I

Acerca da resolução fundamentada que a vereadora Helena Roseta entregou no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa (o instrumento usado pela autarquia para ultrapassar a suspensão do despejo decretada pelo tribunal, mediante o qual, supostamente, se deixa inequívoco o “interesse público” da desocupação do n.º 94 de São Lázaro), e sem prejuízo de virmos a exercer o direito de o contestar em local próprio, temos a dizer o seguinte:

* Se de facto a CML é “dona e legítima proprietária” (ponto 1) do imóvel, por que razão, desde a saída dos últimos inquilinos em 2005 até ao presente, e mesmo após a breve ocupação em Novembro de 2010, não foi adoptada qualquer projecto ou simples medida que impedisse a deterioração do seu estado de conservação (ponto 8)? Para reduzir o agravamento das condições de preservação do imóvel bastaria apenas fechar algumas portadas e selar outros pontos de fuga, impedindo a infiltração das águas da chuva, a entrada de pombos e dos respectivos dejectos, entre outros. Tais medidas, de imediato e obviamente realizadas por todos nós, não implicariam quaisquer encargos adicionais para a autarquia e demonstram por conseguinte o profundo desprezo a que foi votado o imóvel pela sua “dona e legítima proprietária”;

* Ainda relativamente ao ponto 8, honra-nos bastante que os próprios documentos utilizados pela vereadora Helena Roseta para demonstrar o estado de preservação do imóvel não sejam aqueles que uma vistoria técnica competente prevista pelos programas de reabilitação da câmara facultariam, caso tivesse existido de facto uma vistoria; refira-se que o contexto de tais fotografias reporta-se precisamente ao momento de redacção de um relatório que desse conta dos problemas do imóvel passíveis de serem facilmente solucionados, sem recurso a financiamentos exorbitantes, o que aliás foi feito e constitui método;

* A campanha alegre aludida pelo ponto 10 (candidatura a espaços para actividades sociais ou culturais), prometendo paternalisticamente a possibilidade de surgir um espaço com essa tipologia, sugere a nossa ignorância da mesma, o que é falso; já conhecemos, já tentámos e já esperámos: demasiado;

* Os restantes pontos são uma enxurrada de incoerências lógicas temperadas com um discurso hipócrita e eleitoralista, recorrendo à figura das “famílias carenciadas” (pontos 14-16) como forma de justificar a actuação da vereadora enquanto paladina do interesse público; havendo velhacaria para tudo, recorre-se inclusive à função “social e habitacional” da câmara e do seu zelo em garantir o “direito à habitação” de tais famílias com “carências socioeconómicas”;

* Ora, pondo de parte a crónica ingerência e incúria da autarquia (visível em centenas de prédios de que a mesma é “dona e legítima proprietária”) em matéria de reabilitação urbana e do seu papel regulador do direito à habitação, pergunta-se: se de facto o imóvel em questão não está em condições de habitabilidade (ponto 19), porquê a celeridade em querer desocupá-lo, justificando tal acção para que o mesmo seja logo…habitado? Atente-se que a sua inclusão em programas de reabilitação urbana, como o PIPARU (ponto 22), não é, de todo, garante da sua atempada e imediata intervenção com vista a esse objectivo; pelo contrário;

* De facto, o programa PIPARU tem sido desde a aprovação do respectivo empréstimo pela AML (120 milhões de euros, dos quais apenas 25% se destinam à reabilitação de imóveis públicos para habitação) em Dezembro de 2009 marcado pelo desfasamento dos seus objectivos; está-se bastante longe das palavras do presidente António Costa quando este declara em Abril de 2009 que “Assim que a AML aprovar este modelo de financiamento o programa pode arrancar imediatamente”; mesmo depois da aprovação do empréstimo pelo Tribunal de Contas, a declaração da existência de planos para São Lázaro foi invocada para justificar o primeiro despejo em 2010, com os resultados que se conhecem. O que tem caracterizado o PIPARU são baixas taxas de execução (20%, 9,6 milhões de euros), a pouca agilidade dos gabinetes competentes na sua gestão e os atrasos na intervenção, mesmo em bairros prioritários e dados à gentrificação, como Alfama. Não nos surpreende por isso que o mesmo tenha sido, dois dias antes da publicação do despacho da vereadora, amplamente criticado por todos os quadrantes políticos em Assembleia Municipal, resultando na rejeição do orçamento em que o mesmo vinha ajustado;

* Estamos em Junho de 2012 e as intenções reais da câmara e da vereadora relativamente a São Lázaro 94 são o que parecem: uma mão cheia de nada e outra de coisa nenhuma. Se as suas intenções de “vistorias pormenorizadas” (ponto 23) obrigavam a que o prédio não contivesse vivalma (ponto 24), como convém e como é apanágio de inúmeros imóveis de que a câmara é proprietária, perguntamos se a solução de emparedamento do mesmo é preferível a que este permanecesse de portas abertas; torna-se demasiado flagrante a leviandade neste assunto da vereadora Helena Roseta;

* Concluindo, e relativamente aos pontos 25, 26 e 28, que assinalam o prejuízo que a ocupação, genericamente, constitui para o interesse público e para eficácia de execução dos programas de reabilitação dos vários imóveis devolutos, cabe-nos reiterar o seguinte: a experiência de São Lázaro 94 constituiu a prova inequívoca de que é possível a quaisquer habitantes de Lisboa recuperarem e transformarem em poucos dias e autonomamente um prédio abandonado num centro social e cultural alheio às lógicas financeiras e aos jogos político-partidários que desde sempre vêm tolhendo a gestão da CML; é falso que a iluminação do edifício fosse feita através de velas; existe má-fé na menção de uma infiltração pontual. O principal obstáculo ao cumprimento do direito à habitação é apenas e só a própria câmara, que entrega abusivamente os seus imóveis ao abandono e à especulação e pretende ser capaz de administrar e gerir uma gigantesca máquina burocrática sujeita aos buracos orçamentais do erário público, aos interesses que o cercam e que permanece distante das reais necessidades das pessoas;

II

Acerca dos acontecimentos decorridos no dia 31 de Maio, posteriormente ao despejo, cumpre-nos asseverar que:

* Rejeitaremos sempre encetar ou retomar negociações com quem actua recorrendo à força, a agentes infiltrados, ao abuso coercivo e à trapaça, usando a polícia para salvaguardar as suas intenções só para depois expiar mediaticamente o cometido através de promessas de diálogo; a postura da vereadora Helena Roseta foi torpe; as declarações do presidente António Costa sobre a mesma actuação policial são falaciosas e para inglês ver;

* A manifestação que teve lugar no mesmo dia a partir das 19h00 no Martim Moniz remete-nos uma outra vez para a natureza dos comentários feitos pela vereadora sobre a “rua” e a sua verdadeira noção de democracia: “Não sei o que iremos conseguir com estas formas de cidadania que estão a procurar inventar-se um pouco por todo o lado e também aqui, em Lisboa. O que sei é que a rua pode ser, e está a ser, o “espaço público” de que a democracia precisa para viver e crescer […] Não podemos deixar que este “espaço público” nos seja roubado. Saberemos defendê-lo com convicção e civismo. Na rua e nas redes sociais, saberemos demonstrar o que queremos e o que não queremos”

* O que se passou então nessa manifestação, conforme vários testemunhos, imagens e vídeos ilustram foi deveras grave; para lá dos rótulos de “violentos” com que um ou outro relatório e a comunicação social nos mimam, a verdade é que a Polícia de Segurança Pública deixou-se de quaisquer subterfúgios que ainda poderia encerrar e procedeu, à descarada, à perseguição ilegítima dos manifestantes em correria, estando todos os agentes revestidos a armaduras e capacetes, aptos sim a responder a acções armadas de guerrilha urbana, empunhando cassetetes, pistolas, caçadeiras e até um lança-granadas;

* Cerca de duzentas pessoas foram acossadas sob coacção física durante dezenas de metros pela Avenida Almirante Reis, como se de mero gado tresmalhado se tratassem, desde o Intendente até ao adro da Igreja dos Anjos; os manifestantes assistiram ainda à chegada absurda e ridícula de um grosso aparato policial que no fim era composto por cerca de 15 carrinhas do corpo de intervenção e respectivos soldados;

* Cerca de um quarto do grupo original foi sequestrado e impedido de sair para lá da área das escadarias da Igreja dos Anjos; o cerco, composto por elementos da mesma força policial, foi-se progressivamente encurtado durante cerca de hora e meia, actuando no sentido de submeter psicologicamente os manifestantes, tornando latente a ameaça de intervenção física, e não apresentando qualquer razão para o sucedido; posteriormente, todos os elementos deste mesmo grupo foram revistados e identificados de acordo com as recomendações de um tal relatório que referencia alguns de nós como violentos, sem que tivessem sido encontrados quaisquer objectos que pudessem sequer remotamente justificar o injustificável;

* Não pretendemos ocupar-nos mais do camaleão político que estará doravante e para sempre directamente implicada a esta nojenta e promissora actuação da PSP; tampouco lhe queremos sugerir que tenha uns poucos pingos de vergonha e que se demita; o que sucedeu no dia 31 de Maio após o despejo de São Lázaro extravasa em muito a sua inépcia em lidar com um movimento social que decidiu actuar para lá dos regulamentos que norteiam a deficiente gestão camarária de imóveis. Queremos afirmar que estamos aqui para durar até que da árvore do poder todos caiam de podre. Não nos vergamos, não nos ajoelhamos, não cedemos. Continuaremos a levantar prédios e vizinhanças enquanto prédios houver para o fazer.

A Assembleia de São Lázaro 94, 06/06/2012

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