelos seus efeitos colaterais, paralisem ou retardem outros sectores da economia. Mas não se trata nestes casos de um confronto de classes, e pretendi chamar a atenção para isso no último artigo da série, infelizmente em poucas palavras, porque o artigo já estava demasiado longo. Porém, se o confronto se ampliar do sector público para as empresas privadas o caso muda de figura, e então já será posível falar de uma luta anticapitalista. Se tal ocorrer, a França será a primeira candidata porque, de todos os países da Europa ocidental, é aí que a taxa de sindicalização é mais baixa. Por isso a França tem tido as lutas mais radicais, sem sindicatos suficientemente poderosos para as poderem conter.

    Na perspectiva das lutas sociais, todavia, é a China que sobretudo me interessa. Ora, há que levar em consideração os factores seguintes:

    a) Desde que iniciou o programa de expansão da economia de mercado, o governo chinês tem afirmado repetidamente que não aceitará taxas de crescimento tão elevadas ou tão baixas que comprometam a paz social. O governo considera que para isso é necessário assegurar uma taxa mínima de 8% de crescimento anual do Produto Interno Bruto, embora vários especialistas ocidentais achem que seriam possíveis taxas mais baixas. Como eu não tenho competência para saber quem está certo, prefiro seguir neste caso a opinião dos mais interessados, que são os governantes chineses. Portanto, do lado do governo, uma das prioridades absolutas é a manutenção da paz social.

    b) Compreende-se, nesta perspectiva, que os salários médios tenham aumentado significativamente na China nos últimos anos. Eu forneci alguns dados demonstrativos nesta série de artigos, e parece haver da parte dos governantes uma estratégia de canalizar a hostilidade dos trabalhadores contra as filiais de companhias transnacionais, sobretudo de companhias de sede nipónica, aproveitando a hostilidade latente da população chinesa contra o Japão, potência ocupante entre as duas guerras mundiais.

    c) Classificar como «ditadura» o sistema político vigente na China não é muito esclarecedor, porque há tantos tipos de ditadura como os há de democracia. O mais importante parece-me ser que na China não vigora qualquer poder pessoal e que estão bem oleados os mecanismos de substituição períodica dos dirigentes. O regime chinês é uma colossal máquina de estabelecimento de consensos no interior das classes dominantes, incluindo capitalistas de Estado e capitalistas privados, a tal ponto que foi mantida uma ala esquerdista dentro do Partido Comunista — se não fosse eu recear que a ironia passasse despercebida, escreveria: uma ala comunista dentro do Partido Comunista — e, se se virem obrigados a isso, os governantes preferirão que seja esta ala a encabeçar os protestos dos trabalhadores do que comités de base nascidos das lutas e inteiramente exteriores às burocracias oficiais.

    Quanto ao Brasil, fico perplexo ao saber que você pensa que não ocorreram aqui reformas sociais de base. Antes de mais, remeto para o dossiê publicado neste site sobre o Programa Bolsa Família. Além disso, assistimos nos últimos oito anos à consagração política de uma importantíssima mobilidade social ascendente. Num país cuja classe média mantém uma mentalidade escravocrata e racista (os maiores empresários, esses, são muitíssimo mais esclarecidos, senão não tinham conseguido chegar onde chegaram) a ascensão de uma nova elite formada por sindicalistas e por filhos e filhas de famílias pobres diplomados nas universidades de massa constitui, por si só, uma reforma da maior importância.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here