Por Emanoel Conceição

As paralisações de policiais militares em diversos estados do Brasil são o fato político mais importante de fevereiro. Para nós de Salvador mais especificamente, que vivemos a mais longa e radicalizada entre todas, é o momento de falar sobre o que se viveu, e refletir sobre isto.

Se tratarmos a questão como um debate sobre a “natureza da polícia” até chegarmos a uma “correta linha de massas”, entraremos num debate vazio bem ao gosto de certas correntes da extrema-esquerda, ao sabor de sua inserção ou afastamento da tropa. Se, ao invés de um tratamento “essencialista” para definir posição sobre as greves, optarmos por analisá-las como fatos políticos cujas consequências é preciso elucidar, as alternativas são muitas. A polícia – civil ou militar – é talvez o principal aparato de controle social, mas não o único; quem quer que haja trabalhado sob supervisão de gerentes, capatazes, chefes de turma e similares o sabe. Mas parece ser regra geral que a polícia e seu aspecto coercitivo ocultam estes outros aparatos de controle social, como a mídia, as telecomunicações, o trânsito, a circulação de transporte de massa, a “opinião pública” etc., deixando-os em segundo plano. Com a paralisação da polícia militar, entretanto, todos os aparatos restantes são empregues em conjunto, e mais cerradamente, para manter a ordem que a repressão explícita não mais garante.

Em primeiro lugar, a cobertura midiática da greve expôs, para quem ainda tivesse dúvidas, seu papel de aparato de controle social. Nos primeiros dias, a paralisação foi apresentada como uma “greve parcial” conduzida por “uma associação que não participa da negociação com o governo” como as outras cinco associações representativas de policiais. (Não custa lembrar que a sindicalização de militares é proibida no Brasil, tal como foi, décadas atrás, a sindicalização de funcionários públicos; na ausência de sindicatos, as associações participam das negociações tipicamente sindicais.) Logo em seguida, quando ficou evidente a enorme adesão da tropa ao movimento, insistiam no fato de a greve ser puxada por uma dentre seis associações de policiais, e tentaram forçar a barra mostrando como diversos pontos turísticos de Salvador continuavam a ser frequentados “como se nada estivesse acontecendo”. Na sexta-feira (03/02), quando as redes sociais já haviam “furado” a mídia corporativa ao mostrar cenas de saques a lojas de eletrodomésticos e o número de ocorrências policiais evidenciava um panorama de crescente violência social, a TV Bahia pautou duramente a criminalização do movimento e, através da divulgação maciça de imagens de uma cidade com ruas vazias e sem segurança, incitou as pessoas a ficar em casa por meio de um clima de pânico e terror e de disseminação de boatos de arrastões. A chegada das tropas da Força Nacional e do Exército foi saudada quase como se tratasse de tropas libertadoras entrando numa cidade ocupada, embora sua presença fosse restrita num primeiro momento aos pontos de maior importância econômica (Centro Histórico, Iguatemi, Comércio) ou de residência da elite econômica de Salvador (Pituba e Barra).

Daí em diante, o foco da mídia mudou. Não obstante o incontornável aumento no número de ocorrências policiais e a adesão progressiva à paralisação de unidades policiais no interior do Estado, tratava-se agora de isolar os grevistas acampados na Assembleia Legislativa, pois havia mandados de prisão a cumprir e se fazia necessário enfraquecer o movimento enquanto a Força Nacional e o Exército cercavam o prédio. Foi então que surgiram as primeiras escutas vazadas. (Lembrem-se que escutas autorizadas pela Justiça são feitas pela própria polícia; o vazamento foi feito pelos próprios órgãos policiais de inteligência e espionagem, cuja atividade, como se viu, não foi paralisada.) O objetivo explícito destes vazamentos de escutas – que incluíram interceptação de conversas via mensageiros instantâneos – era o de transformar certas frases isoladas de seu contexto em prova cabal das intenções “criminosas” e “políticas” dos policiais paralisados, que em suas conversas não trataram de outra coisa além de assuntos que certas lideranças de movimentos sociais, por absurda ingenuidade, são useiras e vezeiras de tratar via celular. Tudo bem orquestrado, restava apenas cercar a Assembleia Legislativa, mostrar como era “absurdo” que os policiais colocassem mulheres e crianças para “correr riscos”, e a partir de então aguardar até que os policiais derrotados fossem exibidos – com “imagens exclusivas”, óbvio – numa perp walk macabra e mostrar o retorno à normalidade.

Em segundo lugar, a ausência de policiamento colocou os trabalhadores do setor de transporte público em alerta. Logo nos primeiros dias anunciaram sua intenção de paralisar os ônibus após as 18h caso as condições de segurança não estivessem favoráveis – e com razão, pois estão constantemente sujeitos à violência de quem quer que busque nos ônibus o dinheiro que deixarão nas empresas ao final de seu expediente. Muito rapidamente se estabeleceu um canal de negociação com o sindicato dos rodoviários para evitar sua paralisação, e chegou-se a um acordo que manteve os ônibus rodando em seus horários regulares. Entretanto, em diversos momentos ônibus foram paralisados em locais de grande fluxo de veículos por indivíduos armados logo associados pela mídia corporativa aos policiais paralisados. Os ônibus foram atravessados nas pistas e suas chaves, jogadas fora; os longos engarrafamentos estressaram ainda mais uma população já bastante assustada, e ninguém naquele momento cogitou a hipótese de estes indivíduos armados serem simples agentes provocadores agindo para “queimar” o movimento, ou de estarem interessados em paralisar o trânsito para fazer “arrastões”.

Em terceiro lugar, quando os policiais param as milícias e os “seguranças particulares” entram em cena. Gente da área de segurança pública passou a impressão de que, em dados momentos, a própria tropa foi surpreendida pela paralisação. Estima-se, ainda sem precisão, que o número de “seguranças particulares” em Salvador seja bastante superior ao de policiais militares, e é certo que policiais fazem “bicos” como seguranças para complementar salários. A mídia corporativa noticiou sem parar o aumento no número de assassinatos, mas omite o fato de muitos deles terem características de execução; somente com o final da greve foi que se levantou esta hipótese.

Por último, é interessante ver como a paralisação embaralhou as posições políticas – ao ponto de um deputado do DEM-BA assumir falas de “sindicalista” e um deputado do PT-BA assumir falas de “patrão”, e de um antigo repressor de manifestantes pautar o diálogo. Marco Prisco, a mais visada liderança dos policiais, é filiado ao PSDB, que manteve apoio velado ao movimento. Enquanto o PSOL baiano, coerente com sua análise de sociedade que vê os policiais como trabalhadores e suas paralisações como momentos de “explicitação das contradições do Estado”, tentou apoiar os policiais acampados na Assembleia Legislativa para “evitar um massacre” – coisa que nem o próprio Exército queria – a base do PT e do PCdoB rachou quanto ao assunto. Quadros de alto escalão dos dois partidos na Bahia tentam por todos os meios justificar as medidas repressivas adotadas pelo governo do Estado contra os policiais, mas as críticas se avolumam. Ainda é cedo para dizer, mas, a depender do que se conversa de boca a ouvido por aí, houve abalos sérios na credibilidade do governo junto à base dos partidos que o sustentam, e isto poderá ter efeitos diretos na construção de coalizões eleitorais neste ano.

4 COMENTÁRIOS

  1. O mais interesssante de tudo isso é ver como o próprio PT e base aliada racharam diante dessa situação.
    Muito da divisão que se estabelaceu na esquerda quanto a isso adveio da existência de duas interpretações distintas da realidade social.
    Dentro de uma mentalidade da antiga esquerda – no sentido russo, por exemplo – as forças armadas são vistas como um fator relevante para a realização da revolução (revolução entendida como transformação radical das bases econômicas da sociedade). O braço armado é visto por um lado com suspeita, contudo, na medida em que ele se põe a serviço da revolução, passa a ser um dos seus principais componentes.
    Contudo, sob a perspectiva de uma esquerda contemporãnea, pós escola de Frankfurt, “pós moderna”, que descrê do projeto revolucionário no sentido russo, as forças armadas são mais um campo de luta ideológico, de contestação de uma ideologia classista, autoritária, dentro da realidade burguesa.
    A esquerda antiga vê a questão de um ponto de vista estrtural, enquanto a moderna vê de um ponto de vista cultural ou ideológico.
    Atualmente, no Brasil, temos a meu ver uma situação estranha. Uma parte da dita “esquerda” está no governo, e busca potencializar a luta no campo ideológico cultural, contudo, por estar no exercício do poder político, pode vir a sofrer com alguma insubordinação de seus comandados, atraídos pela proposta que ele mesmo – governo – busca implantar.
    É evidente que essa proposta não passa pela derrubada do Estado ou nada parecido, de modo que se tem aí uma tensão para administrar, entre mentalidade revolucionária – num sentido contemporaneo, de revolução cultural – e estabilidade do poder político em exercício.
    Insubordinados no exército e na Polícia sempre houve, não acho que essas ocorrências em Salvador sejam um fruto muito específico da conjuntura político econômica atual. Vejo mais como um mero vazio normativo devido a falta de regulamentação da greve dos servidores públicos somado a insatisfação salarial e agitação de momento.

  2. Funny thing! Gozado mesmo! Ora se divulga que a polícia é o instrumento de repressão mais ativo, ora se pretende que seus salários sejam melhores: haja contradição! Pagar bem aos que reprimem, é isso que se cobra? Sim, são trabalhadores, etc. mas na hora que são tachados de repressores por natureza e por vocação, o coerente seria não lutar por eles, não usá-los como cavalo de batalha ou massa de manobra política, como tem sido feito por partidos e correntes emergentes. Vale, vale tudo …

  3. rodrigo, ao menos em São Paulo quase a totalidade da tropa tem um segundo emprego “oficial”, reconhecido pelo estado. A greve do emprego “principal”, fardado, pelo qual o Estado arma e treina eles, abre o caminho para que eles possam trabalhar integralmente como tropas de aluguel enquanto supostamente lutam por seus direitos trabalhistas.

    Se alguém tiver mais detalhes seria interessante analisar qual é a relação entre os praças e os oficiais nesta greve.

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