Arbitrariedade policial na Rocinha: a invasão policial-militar e os primeiros relatos de violações de direitos humanos

As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) têm sido apresentadas como a grande transformação na área de segurança pública, não somente no Rio de Janeiro, mas também no Brasil. Em tese, seria a mudança da política do confronto para a política de aproximação. Há um forte investimento de imagem nesta ação, pois seus gestores bem sabem que qualquer intervenção nesta área provoca um grande impacto no imaginário coletivo e determina muitas eleições. As autoridades, de todas as instâncias, os meios de comunicação, empresários e segmentos consideráveis das classes médias e médias alta têm defendido e repercutido as chamadas “virtudes” desta ação pública.

Não bastasse isso, criaram uma espécie de “blindagem” que a protege de qualquer crítica. Neste ponto, aproximam-se das idéias que diziam superadas: quem oferece qualquer crítica é visto com desconfiança e, no limite, estaria ligado à interesses criminosos. Entretanto, só se esquecem de apontar que as UPPs expressam o outro lado da mesma política do confronto, a princípio menos violenta. A princípio, é bom frisar. Isto porque, para cada UPP instalada uma “guerra” intensa é estabelecida antes: as tradicionais incursões (agora feitas por todas as forças policiais) continuam balizando a ação, a despeito do discurso que diz que estas são algo do passado. Além disso, nas entrelinhas, as UPPs podem (e os fatos têm demonstrando) ser entendidas como a atualização de mecanismos de controle das classes populares, aqui representadas pelos moradores de comunidades. Pelo o que já observamos em vários locais, a liberdade, a despeito dos discursos oficiais, parece continuar cerceada e tutelada como antes: desta vez, são as forças policiais, armadas até os dentes, que determinam o que se pode ou não fazer. Quem ousa desafiar é calado. Na verdade, agredido, torturado, preso.

Embora apenas se pontuem, nestes processos de ocupação, a imensa capacidade material das forças de segurança, muitos abusos acontecem, se sucedem e nenhuma palavra é dita. Felizmente, há ainda algumas vozes que não se calam. É o nosso caso. Esta semana, em companhia do Jornal A Nova Democracia e da agência de notícias do México, a Desinforménonos, nós, da Rede contra Violência estivemos na última quarta-feira, dia 23/11, na Rocinha e conhecemos a história de um casal que teve a casa invadida quatro vezes e pertences furtados. Descobrimos também que inúmeras outras casas também foram invadidas, várias vezes, além de objetos levados. Infelizmente, o medo ainda impera e muitos não quiseram relatar os ocorridos. Contudo, este casal não se intimidou e relatou aos militantes e jornalistas presentes a violação que sofreram.

X, de 24 anos, pintor, conta que, desde a ocupação pelas forças de segurança, sua casa foi invadida quatro vezes. Aponta que nas três primeiras os policiais pediram autorização para entrar. Na primeira, eles chegaram às 5 horas da manhã, entraram e olharam. Nas duas outras vezes, levaram cachorros e vasculharam novamente. Nada encontraram, já que não havia nada para ser encontrado. Mas, como bem sabemos, todo e qualquer morador de favela é tratado com desconfiança. Como se não bastasse tanto incomodo (será que fariam a mesma coisa nos apartamentos de São Conrado?), retornaram, mais uma vez, dias depois. Desta vez, sem pedir licença. Para não parecer arrombamento, utilizaram uma “chave mestra”, daquelas usadas para abrir qualquer coisa. Entraram, reviraram a casa toda, destruíram alguns móveis e, sem explicação até hoje, levaram as fotos de sua esposa. Nem ele, nem sua esposa (no trabalho, naquele momento) estavam em casa. Muitos moradores viram o que ocorreu, inclusive uma amiga, que estava indo visitá-los. Neste momento, mais do mesmo, ou seja, mais violação de direitos. Esta amiga foi até o local ver o que acontecia. Os policiais, seis ao total, cercaram a jovem e começaram a torturá-la psicologicamente. Eles gritavam, se referindo à dona da casa: “achamos a loura que queríamos, aquela que a gente conhece!”, “ela é mulher de bandido, fala logo, fala logo, é melhor você falar logo”, em clara tentativa de tentar forjar uma situação inexistente, prática tão comum das polícias fluminenses. A jovem não se intimidou e disse que aquela moça era sua amiga, que trabalhava e que não possuía envolvimento com nada ilícito. Mesmo assim, os policiais continuaram insistindo por um bom tempo, até desistirem e irem embora.

Esta amiga ligou imediatamente para os donos da casa. Contou-lhes o que havia acontecido. Estes retornaram imediatamente para saber o que ocorreu e, quando chegaram em casa, se depararam com aquela cena desoladora, perguntando-se: porque? Ato contínuo, foram buscar respostas. Numa rua próxima, perguntaram a um policial que lá estava o que poderiam fazer. Este, até de forma educada, orientou-lhes a irem ao caminhão da polícia no qual reclamações sobre abusos de autoridade poderiam ser denunciados. Além disso, ainda disse que seria importante eles fazerem isso, pois, agora que a polícia estava entrando, não queriam problema. O próprio policial já avistava no horizonte que esse tipo de arbitrariedade, que vem acontecendo de maneira sistemática em outras áreas ocupadas, poderia acontecer. Na verdade, já estava acontecendo. Os dois resolveram, então, ir ao ônibus. Chegando lá, mais dificuldades e abusos. Parecia apenas estar começando uma espiral de violações sem fim.

Quando chegaram ao ônibus, uma sequência de deboches e várias tentativas de descredenciar a denúncia. Eles tentaram relatar que a sua casa havia sido invadida e que pertences haviam sido furtados, inclusive fotos da moça. Perguntaram o que poderiam fazer. A primeira reação dos policiais, claro, foi a de saber os “antecedentes” de X. Como não descobriram nada, pois, novamente, não havia nada a ser descoberto, começou um jogo de empurra. Após algum tempo, um policial responsável aparece. Conversou com a esposa de X. e disse a ela que suas fotos seriam recuperadas. Mas, sem seguida, um fato estranho: o policial lhe deu um número do celular de outro para que eles entrassem em contato. Instantes depois, sem muitas respostas e diante do descaso, foram à delegacia. Chegando lá, mais dificuldades em formalizar a denúncia. Informaram a eles que, naquele dia, não poderiam fazer nenhum registro, pois haviam feito uma grande apreensão e que, por isso, eles fossem embora. Os policiais, na delegacia, deram duas alternativas: ou eles poderiam esperar horas ou aguardar mais um pouco: seis meses.

Enquanto tentavam, minimamente, relatar o que haviam feito, um policial militar do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), irritado, os interrompeu várias vezes. Numa dessas, mais uma tentativa de deslegitimar a denúncia. No dia em que a casa foi invadida pela polícia (a quarta vez que iam até lá), esta havia encontrado um pequeno cigarro de maconha. Tanto no ônibus, quanto na delegacia, X. afirmou, sem medo, que era usuário de maconha. De nada adiantou. Como afirmado logo acima, o policial do Bope, quando os jovens explicavam o acontecido, disse que havia sido encontrado uma “muca” de cigarro no domicílio e, ofendendo X. diante de sua esposa e de outros presentes, afirmou que, por isso “boa coisa ele não é”. Resultado: o registro da invasão e do furto não foi feito.

Por que é tão difícil denunciar a arbitrariedade policial?

Inconformados com o que consideravam uma injustiça, o casal descobriu e entrou em contato com a Rede contra a Violência. Fomos na quarta-feira passada, dia 23 de novembro. Podemos verificar, mais uma vez, a dificuldade de um morador de favela em realizar uma denúncia de arbitrariedade policial. Mais uma vez, pois, esta tem sido a rotina não somente nos morros ainda não ocupados, sujeitos constantemente à violência policial, mas também nas comunidades ocupadas pelas UPPs. Depois de conversar com os moradores que tiveram a casa invadida, fomos até a 15ª delegacia, no bairro da Gávea.

Na unidade policial, fomos recebidos, inicialmente, pela atendente que faz uma espécie de triagem das denúncias. Já neste momento, a primeira tentativa de fazer X. e sua esposa desistirem da denúncia. A jovem que nos recebeu tentou descrever procedimentos que, segundo ela, deveriam ser feitos em detrimento do boletim de ocorrência. Militantes da Rede que acompanhavam o casal questionaram e exigiram o registro da denúncia. A atendente, demonstrando pouca vontade, disse que comunicaria ao inspetor. Em seguida, ela vai até o lado de fora da delegacia, onde estava um grupo de policiais civis. Pelo que pudemos perceber, ela relata à eles o que estávamos fazendo ali, pois, alguns instantes depois, todos eles passam a nos observar. A nossa presença havia causado um certo incômodo e a notícia da arbitrariedade da PM havia se transformado no assunto entre os policiais.

Bastante tempo depois, fomos recebidos pelo policial civil Maxmiliano, mais conhecido como Max. As dificuldades pareciam persistir, se não fosse a nossa própria persistência. Ele também tentou nos debelar de realizar a denúncia. Afirmou que o tipo de revista como a ocorrida na casa de X. e sua esposa é “normal”. Na sequência, aponta que nós deveríamos ir ao Batalhão da área e registrar a denúncia lá. Integrantes da Rede presentes questionaram e afirmaram que é função da policial civil registrar e investigar a ocorrência. O policial insiste. Afirma que não está se recusando a registrar (embora o estivesse) e que o ideal, desta vez, seria todos irem à corregedoria (da polícia militar e a unificada) e, numa proposta absurda, disse à X, e sua esposa que estes deveriam ligar para o disque-denúncia e dar o endereço de sua casa para depois a polícia ir até lá! Percebemos a estratégia de, além de tentar fazer com que os presentes desistissem e fossem embora, passar informações incorretas. Todos os presentes perceberam que o policial achava estar tratando com pessoas que não conheciam seus direitos. Alguns instantes depois, um fato curioso: uma policial vai até o inspetor Max e diz a ele que o delegado Carlos Augusto tinha outra posição sobre casos como aquele. O inspetor, então, pede para esperarmos, pois iria ligar para o delegado. Instantes depois retorna e, numa mudança repentina de postura, chama X. e sua esposa. Inicialmente, ele tentou impedir que outras pessoas os acompanhassem. Entretanto, um representante da Rede, disse que acompanharia e o policial teve de aceitar.

Enquanto o registro era feito, uma parte dos militantes e dos jornalistas presentes ficou aguardando. Num dado momento, alguns foram para o lado de fora da delegacia para conversar. Lá, havia outro policial civil, que então quis estabelecer uma interação. Ele repetiu tudo o que o outro policial havia nos falado há pouco e ainda tentou complicar mais: afirmou que há um procedimento “complicado” em casos como esse, pois o delegado vai ter que encaminhar o registro para a corregedoria e que isso poderia demorar. Por isso, como os outros, o ideal seria todos irem à corregedoria. Posteriormente, observamos que, quanto mais o debate se estendia, seu objetivo era obter informações sobre quem éramos. Primeiro, o fato de seu plantão ter se encerrado às 17hs e, às 20hs, ele ainda estar lá. Depois, perguntou para cada um de onde éramos e o que fazíamos. Em seguida, começou a fazer críticas às UPPs que, segundo ele, teriam interrompido o trabalho de investigação realizado pela delegacia, além de afirmar que elas seriam uma ação político-partidária. Quando questionado sobre as abordagens feitas, principalmente pela polícia militar, ele tentou afastar qualquer responsabilidade dos policiais apontando que qualquer um pode fazer isso, inclusive moradores (desconsiderando o fato de que, em relação à casa de X. e sua esposa, várias testemunhas afirmaram ter visto policiais).

Em relação ao depoimento, houve uma relativa mudança, embora as dificuldades tenham continuado, já que o inspetor percebeu que os moradores ali presentes não estavam sozinhos e que conheciam seus direitos, a despeito das tentativas de desinformação. Contudo, ainda tentaria criar problemas no momento do registro. Num dado instante, em relação às fotos da moça que foram furtadas, iria colocar no registro que estas eram “comprometedoras”, no que foi prontamente rechaçado pela integrante do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura que acompanhava o depoimento. Esta foi obrigada a explicar ao policial que aquela atitude prejudicaria a moça, já que o termo carrega em si a possibilidade de diversas interpretações, inclusive negativas. Da forma como o policial queria colocar, a vítima poderia virar ré. Além disso, o policial queria intimar o trabalho da esposa de X. Novamente, seria questionado. Em outras situações de arbitrariedade policial isso foi feito e acabou prejudicando a vítima em questão, pois o patrão, mesmo sabendo da conduta ilibada do funcionário, o demitiu assim mesmo. Por fim, a única informação relevante: o inspetor questionou a orientação do policial militar que os atendeu inicialmente, quando este lhes deu um número institucional (celular). O policial acredita, fazendo uma crítica aos PMs, que isso tenha sido feito para que os próprios policiais resolvessem isso entre si para abafar a situação.

Por fim, um comentário sobre como os moradores atingidos por mais este abuso estão vendo o processo de “pacificação” na Rocinha. Eles afirmam que atualmente haveria mais homens armados que antes. Estão mais temerosos, pois, segundo apontam “eles (os policiais) estão com a lei e, se quiserem, podem armar contra nós”. Acreditam que a chamada “pacificação” é uma resposta do governo à mídia em função dos preparativos da cidade para os Jogos Olímpicos. Questionam, inclusive, o discurso de que a vida na localidade estaria melhorando. Citam o fato de que os alugueis já estão aumentando e muitas pessoas já estão tendo que deixar suas casas por conta no aumento nos valores.

Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência

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