Aquela espécie de caos organizado, em que tudo foi fluído, incerto, precário e provisório, desde o primeiro ao último dia, apesar dos vários esforços para o converter numa outra coisa qualquer, funcional, ordenada, disciplinada, apresentável e respeitável. Por Ricardo Noronha

Não foi seguramente uma revolução, como começou por ser anunciada, e a democracia (aquela realmente existente, ou seja, a representativa) também não ganhou ali o seu decisivo impulso de renovação. Como acampamento teve as suas limitações e conheceu uma existência acidentada. Como assembleia foi palco de discursos estereotipados, tiques parlamentares e mais do que um vício formal, como cumpre numa reunião pública de pessoas das mais diversas sensibilidades.

rossio-1E contudo, quem tiver passado pelo Rossio durante os dez dias que durou a “acampada de Lisboa” dificilmente terá passado ao lado da dinâmica ali gerada. Centenas de pessoas a debater na praça mais movimentada da capital, grupos organizados de maneira informal, com composições oscilantes e empenhos variáveis, a experimentar os riscos e as potencialidades da decisão colectiva, um espantoso conjunto de problemas logísticos resolvidos quotidianamente por pessoas sem experiências prévias de militância, uma inesgotável sucessão de gestos inesperados e contributos modestos mas efectivos: desde a tela de cinema ao cartaz manuscrito à preciosa sombra de um pano estendido sobre as cabeças ao sol. Teve de tudo isso e muito mais aquela espécie de caos organizado, em que tudo foi fluído, incerto, precário e provisório, desde o primeiro ao último dia, apesar dos vários esforços para o converter numa outra coisa qualquer, funcional, ordenada, disciplinada, apresentável e respeitável.

Os mendigos, marginais, loucos e sonhadores que povoam as ruas de Lisboa encontraram ali repouso e refeições quentes. Alguns integraram-se e contribuíram à sua maneira, outros serviram-se do que lhes servia e observaram com atenção. Quem passava pelo Rossio parava para ver, quem gosta mais de falar recebeu o microfone e teve três minutos para desabafar, partilhar, reflectir em voz alta ou fazer às massas o seu discurso longamente ensaiado. Misto de cenário performativo e órgão de democracia directa, a assembleia tornou-se o pólo catalisador de tudo, mas nem por isso resumiu a totalidade da experiência possível naquela praça. O encontro e a partilha entre pessoas que não se conheciam ou que mal haviam trocado palavra, a possibilidade, que muitos nunca tinham imaginado, de produzir um discurso político próprio sobre o existente sem reproduzir o cânone político-mediático estabelecido, a descoberta da vida quotidiana e da história como um terreno de combate sujeito a inúmeras possibilidades – tudo isso fez dos acontecimentos do Rossio uma ilustração prática do que acontece quando centenas de sujeitos anónimos se juntam para fazer das suas fraquezas forças. Quão ridícula e grotesca pareceu a campanha eleitoral portuguesa para quem ali passou algumas horas a discutir política… Todas essas figurinhas deprimentes que se acotovelavam nos telejornais pareciam saídas de outro planeta, quando comparadas às intervenções ponderadas – fossem elas mais serenas ou mais turbulentas – ouvidas à sombra da estátua de D. Pedro IV.

rossio-2A poesia voltou a estar nas ruas e o imprevisível tornou-se banal. Ao ponto de, durante as longas noites da praça, o grupo que debatia, com a maior gravidade e não menos solenidade, o conteúdo de um manifesto que deveria representar a assembleia popular ali realizada, poder ser facilmente confundido com aquele outro que, com muito menos solenidade e sem um pingo de gravidade, elaborava na forma de um cadáver esquisito a sua própria abordagem ao assunto. Foi (e ainda é cedo para saber o que virá a ser) sobretudo isso o Rossio: um poema escrito a várias mãos, musicado com uma melodia diferente todos os dias, mas que nunca deixou de soar familiar. Como um saxofone que do telhado de um prédio encontra o violino que toca noutro quarteirão e juntos se confundem com o ruído da cidade, assim também se lançou à solta pelas ruas aquela música, oferecendo-se a quem a quisesse ouvir. Porque não temiam nada, os que fizeram sua aquela praça foram capazes de dar a ouvir um ligeiro eco do futuro.

Nota: Quem assina este texto não tem a pretensão de representar e dar a conhecer tudo aquilo que passou pelo Rossio nas últimas semanas. Inicialmente céptico em relação ao que ali tomou forma, deixei-me arrastar pelos acontecimentos sem qualquer pretensão de os influenciar. É possível e até provável que muita coisa me tenha passado ao lado. Outras pessoas há que viveram com muito maior intensidade e disponibilidade quer o acampamento quer as assembleias quer os grupos de trabalho. Bom seria que as insuficiências destas impressões as levassem a partilhar o seu próprio ponto de vista sobre o assunto.

9 COMENTÁRIOS

  1. Obrigado, Ricardo Noronha, é um belo texto que ajuda a compreender o fenómeno.

  2. Estive lá todas as noites. Não posso falar dos dias. Mas é isso mesmo que é para mim o Rossio.

  3. Ó ricardo, e falar português? Já parece aquele texto sobre o partido, publicado na Rubra, em que dizes que o Partido é a soma dos murmúrios e dos lamentos e mais não sei o quê?… Isso é idealismo. Só comento textos que compreendo e este, decididamente, não é um deles…

  4. Escrevi há dias este texto para uns amigos meus, a propósito daquilo que se estava a passar em Madrid, na Puerta del Sol. Parece-me que também virá a propósito do que se passou no Rossio, em Lisboa.

    Ontem eu ouvia na rádio (Antena1, que afinal pagamos) um comentador (que parecia ter algum crédito naquela rádio) dizer que este tipo de manifestações são “perigosas” para a democracia. E o jornalista não comentou. Fiquei preocupado com o meu QI, muito preocupado, porque havia algo que me estava a escapar, algo que eu não percebia. A sério, no contexto mundial actual, aquele comentador fez-me sentir burro …

    Eu lembrei-me, com pena, de não ter tido a oportunidade de viver o dia histórico do 25 de Abril, mas lembro-me de ter vivido um momento histórico neste país, quando milhões de portugueses se juntaram para reivindicar uma coisa que não tinha nada a ver com o nosso bem-estar, a nossa economia, ou a nossa política, nem sequer era para nós. Pedíamos apenas que devolvessem a Liberdade a Timor-Leste.
    E não foram as enormes manifestações de rua que mais me impressionaram; foram as manifestações silenciosas nocturnas. Durante várias noites muitos de nós não conseguiam ficar em casa, indiferentes. Já se sabia que se saísse para a rua, só se voltaria a casa a altas horas da manhã e que no dia seguinte iria custar muito levantar para ir trabalhar. Mas eu não conseguia ir dormir. Pairava no ar um sentimento de que algo de novo estava em curso, de que algo poderia mudar e não era possível ficar indiferente.
    Num dos pontos de encontro nas ruas de Lisboa onde nos reuníamos, havia algumas caras conhecidas, mediáticas. Em geral não se falava. Éramos poucos, talvez uma dúzia de pessoas. Cada um estava ali em silêncio a deixar o seu testemunho discreto, a marcar presença, simplesmente. A solidariedade era implícita, silenciosa. Curiosamente nunca tive sono; acho que era da raiva, ou da tristeza! Enquanto os dirigentes políticos mundiais e as Nações Unidas pesavam os interesses em jogo e discutiam se deviam fazer alguma coisa por um povo de um país minúsculo que era massacrado por uma potência regional como a Indonésia, ali nas ruas olhávamos para as velas acesas, durante horas, como se estivéssemos a velar moribundos (e na verdade era quase essa a realidade). Alguns deixavam poemas, amuletos, símbolos de todo o tipo. Foram dias inesquecíveis, em que algo mudou. E o que de mais importante mudou, não foi apenas a independência de Timor-Leste. Acho que aquilo que realmente mudou foi algo chamado Consciência.

    Acredito que sempre que estes eventos ocorrem, acontece também uma mudança da consciência individual e global que nos vai levando a novos patamares.
    Os defensores da chamada “democracia representativa” não precisam de ficar preocupados, porque isto não vai fazer a democracia cair nas ruas. O que historicamente cai nas ruas são as ditaduras. Mas talvez estejamos a chegar a um novo patamar em que outro tipo de poderes mais subtis e insidiosos comecem a cair nas ruas. Será que é isso que preocupa alguns?

  5. Enquanto em Portugal e Espanha os jovens – em sua maioria – estão a se opor aos problemas sócio-econômicos gerados pelo capitalismo com acampamentos e assembléias transitórias com democracia participativa, em Grécia – berço histórico desta democracia – os mesmos problemas estão sendo enfrentados com greve geral, coquetéis molotov, conflitos com a polícia e enfrentamentos abertos com o governo estabelecido.
    Não tenho quase nenhuma informação aprofundada sobre o que se esta a passar nestes países, mas percebo uma diferença substancial nas lutas emprendidas. Na Grécia parecem que realmente estão dispostos a enfrentar o verdadeiro motivo dos problemas, a exploração capitalista.

  6. Receio que nunca texto algum que eu escreva venha a beneficiar dos teus estimulantes comentários Vasco. É a cultura que perde e, bem assim, toda a humanidade com ela.

  7. tales, como espectador eh facil dizer qual o filme de que gostamos mais, qual o mais excitante, mas na realidade as coisas nao sao sempre espetaculares

    e tu? partcipas na assembleia? atiras o cocktail? ou ficas a olhar para o monitor?

    que todxs lutem, cada um/a como quiser

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