Nada provoca tanta revolta no seio da burguesia como a revolta no seio dos trabalhadores. Por Ricardo Noronha

No passado dia 29 de Novembro, os estivadores de Lisboa, Setúbal, Figueira da Foz e Aveiro, secundados por delegações provenientes de vários portos europeus (Chipre, Espanha, França, Bélgica, Dinamarca, Suécia e Finlândia) manifestaram-se nas ruas da capital portuguesa, deslocando-se da Praça do Município até à Assembleia da República, onde se votava o novo regulamento de trabalho portuário. A manifestação foi, como tem sido hábito, combativa e ruidosa, assinalada pelo lançamento de petardos e pela imagem de coesão e organização dos trabalhadores portuários, vestidos com os seus uniformes de trabalho e com os coletes fluorescentes onde se pode ler «Don’t fuck my job» [Não foda meu trabalho]. Adicionalmente – e para contrariar a gigantesca campanha de difamação e calúnia de que têm sido alvo por parte do governo, dos principais gestores e empresários portugueses, bem como por inúmeros comentadores televisivos e cronistas de imprensa – distribuíram aos transeuntes panfletos, com informações sobre o conteúdo e objectivos da sua luta, fazendo questão de oferecer uma flor a todas as mulheres por quem passavam.

Quase não se viram polícias ao longo do percurso, resumidos a uma carrinha e meia-dúzia de agentes colocados na cauda da manifestação, a uma distância cautelosa. De resto, não se verificou qualquer incidente e o serviço de ordem organizado pelo sindicato limitou-se a delimitar o perímetro onde seguiam os estivadores propriamente ditos (cerca de três centenas) dos manifestantes que se juntaram em seu apoio ou solidariedade (um pouco menos numerosos), informando e explicando as razões das suas opções (nomeadamente o receio de uma infiltração policial) sempre que necessário. Entre as delegações estrangeiras sobressaía, pelo seu número, a que veio do Estado espanhol.

Chegados ao parlamento, os estivadores encontraram uma concentração de protesto da Associação de Empresas de Diversão (feirantes), que incluía uma caravela de piratas a fazer de baloiço [balanço], pipocas, matraquilhos [totó, pebolim] e uma potente instalação sonora. Apesar do contingente policial ali presente – numeroso e de má memória –, do rebentamento de numerosos petardos e de diversos manifestantes terem a cara tapada com lenços e passa-montanhas, o ambiente esteve sempre tranquilo. Após um curto discurso do presidente do Sindicato, Vítor Dias, seguido da leitura de mensagens de apoio e solidariedade vindas de diversos portos europeus e sul-americanos, uma delegação entrou no edifício para reunir com a Presidente da Assembleia da República. Cá fora o entusiasmo não esmoreceu e, ao fim de uma hora, o convívio entre trabalhadores portuários de toda a Europa culminou num comboio aos círculos ao som de Quim Barreiros, enquanto estivadores suecos defrontavam os seus congéneres cipriotas na mesa de matraquilhos e estivadores belgas e dinamarqueses procediam a uma degustação de cerveja portuguesa, contrariando cabalmente aqueles que dizem que a greve nos portos afecta o escoamento da produção nacional.

Definitivamente, a luta no sector portuário assemelha-se pouco aos protestos que costumam ser organizados pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), cujos poucos representantes presentes permaneceram extremamente discretos. Não se encontra aqui nenhum dos processos ritualizados a que nos tem habituado o movimento sindical: o discurso ao microfone foi curto, conciso e limitado ao essencial, a iniciativa nunca passou dos representados para os representantes, a dimensão internacional do conflito foi diversas vezes sublinhada, a ênfase no combate à precariedade e na solidariedade entre trabalhadores foi notória e, finalmente, os outros movimentos sociais e indivíduos que acorreram para se solidarizarem foram recebidos com simpatia, mesmo se os acontecimentos recentes motivaram cautelas adicionais. Está em jogo, como é sabido, uma ofensiva que tem como objectivo assegurar o poder patronal nos portos, de forma a generalizar a precariedade e a promover a desqualificação numa profissão submetida a condições de trabalho particularmente duras e perigosas. Os estivadores são um colectivo de trabalhadores em luta que é também uma comunidade, desde logo porque a natureza mesma do seu trabalho torna a confiança mútua um elemento essencial à segurança de cada um. Quem já tiver visto um andaime a cair ou um túnel a abater-se sobre um operário da construção civil compreenderá facilmente a importância que pode ter a confiança absoluta no colega do lado, em sectores onde todos os instrumentos de produção são potencialmente perigosos.

Tornou-se entretanto um imperativo político quebrar a espinha a trabalhadores que desempenham um papel estratégico no actual momento da luta de classes em Portugal, marcando presença em todas as manifestações contra a austeridade e desencorajando, pela sua coesão e determinação, a repressão policial que o governo decidiu empregar no sentido de esvaziar as ruas de contestação. Acresce ao caso a facilidade com que os sectores empresariais afectados e ameaçados por esta greve – porque dependentes do trabalho portuário para exportar as suas mercadorias – têm conseguido obter o máximo eco na imprensa, onde carpem constantemente as suas mágoas pelos prejuízos provocados à «economia nacional» (ou seja, a eles próprios). A saber, o que parece provocar mais escândalo é o facto de um trabalho desta natureza, feito ao ar livre por operários vestidos de fato-macaco [macacão], proporcionar aos seus profissionais uma remuneração que não se limita a assegurar uma existência remediada. E temos assim os mesmos (sempre os mesmos) que não se cansam de repetir que a gigantesca desigualdade de remunerações no interior das empresas portuguesas – que permitem a um administrador ganhar 260 vezes mais do que a média salarial dos trabalhadores que administra – é um facto normal e que decorre do funcionamento da economia de mercado (mesmo no caso de empresas em situações monopolistas de facto, como é o caso da EDP ou da Portugal Telecom), a clamar agora contra os privilégios injustos de quem maneja as cargas e descargas nos portos.

Basta pensar nos 400 milhões de euros de prejuízos alegadamente provocados pelas paralisações dos estivadores, segundo o Secretário de Estado dos Transportes, para ter uma ideia da produtividade do seu trabalho e do seu peso na economia portuguesa. Se uma greve efectuada meramente às horas extraordinárias envolve valores dessa ordem, então como poderiam ser incomportáveis os níveis salariais actualmente praticados no sector? Semelhante pergunta parece não interessar à generalidade das reportagens que se ocupa do assunto, talvez porque o grande desígnio nacional de empobrecimento generalizado e de contracção salarial ocupou há muito o lugar que outrora se encontrava reservado ao jornalismo, que tinha, entre outras, a incumbência de fazer perguntas incómodas para as pessoas que não costumam ser incomodadas. Neste sítio e nesta hora, em que governo e patronato falam do povo como um rebanho inquieto mas apesar de tudo obediente, em que os trabalhadores são apresentados como vítimas pelos seus próprios representantes sindicais e os desempregados como um conjunto de pessoas cheias de azar, o facto de haver um sector operário que responde a tudo isso com um sorriso que ameaça tornar-se feroz escandaliza todos os escribas do partido da ordem. Nada provoca tanta revolta no seio da burguesia como a revolta no seio dos trabalhadores e por isso mesmo as notícias sobre este conflito se tornaram um chorrilho de calúnias e falsidades sem fim à vista. Para carregar um navio é necessário ter as costas direitas e um pulso firme. É isso, e apenas isso, que não se perdoa aos homens da estiva e à sua internacional.

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