Por João Bernardo

Equivalência de Fisher

É impossível escrever sobre economia sem empregar termos económicos, embora frequentemente os leitores esperem esse milagre.

Começo pela equivalência que Irving Fisher, um economista activo no extremo final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, estabeleceu entre as transacções e os meios pecuniários, e adopto essa equação na forma parcialmente remodelada por alguns economistas posteriores. Se considerarmos M como a quantidade de meios de pagamento, V como a velocidade da sua circulação, P como o nível dos preços e Q como o Produto Interno Bruto, PIB, então

M x V = P x Q

Os monetaristas, que fornecem o suporte académico ao que hoje a torto e a direito se chama neoliberalismo, veneram Fisher como um dos seus principais precursores, por isso não se deve estranhar que eu comece por aquela equivalência. Ela significa que, se multiplicarmos o PIB pelos preços correntes, o resultado será igual à multiplicação da massa de meios de pagamento pela velocidade da sua circulação. Como três destes conceitos são bem conhecidos, limito-me a esclarecer, para quem não o saiba, que a velocidade de circulação do dinheiro é a frequência média com que uma unidade monetária é usada como meio de pagamento num dado período, ou seja, em termos banais, a frequência com que ela passa de mão em mão.

Os monetaristas, partindo do princípio de que V é independente das alterações de M, pretendem que a redução da taxa de emissão de M faz baixar P, ou seja, noutros termos, que restringindo a moeda em circulação se baixa a inflação.

Agora façamos um raciocínio muito simples, ou antes, simplificado. Se, como Nicholas Kaldor demonstrou, o postulado monetarista da independência de V relativamente a M é um logro; e se, apesar disso, os monetaristas atingem os resultados práticos que pretendem ao restringirem M; ou seja, se conseguem baixar P; então isto significa que os monetaristas agem sobre Q. Detalhando um pouco o raciocínio, a redução da massa monetária só poderá ter como efeito directo a diminuição do nível médio dos preços, consoante o defendido pelos monetaristas, se se assumir que a velocidade de circulação dos meios de pagamento é constante. Senão, a diminuição de M levaria imediatamente ao aumento de V. Este é o ponto fraco da teoria monetarista, tal como ela existe hoje, e o postulado da inalterabilidade de V baseia-se em estudos empíricos parciais e insuficientes. No entanto, apesar de errados na teoria, os monetaristas obtêm êxito na prática. Ora, mantendo-me na equivalência de Fisher, isto só é explicável porque a política monetarista age igualmente sobre o outro lado da equação, reduzindo a remuneração dos trabalhadores. Considero aqui remuneração no sentido amplo, incluindo tanto o salário nominal como os serviços públicos de carácter social. Reduzindo M e ao mesmo tempo reduzindo a porção de Q destinada ao consumo dos trabalhadores, os monetaristas, não enquanto corrente de pensamento académica mas enquanto doutrina de acção política, conseguem reduzir P. A baixa do nível médio de preços não se deve directamente à diminuição da massa monetária, mas à diminuição do consumo real dos trabalhadores. Vejamos com mais detalhe.

Ao contrário do que parece, o eixo da política monetarista não consiste na acção sobre a moeda mas na acção sobre o consumo. Trata-se de impor a austeridade nas condições de vida da grande maioria da população. Esta austeridade exerceu-se antes de mais sobre os serviços prestados gratuitamente ou a baixo preço pelo Estado, que constituíam uma parte integrante da remuneração não monetária. Alguns destes serviços foram cancelados e outros passaram a ser pagos, total ou parcialmente. Para isso foi necessário rentabilizá-los, ou seja, reduzir o número de funcionários, reforçar a disciplina interna e aumentar a intensidade do trabalho, o que provocou confrontos com os sindicatos, já que nas últimas décadas os sindicatos se resumiram praticamente aos serviços públicos.

Vendo-se na necessidade de comprar serviços privados para substituir aqueles que o Estado antes fornecia gratuitamente ou a preços subsidiados, os trabalhadores sofreram uma diminuição relativa do M de que dispõem, tendo de prescindir da aquisição de outros bens. E já que o crescimento económico e o progresso da produtividade levam Q a aumentar, este conjunto de factores obrigou P a baixar. Por outras palavras, a diminuição relativa da massa monetária posta à disposição dos trabalhadores, numa situação de crescimento do PIB, acompanha uma diminuição da taxa de aumento dos preços. Menos procura para mais oferta, baixam os preços.

Monetarismo e flexibilização do trabalho

Aquela política de austeridade está intimamente ligada às alterações entretanto operadas nas relações de trabalho. No sistema de mais-valia relativa conhecido como Estado de bem-estar social, em geral associado ao keynesianismo, os incentivos eram postos à disposição da globalidade da força de trabalho. Sistemas de saúde e de segurança, complexos culturais e de lazer, tudo isto era oferecido à globalidade da população, independentemente do nível de qualificação e do grau de produtividade que caracterizassem cada utente [usuário]. Trabalhadores aptos a laborar com as formas tecnológicas mais avançadas e outros que estavam reduzidos às condições da mais-valia absoluta em ramos arcaicos, para nem falar dos desempregados, todos eles podiam usar em igualdade os mesmos serviços públicos sociais.

Ora, nas últimas décadas a política de austeridade introduziu uma modalidade mais sofisticada de articulação da mais-valia relativa com a mais-valia absoluta. Muitos serviços públicos de carácter social deixaram de ser gratuitos ou pagos a preços simbólicos e foram substituídos por serviços privados e por serviços que algumas empresas colocam à disposição dos seus trabalhadores, enquanto outros serviços públicos passaram a aproximar-se dos preços reais. Este conjunto de modificações não impede que os trabalhadores mais qualificados tenham acesso a serviços de boa qualidade, quer porque existem no tipo de empresas onde laboram quer porque o seu nível salarial é suficiente para os adquirirem no mercado. E os trabalhadores menos qualificados, ou em geral aqueles que estão sujeitos a formas de mais-valia absoluta, para nem mencionar os desempregados, vêem-se afastados de tudo o que não sejam serviços mínimos.

Assim, o capitalismo atinge alvos precisos, aumentando os investimentos na força de trabalho mais qualificada, que mantém uma relação de longo prazo com as empresas onde labora, e desinvestindo da força de trabalho menos qualificada, condenada a um alto grau de rotatividade no emprego ou lançada no desemprego. Com uma força de trabalho assim composta e estratificada é possível instaurar medidas de austeridade sem que isto afecte os sectores dedicados à mais-valia relativa. O mercado que serve para direccionar as várias categorias de serviços presta-se igualmente a direccionar o peso da austeridade.

Esta passagem de um regime em que os incentivos eram genéricos e endereçados a um alvo global para outro regime em que eles são específicos e orientados para alvos particulares corresponde ao fim do sistema fordista nas relações de trabalho e à instauração do sistema toyotista. A política de austeridade, a que o monetarismo confere uma caução académica, adequa-se à flexibilização da força de trabalho, quando os trabalhadores muito qualificados de um dia podem ser deitados fora no dia seguinte se as suas habilitações se tiverem tornado obsoletas; quando o assalariamento regular abrange apenas aqueles trabalhadores com quem a empresa procedeu a grandes despesas de formação técnica; quando se gera uma multidão de trabalhadores precários, contratados a curto prazo, que laboram hoje numa empresa e amanhã noutra ou em lugar nenhum, e cuja alta rotatividade os torna impróprios para receber qualquer qualificação que ultrapasse o nível básico; quando as fronteiras entre o emprego precário e o desemprego se diluíram.

Monetarismo e desemprego

A relação entre a política de austeridade, a flexibilização da força de trabalho e a perda de nitidez dos limites do emprego, que na prática corresponde a um aumento do desemprego, foi concebida pelos monetaristas mediante a remodelação de um utensílio de análise económica. Enquanto o keynesianismo deteve a hegemonia considerava-se que a inflação e o desemprego eram inconvenientes alternativos e que, para reduzir o desemprego, devia aceitar-se uma maior inflação. A curva de Phillips foi o instrumento macroeconómico que serviu para dar uma caução académica a esta alternativa. A eficácia da curva de Phillips foi aparentemente posta em causa durante o período da estagflação, ou seja, uma inflação acompanhada pela estagnação económica e em que, por conseguinte, o desemprego aumentou. Embora fosse talvez interessante rever o problema da validade da curva de Phillips à luz das lições actuais, em que a luta contra a inflação tem sido feita à custa do emprego, não é isto que me vai ocupar aqui. Descartando a curva de Phillips, os monetaristas substituíram-na pela Natural Rate of Unemployment, NRU, Taxa Natural de Desemprego, cuja invenção serviu a Milton Friedman e a Edmund Phelps para obterem o prémio Nobel de Economia.

A Taxa Natural de Desemprego pretende conceber um grau de desemprego consistente com a actividade produtiva, o PIB, a longo prazo. Essa Taxa é determinada sobretudo pelo lado empresarial — o lado da oferta, supply side — e portanto deve ser compatível com as instituições económicas existentes e as suas capacidades de produção. Natural aqui significa simplesmente que se trata do desemprego determinado pelo mercado de trabalho de acordo com as expectativas patronais. As alterações a curto prazo podem provocar desvios para um e outro lado da Taxa Natural, mas a sua oposição à curva de Phillips serviu para tentar mostrar que é impossível reduzir duravelmente aquela Taxa através de uma política keynesiana dirigida para o aumento do consumo popular — o lado da procura, demand side. Na perspectiva monetarista, a Taxa Natural de Desemprego só poderá ser reduzida mediante uma redução duradoura dos salários reais.

Tal como ocorreu a respeito da equivalência de Fisher, também aqui foi necessário passar das salas de aula para a política prática. A curva de Phillips pressupunha que os trabalhadores não aceitassem reduções dos salários nominais, daí a necessidade da inflação, para baixar dissimuladamente os salários reais. Ora, a Taxa Natural de Desemprego pôde vigorar porque se operaram no plano institucional modificações que levaram os salários a perder ou atenuar a rigidez no movimento descendente. Aliás, com este objectivo os bancos centrais foram tornados independentes dos governos e obrigados pelos seus estatutos a fixar metas estritamente monetárias, sem tomarem em consideração a taxa de desemprego. A fragmentação e a precarização da força de trabalho e as alterações nos sistemas de subsídios de desemprego destinadas a pressionar os desempregados a aceitarem colocação em postos inferiores aos das suas habilitações foram a base prática que permitiu a substituição teórica da curva de Phillips pela NRU.

Esta evolução foi agravada quando os monetaristas substituíram a NRU pela NAIRU, Non-Accelerating Inflation Rate of Unemployment, Taxa de Desemprego Não-Acelerando a Inflação, definida como o nível de desemprego abaixo do qual sobe a inflação. O aumento durável do desemprego leva estes economistas a aumentar a Taxa, ou seja, o agravamento da situação acciona automaticamente o instrumento conceptual destinado a legitimar esse agravamento. Com este círculo vicioso os monetaristas conferiram à tautologia pretensões científicas. Quando os bancos centrais têm como objectivo manter a taxa de inflação abaixo de um dado nível, isto significa manter o desemprego acima de um dado nível. Uma vez mais, o monetarismo, ao passar das universidades para a política, deixou de dizer respeito à moeda e passou a visar as condições de vida da classe trabalhadora.

Monetarismo e responsabilidade social de empresa

As classes sociais só existem e só se definem numa relação recíproca, e uma mudança no interior de uma classe social necessariamente implica mudanças correspondentes no interior das outras classes sociais.

Ao mesmo tempo que a política de austeridade, a flexibilização do mercado de trabalho e as pressões para que os governos se cinjam a equilíbrios orçamentais compatíveis com a NAIRU desmantelaram o Estado de bem-estar social, foi-se tornando cada vez mais importante o tema da responsabilidade social de empresa. Isto significa que um conjunto de procedimentos que antes estava a cargo do aparelho de Estado passou a caber às grandes empresas, que os aplicam de forma selectiva e não genérica. O Estado de bem-estar social visava o conjunto dos trabalhadores de um país, enquanto a acção de uma empresa que assume a sua responsabilidade social atinge exclusivamente os assalariados desta empresa ou a população em redor.

Entretanto, como essas empresas com responsabilidade social são na maior parte companhias transnacionais, enquanto o Estado de bem-estar social era, por definição, nacional, a política de austeridade e o monetarismo corresponderam ao movimento de supranacionalização ocorrido entre os capitalistas.

Monetarismo e instrumentos financeiros

Além destas profundas alterações institucionais, directamente adequadas às modificações introduzidas nas relações de trabalho, ocorreu outra enorme alteração no plano estritamente monetário. A mesma política que, reduzindo M e simultaneamente reduzindo a percentagem de Q destinada ao consumo dos trabalhadores, conseguiu reduzir P, tem efeitos muito consideráveis sobre a circulação monetária vigente entre as empresas capitalistas.

No começo deste artigo invoquei Nicholas Kaldor para afirmar sumariamente que o dogma monetarista da independência de V relativamente a M é um logro. Torna-se indispensável, porém, introduzir aqui uma divisão de classes sociais, porque se é impossível fixar V nas relações entre empresas, todas elas baseadas no crédito e no clearing — ainda mais sendo hoje estas operações efectuadas com a instantaneidade permitida pela electrónica — nas relações entre particulares é mais fácil manter V dentro dos limites pretendidos, porque, excepto em circunstâncias extremas, os particulares não têm o crédito e o clearing como base das suas relações mútuas.

Passou-se algo de semelhante com o outro componente do lado monetário da equação, M. Nas condições de austeridade que permitem reduzir a porção de Q destinada ao consumo dos trabalhadores, os monetaristas puderam restringir M. Tornados independentes dos governos, os bancos centrais foram obrigados pelos seus estatutos a manter limites rígidos para a emissão monetária. Ora, como a história mostra e como Kaldor não deixou de recordar, se a emissão oficial de M diminuir mais do que a economia pode suportar, surgem formas pecuniárias devidas à iniciativa dos particulares. Em circunstâncias normais, e exceptuando os casos extremos de guerras e catástrofes naturais, a população comum não gera nem põe em circulação substitutos monetários, excepto em âmbitos muito restritos e desprovidos de efeitos económicos globais, como sucede por exemplo com a transformação de vales de refeição ou de transporte em meios de pagamento aceites na loja da esquina. Já nos nos pagamentos de particulares a empresas o uso de cartões magnéticos pode acelerar V e permitir que se efectue um maior número de transacções com o mesmo M. Mas é sobretudo nas relações entre as grandes empresas capitalistas que a situação muda radicalmente. Os substitutos monetários aumentaram numa dimensão nunca vista, graças aos derivativos e a toda a restante variedade de instrumentos bancários. Quanto mais os bancos centrais impõem restrições monetaristas à emissão de M, tanto mais os banqueiros e as suas equipas de economistas se dedicam a prodígios de imaginação para multiplicar os substitutos monetários.

Em suma, enquanto V e M se mantêm relativamente estáveis entre os particulares, crescem exponencialmente entre as empresas. O monetarismo levou a uma estratificação social sem precedentes nos meios de pagamento, nas suas formas e na sua circulação, de modo que a equivalência de Fisher se desdobrou em duas modalidades: uma para os valores existentes no mercado das transações correntes; e outra para aqueles existentes no mercado das maiores empresas e das instituições financeiras que as servem. Conhecem-se na história sistemas económicos em que o dinheiro assumia formas rigorosamente diferenciadas consoante as classes sociais, mas no capitalismo o dinheiro tem sido um factor de homogeneização social. Esta situação alterou-se com o monetarismo e foi aquele desdobramento dos meios de pagamento que a população comum, e não poucos economistas com ela, entenderam como especulação e como desvio do dinheiro para formar um capital fictício. Nada há aqui de fictício. Bem pelo contrário, trata-se de uma forma real de ultrapassar os limites rígidos do monetarismo, muito úteis para diversificar e precarizar a classe trabalhadora, mas que liquidariam a economia se fossem aplicados ao capital. No plano ideológico esta cisão entre esferas monetárias teve efeitos nocivos, tornando-se uma delas opaca para a outra.

Disciplina fiscal

No processo de unificação económica da Europa e de constituição da zona euro coube à Alemanha, e especialmente ao seu banco central, o Bundesbank, o papel de zelar pela aplicação do monetarismo. Quando o Sistema Monetário Europeu, SME, foi fundado em 1979, com o objectivo de estabelecer margens estreitas para a flutuação das várias moedas nacionais, de maneira a coordenar essa flutuação e impedir grandes depreciações, não foi definida nenhuma moeda que servisse de âncora e em vez disso criou-se o ECU (European Currency Unit, Unidade Monetária Europeia), baseado num cabaz [cesta] de moedas europeias. Na realidade, porém, eram o marco alemão e o seu garante, o Bundesbank, quem ocupava o centro do SME e conduzia o processo. A sequência dos acontecimentos confirmou a centralidade do Bundesbank, porque os países membros do SME procuravam que as suas taxas de inflação se aproximassem da taxa alemã. Gradualmente estes países abdicaram da condução da sua política monetária, excepto a Alemanha, cujo marco funcionava, na prática, como âncora do sistema. Isto explica por que motivo a Alemanha admitiu partilhar com outros países a orientação do sistema monetário europeu, quando foi estabelecido o Banco Central Europeu, BCE, e criado o euro. A Alemanha aceitou a moeda comum porque estava no centro do processo e tinha a intenção de lá permanecer. O euro deveria dar continuidade ao marco alemão e o BCE tomaria o Bundesbank como modelo.

A disciplina fiscal rigorosa que a primeiro-ministro alemã Angela Merkel se esforça agora por impor aos países da periferia meridional da zona euro está na legítima continuidade de três décadas de política económica europeia.

Não é admissível sequer como hipótese que a tenacidade de Angela Merkel conte com uma base de apoio restrita e indique qualquer fractura de interesses no interior do capitalismo do seu país, porque historicamente tem cabido aos bancos privados alemães um papel determinante na orientação das grandes empresas industriais. As firmas mais importantes obtêm a maior parte do capital não mediante a bolsa de valores, mas graças a empréstimos dos bancos aos quais estão ligadas, que se convertem assim em grandes accionistas. A economia alemã tem permanecido sob a hegemonia bancária, e no centro do sistema bancário está o Bundesbank. Neste regime integrado e oligopolista não há lugar para grandes divergências de orientação, até porque os principais gestores dos bancos e das firmas industriais se misturam nos mesmos conselhos de administração em ambos os sectores. Deste modo criou-se uma classe de gestores sólida e com um elevado grau de homogeneidade. E mesmo que a transnacionalização da economia tenha enfraquecido os elos que ligam as companhias industriais e os bancos num âmbito estritamente nacional, esta relação não se rompeu e continua hoje a ser na Alemanha o factor predominante. Não posso senão concluir que a primeiro-ministro alemã exprime a orientação económica defendida unanimemente pela elite capitalista do seu país.

Ora, desde há vários anos alguns economistas têm vindo a observar que o Estado de bem-estar social — cujos esboços a Alemanha foi a primeira a adoptar, sob o chanceler Bismarck — que tão importante foi para o crescimento da produtividade no país, passou a ser sentido como prejudicial pelos empresários, obrigados a actuar numa economia cada vez mais mundializada e que, por isso, sentem a concorrência de países onde aquele tipo de regime nunca existiu ou já foi desmantelado. Qualquer tentativa radical neste sentido, porém, depararia com a indignação dos trabalhadores alemães e com a hostilidade dos sindicatos, cuja burocracia participa nos conselhos supervisores das empresas, uma situação que explica que os patrões alemães percam muitíssimo menos dias de trabalho devido a greves do que os seus concorrentes noutros países altamente industrializados. Assim, se os empresários alemães quiserem desmantelar o Estado de bem-estar sem convulsões sociais deverão optar por formas indirectas.

Neste contexto, devemos reflectir que as medidas recessivas impostas na periferia meridional da zona euro terão como resultado rebaixar duravelmente os salários nestes países, cujos trabalhadores se tornarão, portanto, directos concorrentes da força de trabalho alemã, considerados os mesmos patamares de qualificação. Isto constituirá um factor de pressão sobre os trabalhadores alemães para levá-los a aceitar medidas salariais gravosas e uma redução das regalias até agora garantidas pelo Estado de bem-estar social. A Alemanha poderia, assim, aproximar-se do que tem sido o alvo da política social no capitalismo contemporâneo: desarticular os serviços públicos de interesse social decorrentes do aparelho de Estado, que abrangem a totalidade da força de trabalho, e substituí-los pela responsabilidade social de empresa, vocacionada sobretudo para a força de trabalho mais qualificada.

Se este raciocínio estiver correcto, não sucederá que a dose do medicamento mate o doente e que as medidas recessivas impostas por Angela Merkel provoquem uma tal catástrofe na periferia meridional que fique abalada toda a zona euro, e a Alemanha com ela? «A adesão à disciplina fiscal é uma condição necessária para o crescimento. Todavia, não é uma condição suficiente», disse o primeiro-ministro italiano, Mario Monti, numa conferência proferida na Bolsa de Londres em Janeiro deste ano. «Não basta a austeridade, mesmo para a disciplina fiscal, se a actividade económica não atingir uma razoável taxa de crescimento». E, para tornar as suas observações ainda mais incisivas, Mario Monti acrescentou que «baixar as taxas de juro não depende apenas do esforço da Itália mas também, e fundamentalmente, da capacidade da Europa para enfrentar a crise de uma maneira mais decidida» [1]. O recado ficou dado, mas é difícil que o primeiro-ministro de um país em dificuldades tenha um grande poder persuasivo, porque nestas questões a opinião dos credores vale bastante mais do que a dos devedores.

Ora, é elucidativo que seja o Fundo Monetário Internacional, FMI, a chamar a atenção para o facto de uma derrocada da periferia meridional poder levar a uma catástrofe generalizada. À força de se repetirem palavras de ordem e de as gritar na rua, corre-se o risco de raciocinar por lugares-comuns e de esquecer que os termos têm um sentido mutável. As iniciais FMI suscitam na extrema-esquerda o mesmo efeito que o martelinho do médico provoca no joelho do paciente. No entanto, não conseguiremos entender uma faceta importante da actual dinâmica do capitalismo se não nos dermos conta de que o FMI alterou substancialmente algumas das posições que o haviam caracterizado. Num artigo publicado neste site cheguei a mencionar a oração fúnebre que o FMI pronunciou perante o cadáver do neoliberalismo.

Escreveu The Economist que a actual directora do FMI, Christine Lagarde, parece inclinar-se para o lado oposto ao alemão. «As suas recomendações para o crescimento incluem facilitar a política monetária; tornar menos severa a supressão do défice em países, tal como a Alemanha, que gozam de um excedente e por isso podem permitir-se estimular a procura; e assegurar que os bancos continuem a proceder a empréstimos. Ela também tem exortado a zona euro a aumentar a capacidade do seu fundo de resgate, além de defender um sistema de âmbito europeu para dar apoio a bancos e mutualizar parte das dívidas soberanas» [2].

Relativamente às economias europeias em dificuldades, os especialistas do FMI têm defendido medidas bastante menos severas do que as propostas pelos especialistas seguidores da orientação do Bundesbank. Como disse Olivier Blanchard, o economista-chefe do Fundo, «diminuir a dívida é uma maratona, não um sprint» [3]. Neste sentido, é importante saber que, segundo um estudo recente de Carlo Cottarelli e Laura Jaramillo, dois economistas do FMI, uma política de austeridade fiscal que comprometa as perspectivas de crescimento a curto prazo pode ampliar o custo do serviço da dívida em vez de o reduzir, porque os mercados parecem preocupar-se mais com o curto do que com o longo prazo. E assim uma austeridade fiscal demasiado agressiva, com um impacto negativo no crescimento económico, em vez de diminuir a taxa dívida / PIB, poderia aumentá-la.

No entanto, o FMI está impedido de actuar como credor de última instância na zona euro porque não pode criar dinheiro e porque o seu mecanismo governativo pouco ágil o impede de tomar decisões rápidas em momentos de crise. No âmbito das classes dominantes, qualquer oposição efectiva à orientação alemã terá de vir do Banco Central Europeu.

Notas

[1] The Economist, 21 de Janeiro de 2012, págs. 27-28.
[2] Id., 28 de Janeiro de 2012, pág. 24.
[3] Id., ibid., pág. 58.

Esta série reúne os seguintes artigos
1) um historial de problemas
2) monetarismo e austeridade
3) ai, ai Portugal…

4 COMENTÁRIOS

  1. Caro João Bernardo
    Em outro artigo neste site, tratando da crise de 2008, você entendeu que se processava ali apenas uma crise no capiatalismo, e não do capitalismo. O Estado interviu, mas aparentemente um tanto modestamente, lembrando o primeiro New Deal. Entretanto, a massa de desempregados e de desocupados só faz aumentar, em especial na Europa, segundo o mais recente noticiário. Ainda há espaço para uma espécie de segundo New Deal, que provavelmente agora haveria de articular-se em escala mundial e não só européia ou estadounidense?
    Abraço,
    Paulo

  2. Caro Paulo,
    Se já há dois anos era perceptível que se tratava de uma crise no — e não do — capitalismo, isto tem sido confirmado desde então. Surgiram novos centros de desenvolvimento económico e novos imperialismos. Neste contexto, é precipitado afirmar que o desemprego tem aumentado. Mesmo no interior da União Europeia o desemprego tem-se agravado em alguns países, diminuído noutros. Muito mais importante me parece ser o novo perfil tomado pelo emprego, a expansão da precarização e da terceirização, que dilui a fronteira entre emprego e desemprego. Por outro lado, o desenvolvimento da transnacionalização do capital retira aos Estados nacionais o papel central que desempenharam na economia. Acerca desse assunto, remeto para um artigo que publiquei neste site: http://passapalavra.info/?p=39343 Ora, o New Deal e o keynesianismo pressupõem que o Estado desempenhe um papel central. A história não se repete, e à força de procurarmos uma reencarnação do passado perdemos as novidades do presente. O New Deal está nos Estados Unidos da década de 1930 e o keynesianismo está na Europa ocidental das décadas posteriores à segunda guerra mundial. Isso já passou. No próximo, e último, artigo desta série eu mostrarei como a política keynesiana de défices e de estímulo ao consumo foi incapaz de fazer a economia portuguesa sair do declínio económico em que o país entrou a partir de 2001. E no artigo anterior eu tentei definir algumas linhas de clivagem actuais na zona euro e o que me parecem ser as condições para a sua superação, todas elas passando por uma diminuição das soberanias nacionais. De qualquer modo, é curioso verificar que a esquerda se agarra hoje à memória do keynesianismo como uma tábua de salvação, quando o keynesianismo foi outrora uma tábua de salvação da direita.

  3. O keynesianismo não é sequer possível no actual contexto, até porque ele é a formulação de políticas económicas para o fordismo… Aliás, chega a ser risível certas forças (ditas de esquerda) que em Portugal acham possível girar a roda da história para trás e voltar a um capitalismo “confortável” e assente num “equilíbrio” entre patrões e trabalhadores, em nome de um desenvolvimento do país e na base de uma economia “mista”. Aliás, a própria noção de equilíbrio de forças no fordismo parte do pressuposto da inexistência de lutas operárias relevantes (por exemplo, as lutas de 68 e 69, dirigidas precisamente contra esse falso consenso entre as classes que tanta saudade traz a eurocomunistas, “leninistas” e social-democratas). A saudade não é uma característica portuguesa – como o nacionalismo quer fazer crer – mas é uma característica presente nas correntes políticas que propugnam por uma harmonia entre as classes. Desde a saudade fascista do período pré-moderno (onde tudo pretensamente viveria em comunhão e bonomia nos campos, por exemplo) até à saudade social-democrata/sovietizante do tempo do fordismo, do operário em fato-macaco e das usinas fumegantes. Certa esquerda já tinha substituído a Internacional pelos hinos nacionais. Agora parece querer somar-lhe o fado mais saudosista.

  4. Valente de Aguiar,
    Serás vidente? O que escreveste é um comentário ao próximo artigo desta série e, ao mesmo tempo, uma antecipação de alguns temas que lá tratarei. Então, rendez-vous nesse próximo artigo…

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