Por Neto Ghizzi 

“Cedo, lendo a gente descobre, lá fora existe,
não apenas um mundo mas também uma literatura”
(P. Leminski)

leminsky-5Aos meus amigos leitores de Leminski.

Este ensaio tem a pretensão de começar pelo suposto inverso. Ler Paulo Leminski através de sua obra crítica, de sua produção “teórica”, título que rejeitava: “Não sou professor, não sou nenhum teórico…”. Assim como o poeta rejeitava o procedimento de repensar a linguagem poética como ferramenta anterior ou que dominasse o primeiro momento, o da produção poética: “… sou um artista, um poeta que procurava refletir sobre o que fez, sem nunca deixar que esse tesão por refletir sobre o que faço prevalecesse.” Trair então Leminski para potencializar justamente seu trabalho poético, através de seu trabalho de repensar a poesia. Re-poetar, nas palavras do “cachorro louco”.

A primeira motivação deste ensaio vem da minha crença de que a poesia de Leminski tem se apresentado como grande fonte de inspiração na leitura contemporânea de poesia. Arrisco tal afirmação pelo simples fato de que todos os leitores de poesia hoje (2010) que conheço, por mais diversos que sejam, passaram e continuam passeando por Leminski. Desses poucos amigos leitores de poesia, nunca ouvi reclamação alguma de “verso curto” ou “empobrecimento da linguagem poética” na obra de Leminski. No máximo ouço algum: “os haikai dele são muito bons”, “o cara é foda mesmo”, “é engraçadaço, divertido”, etc. Não duvido nada da falta de rigor crítico de tais afirmações, entretanto a leitura de poesia hoje – prazerosa acima de tudo – em tempos de mercadoria que ela não pode ser (nem consegue), como disse o próprio poeta, me parece grande conquista.

leminsky-livro-31Há nesse movimento de leitura descompromissada uma potência poética, como projeto de vida e projeto de poesia, que demonstra como estamos ainda de alguma forma vivos, também fora do circuito acadêmico: leitores, críticos, e poetas. Para manter, ou melhor, continuar tal movimento, acredito ser necessário destrinchar, escarafunchar, que poética é essa que perdura. Para montar tal procedimento, escolhi começar pela análise crítica da condição poética na visão do poeta Leminski. Isto significa que a proposta deste trabalho é pesquisar o Leminski ensaísta, crítico de arte e cultura, literatura e principalmente poesia. Buscar quais são suas leituras, convicções e principalmente Anseios poéticos: o que o poeta acredita ser, e o que o poeta acredita para a poesia por vir.

leminsky-1Então, mapear as pertenças de Leminski: tropicalismo, concretismo, poesia beat, marginal-70, para esquadrinhá-lo em um contexto histórico e estético específico e largá-lo lá me interessa menos do que pesquisar sua própria produção crítica. Por mais que esta não se encaixe em um esquema de pensamento teórico, lançá-la como uma potência para a produção poética presente e futura e ainda quando possível relacioná-la com sua própria poética, sem para isso entrar num esgotamento autor x obra, mas somente buscar relações possíveis que apontem para uma preocupação com o fazer poético.

O primeiro livro publicado com ensaios de Leminski intitula-se “Ensaios e Anseios Crípticos”, reunindo alguns trabalhos feitos para a imprensa jornalística, como comenta Alice Ruiz no prefácio que escreve para a edição de 1997 da Pólo Editorial do Paraná, e outros dispersos que já haviam aparecido na edição de 1996 da CriarEdições. O primeiro ensaio, “Em busca do sentido”, afirma que os anseios/ensaios a seguir são “incursões conceptuais em busca do sentido”. E é justamente a palavra sentido que desaparece nos ensaios que seguem. Talvez porque no momento da escrita, nos anseios dos ensaios, o sentido já estava no próprio processo de reflexão crítica acerca do fazer poético, que é a preocupação latente da sua crítica.

No seu discurso “Poesia: paixão da linguagem”, publicado como parte da reunião “Sentidos da paixão”, pela editora Companhia das Letras em 1997, o poeta trata da questão da palavra paixão estar em moda. E afirma que, se está na moda a palavra paixão, é porque a paixão está falando. Esse tanto dizer é na verdade um chamado. Talvez seja assim que a palavra sentido desapareça na sua produção crítica, porque já se está realizando a razão da escrita nela mesma, a meta-linguagem necessária que o ensaísta reivindica em “Teses, Tesões”:

onde-esta-a-poesia-1“(…) Desde então [de Drummond], poetar, para nós, virou um ato problemático. Algo a ser pensado, desautomatizado, algo a ser inventado, desde a base. Incógnita, enigma, não é mais uma certeza. Não se sabe mais onde a poesia está. Nem aonde vai. (…)”

Cansado confesso da falta de rigor poético na poesia dos anos 70, e de um anti-intelectualismo alimentado na época, cria um poema como uma espécie de caricatura da condição poética da época, com o seu “eu poeta” imbricado em tal situação:

Poesia: 1970 [2]
Tudo que eu faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o máximo

Mal rabisco,
não dá mais pra mudar nada.
Já é um clássico.

Neste poema, que desenha um pequeno retrato da poesia no Brasil de 70, o poeta que também faz parte desta produção, mas não a aceita de braços totalmente abertos, aponta uma crítica para a desgastada falta de elaboração poética da época. É neste ponto que Leminski resgata João Cabral de Melo Neto como um exemplo de rigor e preocupação técnica e formal do poema, para demonstrar a poesia como um trabalho, como projeto, a ser revisitado e não se deixar virar clássico no primeiro rabisco. Outro poema de Leminski também apresenta elementos que apontam um Leminski leitor de Cabral, a pedra e o sono aparecem com força neste poema, lembrando o primeiro livro de poesia publicado por Cabral, “A pedra do sono”, em 1942.

Ais ou menos [3]
(oração pela descrença)

Senhor,
peço poderes sobre o sono,
esse sol em que me ponho
a sofrer meus ais ou menos,
sombra, quem sabe, dentro de um
sonho.
Quero forças para o salto
do abismo onde me encontro
ao hiato onde me falto.
Por dentro de mim, a pedra,
e, aos pés da pedra,
essa sombra, pedra que se esfalfa.
Pedra, letra, estrela à solta,
sim, quero viver sem fé,
levar a vida que falta
sem nunca saber quem é.

Eis a sua preocupação em relação ao poetar como também re-poetar, estabelecendo seu paideuma de poetas brasileiros conscientes de sua linguagem: de Mário aos concretos há uma tradição de poetas re-flexivos, re-poetas, […]. [4] os “tortos” [5] nas suas palavras. Este momento de re-poetagem proposto por Leminski pode ser pensado a partir da sua fala no “Poesia: paixão da linguagem”, quando discorre sobre as relações possíveis do poeta com a linguagem e seus momentos de amor: o masoquismo e o sadismo. Sadismo aqui como forma de superação, assim como o personagem Severin em “Vênus das Peles” de Sacher-Masoch se diz no final do romance “curado do chicote”. Depois de tanto apanhar, é a vez de devolver os golpes. No caso de Leminski, os golpes são devolvidos contra a linguagem. É o momento de re-poetar, para não ser uma vítima dócil da linguagem, nem do automatismo poético pretenso inovador, que na verdade é um reprodutor.

Leminski recorre a Lukács para afirmar que “o social na arte é a forma”. O artista/poeta não escolhe a forma que irá ser obrigado a participar, somente poderá preenchê-la com seu conteúdo. Mas esta forma é anterior, há uma gramática da linguagem a ser obedecida, e ainda há a própria língua materna que não se escolhe nascer nela. É o seu momento masoquista na relação de paixão com a linguagem. O mito romântico de liberdade de expressão na arte é revisto por Leminski para afirmar que a arte é na verdade um código de escravidões. Assim, afirma corajosamente como Barthes, em sua fala inaugural, Aula, que a língua é fascista: “pois o fascismo não é impediz de dizer, é obrigar a dizer” [6]. Seu poema “Plena pausa” [7], de alguma forma, aponta esta anterioridade arbitrária que o poeta não pode escapar:

poema-na-forlha1Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco da página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.

Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
Pálidas de tanto.

Então o poeta sofre. E é no problema etimológico da palavra paixão e do sofrer que Leminski detecta uma falta, ou uma perda na sua língua materna, o português, de uma possibilidade de sofrimento… sem sofrimento. Não temos no português um verbo que dê conta da idéia de ser objeto de uma ação, ser passivo de uma atividade sem uma concepção depreciativa embutida. “Sofrer” no português já parece carregar o fantasma cristão acompanhado de uma conotação negativa. Já que sofremos, então o poeta é uma vítima da linguagem: não escolhe a língua na qual tem de falar, e ainda tem de enfrentar uma sintaxe e uma semântica a serem seguidas. Há um limite na criação que não pode ser ultrapassado. Todo artista já é limitado por uma língua e por um estoque de formas. Mas aí Leminski afirma que um centímetro conquistado, fissurado nessa estrutura, já é um novo mundo de possibilidades.

Este gesto de golpear de volta contra a linguagem é detectado por Leminski nas vanguardas do século XX. Esse modo de criar do século XX: o novo é o belo do século XX. Como afirma no seu ensaio “Tudo, de novo”, publicado na revista Arte em Revista nº 8, “o que não for novo, nem existe”. Este estágio de superação do poeta, seu momento sádico, é a possibilidade da poesia enquanto projeto poético, que não se perde no primeiro rabisco, ou que o poetar passe da fase dos 17 anos de idade até os 40, 50, 60, como Leminski reivindica em um vídeo disponível no site Youtube.com sob o título “p. leminski”. [8]

Leminski estabelece então um momento crítico, uma espécie de fase de transição a ser superada pela produção poética. Tal preocupação aparece também no seu ensaio “3 Momentos da criação” [9]. O primeiro, transmissão de conteúdo, no qual faz uma exposição de autores ainda presos às formas que encaram a literatura como um espelho da realidade: o realismo soviético (“herói positivo”) e a estética hollywoodiana (“happy end”) andando juntos. “Os artistas que param neste primeiro momento, […] representam aquilo que se chama de ACADEMICISMO” [10]. O segundo momento, de transição, com a consciência do significante e da existência do plano sintático e pragmático da linguagem. A arte auto-referente que não é o fim da arte mas uma porta de liberação para o terceiro momento: o cruzamento de linguagens e de códigos. O golpear a linguagem, a denúncia da estrutura pela poesia.

A crítica de Leminski a esta concepção de arte academicista, passa por sua discussão acerca da forma. Em seu ensaio “Forma é poder”, o poeta descreve o processo de consolidação e apogeu da estética naturalista em consonância com a fundação do discurso jornalístico, ambos fundados na crença da “objetividade” – científica. O que é vendido como “natural” é na verdade uma convenção cultural, o natural surge como um artifício automatizado com pretensões de realismo. Leminski ainda denuncia que o discurso naturalista é castrado, repressor da fantasia e ancorado na idéia de normalidade. E norma, lembra, vem com lei que vem com poder, sendo tal poder “branco, burguês, greco-latino-cristão, positivista do século XIX” [11], e não sendo à toa então que as literaturas da América Latina no seu boom de 1950 se apoiaram no dito “fantástico” do realismo numa busca, nem sempre alcançada pois ancorada em alegoria de cartas marcadas, de burlar o discurso literário hegemônico.

Diante de tal quadro de academicismo e naturalismo, ambos saturados de norma reguladora, Leminski propõe um processo criativo engajado de arte. Não confundindo com a arte engajada “nacional-popular”, defendida intelectualmente pelo CPC [12] (que Leminski denuncia como projeto castrador). Sua proposta de arte engajada passa por engajar ativamente o leitor no processo de criação, uma arte aberta, um leitor que cria e participa do processo produtivo da arte:

poemas-de-paulo-leminski-pichados-muro-curitiba1Só a obra aberta (= desautomatizada, inovadora), engajando, ativamente, a consciência do leitor, no processo de descoberta/criação de sentidos e significados, abrindo-se para sua inteligência, recebendo-a como parceira e co-laboradora, é verdadeiramente democrática. [13]

Em mais de um momento, nas posições de Leminski, enquanto produtor e crítico de arte, é possível perceber uma luta incansável por uma relação não separada entre produtor e receptor de obra. O poeta fazia questão de chocar seu público em palestras e conferências com a frase: “Poesia se faz para poetas”, e assistir ao tumulto provocado para depois se explicar (para não precisar explicar mais): é preciso tanta poesia no receptor quanto no poeta. Até mesmo quem nunca arriscou um verso, mas lê poesia e se sensibiliza com esta arte, é um poeta, defende Leminski. E é na sua anti-epígrafe do “Catatau” (um romance-idéia) que Leminski não vai explicar mais, para justamente potencializar o engajamento de seu leitor:

REPUGNATIO BENEVOLENTIAE
Me nego a ministrar clareiras para a inteligência deste catatau que, por oito anos, agora, passou muito bem sem mapas. Virem-se. [14]

Apesar de tal obra ser dedicada ao trio concreto: Décio Pignatari (que escreveu a apresentação desta edição citada), Haroldo de Campos e Augusto de Campos, sua postura na relação entre autor x obra x público vai de encontro/choque às posturas de Augusto de Campos. O que Leminski rejeita, Augusto faz questão. Após a publicação de seu poema “póstudo”, foi travada uma batalha de folhetins no suplemento dominical da Folha de São Paulo, batalha que durou meses em 1985, envolvendo principalmente a figura de Robert Schwarz do “outro” lado. Tal trajetória é demonstrada por Flora Süssekind em seu livro “Literatura e vida literária: polêmicas, diários, e retratos”. No capítulo “Polêmica: discussão intelectual como espetáculo”, Flora afirma que a postura de Augusto de Campos em tal polêmica demonstra uma aversão do poeta para a possibilidade do poema ganhar vida própria após sua publicação, reivindicando assim uma paternidade da obra e uma espécie de “criticofobia” [15]. Enquanto Augusto reivindica a categoria de poetas-críticos, Leminski aponta para a possibilidade do crítico/leitor ser poeta sem mesmo escrever poesia. A chamada ao leitor feita por Leminski também aparece em seu poema “para que leda me leia”:

para que leda me leia
precisa papel de seda
precisa pedra e areia
para que leia me leda

precisa lenda e certeza
precisa ser e sereia
para que apenas me veja

pena que seja leda
quem quer você que me leia

(esse poema já foi musicado duas vezes. Uma por Moraes Moreira, outra por Itamar Assumpção. Que tal você?) [16]

Esta inusitada nota que acompanha o poema no final de sua página, realmente faz parte do poema. Aqui, aquele desejo de Leminski, de que a obra deve ser aberta para poder causar estranhamento e desautomatização no leitor, parece se realizar. Mesmo já o tendo sido duas vezes, o leitor é convidado do poema para inclusive musicá-lo. Que é como termina seu ensaio “Sem eu, sem tu, nem ele” [17]: Música, maestro, ou seja, nunca termina. Ou termina seu ensaio “Poesia no receptor” [18] com um brinde entre os poetas-produtores e os poetas-receptores, estabelecendo uma separação para justamente desfazê-la em forma de celebração.

Se há então uma nítida diferença entre a postura crítica de Leminski e a de Augusto dos Campos, tal discordância não torna Leminski um anti-concreto, pelo contrário. Além de dedicar seu “Catatau” para o trio concreto, Leminski também monta um elogio em forma de poema-crítica, como desejaria Augusto, ao concretismo brasileiro. Em tal poema-ensaio, “Information retrieval: a recuperação da informação” [19], Leminski resgata o trabalho dos concretos desconstruindo a idéia de vanguarda como destruidora ou descompromissada com o passado. Aponta que o trabalho da vanguarda é na verdade um resgate dos radicais da linguagem, que, “como tigres, se reconhecem pelo cheiro”. Valoriza o trabalho de pesquisa dos concretos ao resgatarem poetas brasileiros como Sounsândrade e Gregório de Mattos, colocados fora do sistema literário vigente até então, e ainda o trabalho de tradução de inúmeros estrangeiros. Sendo estes dois movimentos um trabalho de rearticular o passado para uma poética do futuro, radical na linguagem.

visual_poetry_at_mission_cultural_center_for_latin_image1A radicalidade na linguagem é outro elemento de preocupação para Leminski, principalmente na sua relação com o leitor. Em seu ensaio “Central elétrica: projeto para o texto em progresso” [20], Leminski resgata a imagem-paradoxo, também num poema de Augusto, da situação da literatura brasileira: seria um luxo ou um lixo? Independente desta pergunta-cilada, a resposta é: a literatura existe. E existe num quadro de analfabetismo no país, mesmo sem a garantia de que os alfabetizados são leitores de literatura (há também a questão da ignorância voluntária). Surge então uma pressão acerca da responsabilidade social do escritor diante de tal quadro e seu texto. Resgata então a figura de dois intelectuais brasileiros em posições opostas: Paulo Freire, que luta pela alfabetização na base social, com um método de simplificar ao máximo a linguagem para torná-la mais acessível à população, e Haroldo de Campos, que luta pela reinvenção radical na cultura letrada. Mas Leminski afirma que radicalizar a invenção não é restringir ainda mais o número de leitores. A questão é que a vanguarda concorre com outra postura, populista (não a de Paulo Freire), mas a que estacionou nas exigências médias do gosto literário (não sendo um problema de alfabetização), que não é nem popular nem de vanguarda. Aí, reivindica-se o apelo às massas para justificar sua própria mediocridade.

No seu ensaio “O boom da poesia fácil”, Leminski relembra o diagnóstico da poeta Alice Ruiz acerca dos méritos da poesia alternativa dos anos 70. Coexistindo com duas vertentes importantes da década de 60: a das vanguardas (concretismo, práxis, processo) e a poesia “dita” engajada (CPC, etc.), a “poesia marginal” cumpriu de alguma forma a tarefa das duas vertentes anteriores. Incorporou a brevidade e a síntese das vanguardas, e tornou-se popular, pois chegava à população através de formas inovadoras de produção e distribuição, o que a poesia engajada não deu conta. Mesmo falando de flores, a poesia engajada tornou-se elitista na sua verve didática e catequista, queria ensinar, passar uma ideologia: o socialismo é a solução (nos moldes do marxismo-leninismo).

Diante deste quadro, de alguma forma então triunfa a poesia alternativa, já consagrada e imprecisa “poesia marginal”. Poetas que queriam curtir o poetar, sem chegar a formar um movimento coordenado ou ordenado, como aponta Glauco Mattoso [21], pois tinham uma produção assistemática e descentralizada. Era informal e também informe. Talvez a ausência de projeto poético tenha sido sua maior potência, o que permitiu um número expressivo de “pivetes para pivetes, todos brincando de Homero”.

poetry_and_architectureA questão levantada por Leminski, e também por Waly Salomão, este já em 2001 na sua fala no Itaú Cultural, Trajetórias: anos 70, é a seguinte: quantos de todos esses poetas que entraram no grande albergue da “poesia marginal” são ainda poetas? Ou estavam somente brincando de escrever em versinhos ou empilhando prosa? Waly Salomão e Paulo Leminski são então duas figuras que passaram sim pela dita “poesia marginal”, mas sobreviveram a ela, rejeitando um certo anti-intelectualismo da época. Ana Cristina César, com seu tríplice trabalho de produção-crítica-tradução também merece destaque. Chico Alvim, Chacal e Cacaso que passaram da década de 00 em publicação. São figuras que resgatam poetas como Drummond e Cabral para pensar poesia enquanto um projeto de linguagem radical, sem excluir a radicalidade das vivências do poeta conquistada pela poesia alternativa. É nesta possibilidade de uma poesia que ande junto com a vida cotidiana, sem necessidade dos mistérios ou mistificações literárias, com uma pesquisa poética (o trabalho de resgate do passado pelas vanguardas para articular o futuro) e o trabalho formal da produção (o re-poetar) que a utopia de Leminski parece ganhar corpo:

moinho de versos
movido a vento
em noites de boêmia

vai vir o dia
quando tudo que eu diga
seja poesia [22]

A preocupação de Leminski da poesia como projeto também aparece quando monta seu poema-teoria do poema, “Limites ao léu”, elencando uma série de críticos e poetas, dos clássicos aos clássicos malditos, e suas definições acerca da poesia:

POESIA: “words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakovski), “cernes e
medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalável (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jakobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Valéry), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranquilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com idéias” (Mallarmé),
“música que se faz com idéias”
(Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticism of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
imposible hecho posible” (García
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução” (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo
Leminski)… [23]

Diante de toda preocupação de Leminski acerca da construção de uma arte engajada como obra aberta, os “três pontinhos” no final deste poema apontam que a poesia não tem fim, deve continuar. Leminski não é o primeiro e nem quer ser o último, e o “Último aviso” [24] é: quem sabe ainda não acabei de escrever.

Notas

[1] LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997, p. 13.

[2] LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 97.

[3] LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 67.

[4] LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997, p. 13.

[5] LEMINSKI, Paulo. “Poesia: paixão da linguagem”. In: Sentidos da paixão. Companhia das Letras: 19–, p. 284.

[6] BARTHES, Roland. Aula. 14. ed., São Paulo: Cultrix, 2007, p. 14.

[7] LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 29.

[8] http://www.youtube.com/watch?v=oEXklTvm3aU

[9] LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997, p. 16.

[10] LEMINSKI, Paulo. Idem, p. 17 (negrito meu).

[11] LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997, p. 46.

[12] Centro Popular de Cultura. Criado em 1961 como sessão cultural da União Nacional dos Estudantes.

[13] LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997, p. 48.

[14] LEMINSKI, Paulo. Catatau. Curitiba: Travessa dos editores, 2004, p. 10.

[15] SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 39.

[16] LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos. 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 62.

[17] LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997, p. 73.

[18] LEMINSKI, Paulo. Idem, p. 50.

[19] LEMINSKI, Paulo. Idem, p. 63.

[20] LEMINSKI, Paulo. Idem, p. 19.

[21] MATTOSO, Glauco. “Agrupamento ou ingrupimento”. In: Poesia Marginal. Editora Brasiliense: 1982, p. 19.

[22] LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo, Brasiliense, 1983.

[23] LEMINSKI, Paulo. La vie em close, 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 1994.

[24] LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos, 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 2006, p. 89.

Referências

BARTHES, Roland. Aula: aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, pronunciada no dia 7 de janeiro de 1977. Tradução de Leyla Perrone-Moíses. São Paulo: Cultrix, 2007.

LEMINSKI, Paulo. Catatau. Curitiba: Travessa dos editores, 2004.

LEMINSKI, Paulo. Distraídos venceremos, 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 2006.

LEMINSKI, Paulo. La vie em close, 5. ed., São Paulo: Brasiliense, 1994.

LEMINSKI, Paulo. “Tudo, de novo”. In: Arte em Revista, v. 6, n. 08, out., 1984, p. 79-80.

LEMINSKI, Paulo. “Poesia: a paixão da linguagem”. Conferência incluída em Sentidos da paixão. Rio de Janeiro, Companhia das Letras, 1987, p. 287-305.

LEMINSKI, Paulo. Caprichos e relaxos. São Paulo, Brasiliense, 1983.

LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Crípticos. Pólo Editorial do Paraná, 1997.

MATTOSO, Glauco. O que é Poesia Marginal. São Paulo, Editora Brasiliense, 1982.

SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários e retratos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1985.

2 COMENTÁRIOS

  1. Ótimo texto. Demonstrou de forma clara e concisa a face “ensaísta” do poeta. Trabalho com a obra traduzida por Leminski, portanto, penso o ‘Leminski tradutor’ e muitas dessas questões interessam para reconstruir seu projeto tradutório. Neto Ghizzi, fica aqui meu contato para futuras conversas e trocas. Uma questão: esse texto é desse ano, 2017? Abraços… Lívia

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