Por Passa Palavra

Desfilou ontem, dia 29 de setembro, pelas ruas do centro da cidade de São Paulo o Cordão da Mentira. Nesta segunda vez, a poucos dias de se completar os 20 anos do massacre do Carandiru, o bloco carnavalesco veio a público para cantar temas pertinentes ao cotidiano das populações carcerárias e que habitam as periferias da cidade. Com o tema “Quando vai acabar o genocídio popular?”, o desfile abordou, através de diferentes linguagens, o aumento espantoso do número de homicídios praticados por agentes policiais neste ano. Também não ficaram de fora a perseguição aos moradores de rua e os incêndios misteriosos que, neste último ano de gestão do prefeito Gilberto Kassab, se multiplicaram pelas favelas paulistanas, com particular incidência em áreas de alta valorização imobiliária.

Desde às 11h, cerca de 200 pessoas já concentravam no Largo General Osório, em frente ao Memorial da Resistência e Escola de Música Pato N’água [1], ponto onde se encerrou o primeiro desfile, que tematizou a questão dos mortos e desaparecidos da ditadura civil-militar, e de onde partiria esta segunda edição, marcando simbolicamente o fio de continuidade entre o período anterior e o democrático. Por volta das 12h30 foi dado início ao sarau de abertura, em que poetas, rimadores, militantes de movimentos sociais, e quem mais se dispusesse, tiveram a oportunidade de expressar em versos o dia a dia de quem enfrenta o recrudescimento das ações policiais, seja como atuante de uma organização popular ou como simples trabalhador morador dos bairros pobres da cidade.

Às 13h30 o bloco já carnavalizava pelas ruas da Luz, região do centro de São Paulo que está sendo palco de uma das maiores operações urbanas (o projeto Nova Luz), que tende a varrer para longe qualquer resquício de pobreza ou forma de resistência popular, como é o caso da ocupação do prédio da rua Mauá, em cuja frente foi feita uma intervenção cênica e uma homenagem aos moradores.

E aqui cabe uma reflexão. Como parte de sua proposta, a segunda edição do Cordão da Mentira fez uso de diferentes linguagens para responder esteticamente à violência de Estado. As composições das músicas (que podem ser ouvidas e baixadas aqui) mantiveram a qualidade do primeiro desfile, algumas delas introduzindo e combinando muito bem elementos da batida do funk e do rap. Porém, embora o batuque tenha sido firmemente levado pelos músicos em cima do carro de som, a vivacidade do bloco ao percorrer as ruas talvez tenha perdido um pouco com a ausência da bateria de escola de samba, que marcou presença na primeira edição. Também diferente do desfile anterior, as intervenções teatrais foram realizadas ao nível da rua, e não em cima do carro de som. Formalmente, isso tenderia a promover uma maior horizontalidade entre os artistas e o público, tanto os que acompanham o bloco quanto os passantes – o que, a princípio, se adequa à proposta do Cordão, que é a de ensaiar novas maneiras de tratar assuntos populares e comunicar-se eficientemente com estes populares. No entanto, a não ser que a apresentação já seja pensada para ser veiculada pelos meios virtuais, a mudança de procedimento em algumas das paradas parece ter obtido um resultado inverso. Estando ao nível do solo e cercadas por um anel de cinegrafistas e fotógrafos (do Passa Palavra incluído), as intervenções eram quase impossíveis de serem vistas pelos próprios seguidores do bloco, quanto mais pelo transeunte comum que estivesse de passagem pelo local. Sobrou para os velhos panfletinhos de sempre e a disposição de algumas militantes cumprirem esta função de diálogo e corpo a corpo com a população.

Os estandartes coloridos seguiram pelas adjacências da rua Santa Efigênia e, depois, Líbero Badaró, parando em frente às sedes dos órgãos públicos e da sociedade civil que representam a ação orquestrada de controle e repressão sobre a pobreza: a Guarda Civil Metropolitana, a Secretaria de Administração Penitenciária, o Viva o Centro e a própria Prefeitura. Mais a frente, já nas imediações do Largo do São Francisco, o ponto de parada foi a frente do prédio da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo; momento um pouco mais tenso que os demais, já que muitos policias ostentavam armamentos pesados e cochichavam entre si com olhares irônicos sobre os foliões-manifestantes.


Depois de fazer mais uma intervenção na Agência Funerária Central e no Tribunal de Justiça de São Paulo, já por volta das 15h30, o Cordão concluía o seu trajeto na praça da Sé, onde samba, funk, rap e algumas falas emocionadas encerraram o desfile e reforçavam o seu lema de que as ruas são para lutar.

Nota:
[1] Pato N’água era mestre de bateria e um dos fundadores da escola de samba Vai-Vai. Foi morto em 1969 em episódio que é tido como a primeira execução do Esquadrão da Morte de São Paulo. No primeiro desfile do Cordão, a Escola de Música Tom Jobim, um marco do processo de higienização que acontece na região da Luz, foi simbolicamente rebatizada em homenagem ao sambista.

2 COMENTÁRIOS

  1. Este desfile, por ter tido como bandeira principal a luta contra o terror aplicado aos pobres, não contou com a participação de muitos que só querem lutar contra a repressão quando as vítimas são da classe média.

    Enfim, quando matam jornalistas, publicitários, professores universitários, escritores e outros querem o apoio da população. Quando são os pobres as vítimas, fazem de conta que não existiu.

  2. companheira débora, o que te leva pensar em quem nao estava e sim nos que estavam? se for pra fazer um balance é legal, senao quem se desgasta é vc mesma. Enfim, acho mais interessante a luta por gente ´´desconhecida´´, anonima e pobre, porque já sabemos a classe social de quem é ´´conhecida´´. pouco a pouco, nao se desespera nao. aqui uma noticia que saiu hoje:
    http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1162349-rapper-emicida-protesta-contra-personagem-do-zorra-total.shtml
    enfim, já é um grande comeco que as maes de maio existam, axé pra elas e pra vcs que foram ao desfile!

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