Por Leo Vinicius

Certamente Negri, ao buscar novos conceitos e uma nova linguagem, se expõe à crítica, ou em outras palavras, dá a cara a bater. Conseqüência de quem busca fugir do lugar comum. Certamente numa leitura de sua obra é relativamente fácil encontrar muitos pontos para se desenvolver críticas, e bem embasadas. E elas abundam, vindas de várias matizes políticas. Sem querer trazer o que seria a interpretação Correta e Única das obras de Negri, no entanto, a crítica deve ater-se ao que ele de fato diz para ser consistente, e isso requer boa vontade, algo que as críticas de Sergio Lessa me parecem não possuir. Seguindo um estilo e objetivo que na esquerda parece-me que teve Marx como precursor (vide Miséria da Filosofia e Crítica ao Programa de Gotha), Lessa os leva a um quase extremo: longe de ser um diálogo, sua crítica cai freqüentemente na ridicularização, que precisa ser evidentemente referida a distorções das proposições daquele que se critica. Constrói-se assim a típica obra para ser lida pelos militantes de baixo escalão de um grupo político e ideológico cristalizado. É assim que certa vez um jovem militante de um grupo trotskista afirmou: “não li o Império (de Negri e Hardt), mas li uma crítica de uma trotskista muito boa!”. Como pode-se avaliar se a crítica é boa sem se ter lido a obra criticada é algo ao qual somente podemos encontrar resposta investigando o campo da fé.

Dito isso, o objetivo deste breve texto é apontar algumas linhas que ajudam a compreender o pensamento de Antonio Negri, e com isso, indicar caminhos para as críticas ao pensamento de Negri alcançarem o máximo de pertinência. Mas antes disso farei alguns apontamentos sobre questões levantadas no artigo Teoria e realidade em tempos de desilusões: Sobre escritos de Negri & Hardt, de Fernando Paz.

1. Não há base em nenhum escrito de Negri para se afirmar que o conceito de trabalho imaterial, ou qualquer outro do filósofo italiano, signifique o fim da diferença entre trabalho e capital, ou que a mercadoria tornou-se apenas um produto ideológico. É bom estar atento que o conceito que interessa a Negri não é o de trabalho imaterial, mas o de hegemonia do trabalho imaterial, pois é dele que advém as possíveis implicações políticas, emancipatórias ou comunistas. Discutir o conceito de trabalho imaterial em Negri é perder de vista o que de fato importa, o que o autor visa, qual possibilidade ele está tentando descortinar. Tirando as ambigüidades ou antinomias ao longo da própria evolução do conceito, hegemonia do trabalho imaterial para Negri e Hardt significa que uma certa forma de trabalho tende a disseminar seus elementos e características a outras formas de trabalho e à sociedade em geral. E a característica principal, para eles, desse trabalho (imaterial) que estaria se tornando hegemônico, seria o de se constituir numa cooperação autônoma (pré-constituída) em relação à empresa capitalista (aqui já vemos que há separação evidente entre trabalho e capital nesse conceito), e na qual os instrumentos de trabalho em grande parte seriam capacidades gerais das pessoas, incorporadas a elas – o intelecto geral. Apenas uma citação para ilustrar: “o ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz de organizar o próprio trabalho e as próprias relações com a empresa” [1]. Em outras palavras, o ciclo do trabalho imaterial se caracterizaria por uma “independência da atividade produtiva em face à organização capitalista” [2]. O trabalho imaterial seria assim um tipo de trabalho ao mesmo tempo, nos dias de hoje, autônomo e hegemônico, que “não precisa mais do capital e da sua ordem social, mas se põe imediatamente como livre e constitutivo” [3].

Em artigo publicado na Folha de São Paulo em 1998, embora ressalvando que se tratava de uma simplificação do seu pensamento, podemos perceber que Negri relaciona a hegemonia do trabalho imaterial à posição de uma forma de trabalho na determinação do excedente de produtividade, na criação de mais-valia. Essa hegemonia do trabalho imaterial implicaria também que esse excesso de produtividade não estaria mais nas fábricas, mas nas redes sociais:

A força de trabalho que, criando mais-valia, hoje se coloca, hegemonicamente, no centro do sistema produtivo, já é essencialmente imaterial: vale dizer, trabalha de modo intelectual, com empreendimento autônomo e com fortes e independentes capacidades de cooperação. Simplificando ao máximo: o trabalhador que, ao determinar excedente de produtividade, toma o lugar que ontem era do “metalúrgico”, é o técnico da informação e dos serviços, é o produtor de saber e de linguagens: eles trabalham entre “redes” cooperativas, mas, ao mesmo tempo, são autônomos na criação de valor. Por conseguinte, o lugar onde se produz o excedente de produtividade já não é a fábrica, nem o sistema da grande indústria, mas o conjunto de “redes” sociais por meio das quais essa massa de trabalhadores imateriais aprende, coloca-se em contato, comunica, inventa, produz mercadorias — e faz tudo isso reproduzindo subjetividades [4].

De certa forma Negri não tenta fazer diferente do que fez Marx no século XIX, ao tentar teorizar a tendencial hegemonia do trabalho industrial, em termos qualitativos (não quantitativos) sobre outras formas de trabalho dentro da sociedade e no ciclo de produção de valor, assim como indicar uma suposta potencialidade emancipadora dessa tendência.

A questão que me parece mais pertinente foi levantada em grande parte já por Rodrigo Nunes [5]: essa característica emancipatória e potencialmente comunista da hegemonia do trabalho imaterial é generalizável? É universalizável? Ou está circunscrita a categorias localizadas socialmente, geograficamente e economicamente, que não apresentam prática política expressiva?

2. Acho algo realmente estranho enxergar na obra de Negri a proposição de um comunismo compatível com o Estado e o capital. Para Negri o comunismo é algo latente, cujos pressupostos já existem na nossa sociedade. Ele se afasta de qualquer proposição utópica e, mais uma vez, nesse sentido não faz diferente de Marx, ao buscar o comunismo e tentar embasá-lo nos fatos econômicos ou sociais presentes, tendenciais, nas potencialidade existentes, no fazer da sociedade, e não fora dela. A afirmação de que o comunismo de Negri seria compatível com o Estado se torna também obscura se simplesmente se nota que o conceito de comum, que é um conceito de público não-estatal, tem sido central no pensamento de Negri há pelo menos quinze anos. Esse comumismo seria portanto a negação do Estado a partir da sua própria constituição. O mais estranho no entanto, é não se dar conta de que Negri desde os anos 1970 tem se chocado contra correntes leninistas as mais diversas, sejam reformistas ou revolucionárias, sobre a questão do ataque imediato ao Estado. Em Multidão está ele a afirmar no último capítulo que se deve juntar os Federalist Papers de Madison ao antiestatismo de Lenin em O Estado e a Revolução – o que particularmente se assemelha a meu ver à proposta política proudhoniana… Estranho também por Negri estar entre aqueles que mais criticam a esquerda tradicional por, diante da “globalização”, se apegar ao Estado-nação, e aos referentes fordistas nas suas reivindicações, não se dando conta de que o cenário é outro e é preciso ir além do Estado-nação e dos marcos fordistas, como faz o capital. Mais estranho é que tal crítica parte daquele marxismo cujos marxistas em nenhum momento da história foram, na prática política, antiestatistas, sendo os primeiros a, se dizendo comunistas, defenderem o Estado quando esse cai em suas mãos.

* * *

O pensamento de Antonio Negri possui raízes em alguns pressupostos do operaísmo [obreirismo] – corrente marxista desenvolvida na Itália nos anos 1960 e da qual ele fez parte. Aqui ressaltaremos a característica antiterceiromundista que estava presente nesses pressupostos. Como o próprio Negri frisou, o terceiromundismo era a “besta negra” [inimigo principal] da revista Classe Operaia [6], a principal revista operaísta dos anos 1960, da qual ele também fazia parte. Os operaístas buscavam combater um terceiromundismo bastante presente na esquerda da época. Em outras palavras, buscavam valorizar a classe operária italiana (e não os grupos sociais antagonistas do terceiro mundo), ou seja, o sujeito ao qual eles tinham proximidade e possibilidade de influenciar, como potencial sujeito revolucionário. Foi essa perspectiva apresentada pelo operaísmo e pelo pós-operaísmo que fez Michael Hardt se aproximar do pensamento de Antonio Negri. Hardt, partindo da sua realidade de ativista norte-americano, se identificou muito mais com a experiência e as lutas italianas dos nos 1970, do que com o terceiromundismo comum à esquerda norte-americana [7].

Diante da emergência de novos grupos sociais em luta nos anos 1970 – estudantes, o movimento feminista, trabalhadores do setor de serviços, jovens desempregados – Negri passa a enxergar uma nova composição de classe, a qual exigiria novos conceitos e uma nova forma de organização política. É nesse contexto que surge a Autonomia Operaia (AO) e que Negri desenvolve conceitos, como o de operário social, que antecipam idéias trabalhadas por ele até os dias de hoje.

A AO, surgida em 1973, era inicialmente uma rede formada principalmente por estudantes e jovens proletários, baseada sobretudo na militância na fábrica [8]. Naquele ano, em Partito operaio contro il lavoro, Negri conclamava a luta do proletariado contra o Estado, sob a promoção e liderança dos trabalhadores das grandes fábricas. Porém, a AO foi perdendo sua base nas fábricas devido à própria desafecção do trabalho e às dispensas de trabalhadores pelas empresas. E foi entre os jovens formados nos ciclos de auto-reduções (de tarifas de serviços) e nas batalhas de rua com a polícia e com os fascistas que a AO começou a ganhar mais adeptos [9]. Ela acabaria tendo como integrantes, como base, muitos jovens desempregados e trabalhadores marginalizados politicamente, como, por exemplo, os trabalhadores do serviço de saúde em Roma [10].

O discurso teórico dos autonomistas ia ao encontro da subjetividade daqueles jovens comunistas, como Cesare Battisti, que declara ter ficado fascinado “pelos discursos dos membros do PAC sobre uma ‘nova composição social’, em que o centralismo operário já não era o incontornável motor revolucionário” [11]. Esses jovens precarizados e suas lutas, de 1974 a 1979, foram o principal referente da teoria pós-operaísta, que retornava a esse sujeito como influência em termos de autoconfiança e importância, como podemos perceber através, por exemplo, da identificação que Cesare Battisti alega que tal teoria dos “autônomos” sobre uma nova figura de classe tinha sobre essa juventude em revolta, da qual ele fazia parte. Se os militantes do Potere Operaio – grupo anterior de Negri – vagavam atrás de um ponto de referência quando marginalizados das lutas de fábrica, essa referência seria encontrada, já enquanto Autonomia Operaia, nos grupos sociais que protagonizaram o movimento italiano de 1977, em especial na juventude proletária e precarizada.

Ilustrativo da posição predominante na AO, em termos teóricos e de composição social, foi o evento ocorrido em 1975 nos portões da Alfa Romeo, quando Negri e os autonomistas levaram jovens desempregados até lá, de modo a tentar retirar os operários da fábrica de uma posição concebida pelos autonomistas como corporativa – por terem, por exemplo, aceitado trabalhar aos sábados para manter a produção. Mas o que ocorreu, ao invés de uma unificação, foi um enfrentamento entre as duas partes [12]. É preciso portanto compreender o pensamento de Negri desde os anos 1970 como uma tentativa de teorizar e unificar um proletariado já disperso, composto por múltiplos sujeitos, para além dos portões da fábrica. A perda de um protagonismo da classe operária, do trabalhador formal e de fábrica nas lutas sociais, e o estranhamento desses com um novo sujeito que emergia, formado por jovens desempregados, precários e trabalhadores do terciário, esteve no âmago do desenvolvimento dos conceitos e teorias pós-operaístas. Emergência de um “novo sujeito” e estranhamento presentes no Brasil do século XXI, capturado com muita felicidade por Edson Miagusko [13], através de um acontecimento por demais ilustrativo: a simultaneidade, proximidade física e distanciamento político da ocupação de sem-tetos num terreno da Volkswagen em São Bernardo do Campo e da luta dos operários da empresa contra demissões. As lutas ou questões sociais apareciam separadas não somente por estarem em cadernos diferentes dos jornais, mas no próprio imaginário dos operários e sem-tetos, embora na fábrica se debatesse o destino dos desempregados. Podemos dizer que o pós-operaísmo, no qual Negri é a figura mais conhecida, procura inicialmente dar respostas políticas a esse estranhamento, além de teorizar a emergência dos novos sujeitos e de novos terrenos de conflito abertos.

Nas duas últimas décadas as teorias e conceitos pós-operaístas têm tido influência mais direta e relação mais imediata com o que podemos chamar de herdeiros do movimento de 1977: a esquerda italiana que gira em torno dos chamados Centros Sociais. Mas especificamente no caso de Negri e Hardt, eles pretendem que suas teorias sejam universalizáveis e generalizáveis, o que me parece que gera antinomias no pensamento desses autores, as quais aqui não poderemos abordar. Se, em última análise, hoje em dia a teoria de Negri carece de um sujeito político que lhe sirva de referente, parece-me que se trata do mesmo problema que acomete conceitos e teorias clássicos da crítica da economia política. Ou alguém acha que, por exemplo, o conceito de trabalho produtivo de Marx não possuía um sentido pragmático e básico, o de fundamentar e legitimar o poder político de um sujeito que demonstrava na prática um antagonismo e uma potencialidade revolucionária? O sujeito político sempre antecipa a teoria, que, se tem alguma valia, serve para reforçar a autoconfiança desse sujeito, reforçar seu fazer e dar legitimidade a seus objetivos. A qual sujeito político dizem respeito os conceitos de trabalho produtivo de Marx e Proudhon hoje em dia?

Em palestra no Collége de France em 2004, Negri deixa explícito também o sentido pragmático de sua teoria. Aponta ele que, por exemplo, se se fala de trabalho imaterial, seria óbvio que as pessoas melhor localizadas para falar sobre ele seriam os “trabalhadores imateriais” nas ciências da computação ou na pesquisa científica. Porém, o novo léxico – no caso do trabalho imaterial – só funcionaria, segundo ele, na medida que fosse assimilado/assimilável por muitas singularidades no desenvolvimento de suas atividades – como donas de casa, agricultores, atendentes, etc. Negri demonstra assim que o novo léxico político que ele busca construir – o qual contém indicações práticas e políticas – fala mais diretamente para e é mais facilmente assimilável pelo chamado “trabalhador imaterial” (funções informáticas, intelectuais, comunicativas e científicas propriamente ditas) [14]. Diz respeito mais imediatamente à potência ou experiência vivida destes. Contudo, a aposta, expectativa e intenção de Negri parece ser a de que tal redescrição, ou novo léxico, possa ser assimilável por um espectro maior de grupos sociais, de modo que ele possa funcionar, isto é, cumprir seus objetivos políticos.

Notas

[*] Este texto foi elaborado com base nos resultados da pesquisa que pude desenvolver sobre alguns conceitos de Antonio Negri, financiada pela FAPESP.

[1] LAZZARATO, M.; NEGRI, A. Trabalho Imaterial. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.26
[2] LAZZARATO, M.; NEGRI, A. op.cit. p.31
[3] LAZZARATO, M.; NEGRI, A. op. cit. p.36.
[4] NEGRI, Antonio. Direita e esquerda na era pós-fordista. Folha de São Paulo, 29 jun. 1998.
[5] NUNES, Rodrigo. Pessimism of the Intellect, Optimism of the General Intellect? Some Remarks on Organisation. 2007b. Disponível aqui, acessado em julho de 2009.
[6] NEGRI, Toni. Del Obrero-Massa al Obrero Social. Barcelona: Anagrama, 1980, p.96.
[7] HARDT, Michael. Learning about Antonio Negri. 2004. Disponível aqui, acessado em julho de 2009.
[8] BOLOGNA, Sergio. Steve Wright’s Storming Heaven. Class composition and struggle in Italian Autonomist Marxism. s/d. Disponível aqui, acessado em julho de 2009.
[9] WRIGHT, Steve. Storming Heaven: Class Composition And Struggle In Italian Autonomist Marxism. Londres: Pluto Press, 2002.
[10] ABSE, Tobias. Judging the PCI. New Left Review, n. 153. London, oct.-sept., 1985.
[11] BATTISTI, Cesare. Minha Fuga sem Fim. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.38.
[12] NEGRI, Antonio. Toni Negri en Buenos Aires. In: NEGRI, Antonio; et al. Diálogo sobre la globalización, la multitude y la experiencia argentina. Buenos Aires: Paidós, 2003, p.38.
[13] Nos referimos à tese de doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, em 2008: Movimentos de Moradia e Sem-Teto em São Paulo: experiências no contexto do desmanche.
[14] NEGRI, Antonio. Empire and Beyond. Malden: Polity Press, 2009.

fontana-fIlustrações: telas de Lucio Fontana

7 COMENTÁRIOS

  1. Originariamente, as inovações teóricas de Negri inseriram-se num debate bastante amplo no seio da esquerda marxista, incluindo os partidos comunistas francês e italiano, e em que ocupou um lugar importante o «Capítulo Inédito» de O Capital. Este meu comentário diz respeito a esse conjunto de posições, e não especificamente às teses defendidas por Negri. Apesar disso, não me parece despropositado no artigo do Leo Vinicius, porque trata de questões que lhe estão subjacentes.
    A confusão entre trabalho produtivo e fabrico de objectos palpáveis e sujeitos à lei da gravidade tem sido feita pelos marxistas que se reivindicam do leninismo e do trotskismo, possivelmente por razões corporativas, porque eles se encontram ligados − quando se encontram ligados a alguma coisa − às burocracias sindicais de base operária tradicional.
    No entanto, em O Capital Marx definiu muito claramente o trabalho produtivo como aquele que produz mais-valia, e definiu a mais-valia como uma relação de produção em que os produtores são desapropriados tanto do produto como do conhecimento e do controlo do processo de trabalho. Em O Capital, que pode ser considerado uma longa crítica à reificação, seria difícil imaginar que Marx confundisse uma relação social com um produto material dessa relação social. Aliás, mesmo naquela época de capitalismo estritamente fabril, e em que, por conseguinte, a grande parte do trabalho produtivo dava lugar a objectos materiais e palpáveis, Marx incluiu no trabalho produtivo a actividade dos transportes, que depois seria considerada como um serviço.
    Com a taylorização da actividade dos escritórios e, em seguida, com o fim do fordismo e a difusão do toyotismo, passou a ter uma importância crescente a exploração da componente intelectual do trabalho. A divisão entre indústria e serviços perdeu a razão de ser e ambas as actividades obedecem hoje ao mesmo sistema de organização do trabalho. Uma vez mais, o que importa são as relações sociais estabelecidas no processo de trabalho e não o facto de o resultado desse trabalho obedecer ou não à lei da gravidade.
    Mas é necessário distinguir claramente a cisão social ocorrida no interior dos novos processos de trabalho. Sem dúvida que a componente intelectual da actividade laboral é cada vez mais importante. No interior deste quadro, porém, há os que perdem qualquer direito ao controlo do seu processo intelectual e que não conseguem organizar o seu horário de trabalho independentemente das pressões do capital; e há os que se inserem nas hierarquias que controlam e organizam os processos de trabalho alheios. Uns são trabalhadores produtivos, explorados; os outros são gestores capitalistas, exploradores.
    Ora, esta clivagem não pode ser detectada nem entendida se não admitirmos a existência no capitalismo de duas classes exploradoras: a burguesia, que se apropria do capital directamente no plano jurídico, graças à propriedade dos meios de produção; e os gestores, que se apoderam do capital no plano organizativo, graças ao controlo exercido sobre o processo de trabalho.
    Pouco importa que o antagonismo entre trabalhadores e gestores ocorra no interior das paredes de uma mesma empresa ou que ocorra entre pessoas ligadas pela terceirização e pela subcontratação. Dando continuidade a um processo inaugurado há muito, a concentração económica do capital deixou de exigir a concentração jurídica, e as tecnologias de controlo electrónico permitem agora a uma pequena sede, onde se concentra o capital, organizar a produção de um grande número de subcontratantes e de trabalhadores individuais. Nestes casos a dispersão jurídica corresponde a um aumento da concentração económica. E se a precarização do emprego levou o assalariamento a assumir formas jurídicas diferentes, o que importa é a clivagem existente no interior das novas formas assumidas pelas relações de trabalho. Não nos devemos prender aos termos jurídicos para definir os limites da empresa, que só devem ser definidos em termos de relações de produção.
    Os autores que não procedem com a necessária clareza àquela divisão de classes gozam de uma considerável popularidade, porque nas suas teses podem rever-se tanto alguns dos novos trabalhadores produtivos «imateriais» como alguns dos novos gestores «imateriais». Essas teses chamam a atenção para o novo quadro de exercício do trabalho, mas sem destacarem devidamente os mecanismos de exploração decorrentes desse quadro. Por isso, julgo que elas reformulam na época contemporânea a ambiguidade social que tem viciado a esquerda anticapitalista e a tem conduzido às suas derrotas históricas − a ausência de uma clivagem clara entre trabalhadores e gestores. É a camada social mais directamente beneficiada por esta ambiguidade que, na minha opinião, se sente representada por essas teses.

  2. Seguindo o comentário do João Bernardo, aqui há um bom artigo, a partir de um estudo de caso que problematiza a questão das ‘classes criativas’ e dos gestores dentro de um empreendimento que mobiliza o tal trabalho imaterial ou a intelectualidade de massa: http://www.ephemeraweb.org/journal/7-1/7-1arvidsson.pdf

    De fato na teoria dos pós-operaístas a clivagem entre trabalhadores e gestores ou capitalistas é no minimo obscura. Michael Albert critica o conceito de multidão nesse sentido também.
    Em uma passagem de um livro que não me recordo exatamente qual e que não me aventuraria procurar agora, porém Negri expõe de forma mais convincente ou clara, o que distinguiria o trabalhador do capitalista para ele. O conflito que distinguiria ambos giraria, em poucas palavras, em torno da tentativa de apropriação do produzido em comum por parte do capitalista. Claramente uma concepção mais fácil de ser apreendida e identificada por quem paticipa diretamente do tal ‘capitalismo cognitivo’.

  3. Lembrei que havia separado a passagem de Negri que aludi no comentário anterior. Então pude recuperá-la.

    Em “Cinco Lições sobre o Império” Negri busca indicar os meios para se distinguir entre os gestores e trabalhadores dentro do conceito de multidão, uma vez que enquanto conjunto de singularidades produtivas na hegemonia do trabalho imaterial, isto é, quando a atividade social como um todo gera valor, ao menos a princípio, ele englobaria sem distinção todos na sociedade. A diferenciação entre “o gerente e o operário”, ou entre o gestor e o trabalhador, seria dada pelo comum: “é somente a afirmação do “comum” que nos permite orientar de dentro dos fluxos de produção e separar os capitalistas, alienantes, dos que recompõem o saber e a liberdade. O problema será então resolvido por uma ruptura prática, capaz de reafirmar a centralidade da práxis comum” (p.227).
    Em outras palavras, essa separação só se daria na prática, através de uma práxis que os diferenciaria, na qual os trabalhadores se reconhecessem através do que têm em comum e produzem em comum, contra a apropriação privada dos capitalistas.

    “Exploração deverá significar de fato, apropriação de uma parte ou de todo o valor que foi construído em comum. (Este “em comum” não quer dizer que, na produção, trabalhadores e patrões estejam juntos: absolutamente não! A luta de classe continua!) A emergência do comum que se dá no processo produtivo não elimina o antagonismo interno à produção, mas o desenvolve – imediatamente – no nível de toda a sociedade produtiva. Trabalhadores e capitalistas se chocam na produção social, porque os trabalhadores (a multidão) representam o comum (a cooperação), enquanto os capitalistas (o poder) representam as múltiplas mas sempre ferozes – vias de apropriação privada” (Negri, Cinco Lições sobre o Império, p.266-267).

  4. Uma coisa que me incomoda na esmagadora maioria dos debates em torno das formulações teoricas de Negri, bem como de varios outros intelectuais (tanto da parte dos seus criticos, como daqueles que compartilham das suas leitura) é que eles se restringem ao locus de referência analitica dos paises centrais do capitalismo, sobretudo a Europa Ocidental. Pior ainda, acabam por universalizar certas categorias e conceitos que, para a maior parte do globo e da sua população, são apenas parcialmente validos, ou mesmo invalidos. Eh a praxis quem perde com isso.

    Ora, que um Negri e um Hardt acabem por generalizar uma analise teorica formulada no contexto europeu e, em menor medida, estadunidense, isso podemos compreender mais facilmente, embora não devamos deixar de criticar. Agora, que os companheiros no Brasil, Argentina, México ou Africa do Sul sigam empregando irrefletidamente conceitos como o de trabalhador precario para designar trabalhadores como catadores ou ambulantes e formulando programas politicos para esse sujeito potencialmente revolucionario por meio de categorias inadequadas, ai o problema é grave.

    Afinal, se observarmos a composição da classe trabalhadora na América Latina, por exemplo, veremos que, entre a sua grande maioria – e, sobretudo, entre aqueles que animam os mais consistentes movimentos sociais – e o precario Europeu (o jovem desempregado, o subcontratado, o desempregado que ainda consta de alguma assistência social etc.) ha bem mais do que um oceano de diferenças. Creio que reconhecer essas diferenças tem uma importância que extrapola e muito uma mera demanda por rigor. Muda, “simplesmente”, os parâmetros para a definição de uma pratica revolucionaria coerente. Por exemplo: perante a condição de trabalhadores como camelôs, catadores de material para reciclagem e jovens favelados ou da periferia das grandes metropoles brasileiras, as estratégias de apropriação dos meios de produção borram as separações entre o capital cognitivo e o capital material. Igualmente, a sua luta para a criação do comum passa muito mais pela territorialização de parcelas do espaço do que por qualquer tipo de reivindicação, como a reivindicação tão coerentemente defendida por Negri de um “salario de remuneração da vida” (não sei se é esse o termo exato que Negri utiliza para essa renda minima a todos) – isto é, coerente para a realidade a qual ele analisa e milita!

    Ademais, em nossos contextos semiperiféricos, as formas de controle também são qualitativamente distintas. Basta pensar na territorialização de espaços segregados por grupos armados e a violação sistematica de direitos humanos basicos por parte do Estado. Uma pergunta que poucos tem se colocado é saber como superar as ingerências ou mesmo os ataques que esses grupos disferem contra os movimentos sociais das cidades latinoamericanas.

    Francamente, creio que não apenas agendas de pesquisa coerentes com a realidade do capitalismo na sua semiperiferia são fundamentais para a elucidação da realidade e a atuação politica nessas regiões, como elas tendem a ser também cada vez mais pertinentes para as areas centrais! A respeito dessas agendas de pesquisa, indico a leitura atenta dos trabalhos de Marcelo Lopes de Souza, o qual, na minha opinião, é um dos intelectuais que mais tem contribuido atualmente para superar a “descolonização do saber” nessa seara. Eh evidente que, para esse tipo de investigação, as contribuições de um Negri, bem como as de um Andre Gorz e mesmo um Ivan Ilich são muito relevantes, desde que não nos impeçam de construir as ferramentas analiticas apropriadas para as nossas realidades.

  5. Morreu Antonio Negri. Resguardadas todas as críticas que lhe possam ser dirigidas, foi-se um militante e intelectual fundamental para a esquerda autonomista.

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