Por Passa Palavra

 

Parece-nos que uma greve no seio de uma revista de esquerda toca numa questão central: trabalho e militância. Por um lado, há entre os membros da redação militantes que participam de movimentos sociais e desejam, como afirma Júlio Delmanto aqui, “trabalhar em locais que me propiciassem se não exercer minhas convicções de outro mundo melhor, possível e urgente, ao menos não ofendê-las”.

Nada mais justo. Afinal, quem é que quer conviver com a contradição de realizar ações políticas numa mão e ser obrigado a escrever artigos contrários com a outra?

Por sua vez, a Caros Amigos – e outras empresas ou “coletivos” – precisa manter entre seus jornalistas indivíduos com pelo menos um dos pés na esquerda, já que seu mercado consumidor não é o mesmo que o da revista Veja. E, como isso não se faz com “imitações”, necessitam de militantes e sujeitos com história de luta.

Aparentemente, ao menos no plano ideológico, a conta fecha entre as duas partes, entre trabalhadores e empresa. Desta maneira, para alguns soa perfeitamente normal o que Pablo Capilé, gestor-presidente da empresa Fora do Eixo, afirma ao dizer que “pra quem transformou o trabalho em VIDA não existe feriado!” (veja aqui). Assim pode passar-se por cima dos direitos trabalhistas e dos salários – e até, sejamos ousados, abolir o regime salarial e as férias! -, pois somos e fazemos “militância+colaborativa+trabalho”; “#tudojuntoemisturado”.

Nessa equação, a contradição entre trabalho e militância, então, parece ter sido finalmente resolvida.

Mas esses mesmos jornalistas dependem de condições materiais para sobreviver e nem só de fé e ideologia vive a mulher e o homem. Uma hora, a ficha cai. Geralmente ao fechar o quarto ou quinto mês e olhar para o extrato da conta bancária. Enquanto isso, durante as horas extras não pagas, pela rádio peão vão chegando as informações: contrato assinado aqui, viagem para seminário internacional, carteira não assinada, acordo de publicidade do governo…

O que a greve dos jornalistas da Caros Amigos exprime é que uma hora o melhor dos discursos de esquerda se choca com a realidade material dos trabalhadores. E aí fecha o tempo, ou melhor, reaparecem as hierarquias sociais iguaizinhas às de toda empresa capitalista: todo mundo na rua por “quebra de confiança”.

A greve na revista Caros Amigos deixa a questão no ar: quanto tempo leva para a engrenagem sair do eixo? Mais uma vez sabemos que uma hora ela sai. Há de sair.

E esses muitos outros trabalhadores em empresas com patrões de esquerda, que há por aí, não têm nada a dizer? Não querem aproveitar este espaço para dizer alguma coisa?

15 COMENTÁRIOS

  1. O terceiro setor é mestre nestas coisas. Todo mundo diz que gente é “patrão” e “empregado” ao mesmo tempo, mas na verdade somos trabalhadores terceirizados, trabalhando para o Estado (brasileiro ou outro) ou para grandes empresas (e suas estratégias de marketing social). E entre os trabalhadores que estão “na ponta”, atuando direto com um público, e nossos patrões, fica uma moquequinha de gente inflando os egos e se achando poderosa, quando é tão descartável quanto qualquer outro. Sem contar que “trabalho militante” não remunerado, seja por voluntariado seja por horas extras, é o que mais tem.

  2. Quando Makhaisky, na passagem do século XIX para o século XX, formulou a sua teoria dos gestores enquanto classe específica, a quem ele chamava intelligentsia, considerando o marxismo como uma teoria produzida para defender e ao mesmo tempo ocultar os interesses dessa classe, ele tomou como base empírica a burocracia social-democrata que admininistrava cooperativas onde todos eram supostamente iguais. Os seus escritos foram muito lidos entre os deportados russos na Sibéria, mas só tiveram repercussões práticas mais tarde, demasiado tarde. Será que hoje as pessoas abrirão os olhos a tempo? Quantas caros amigos existem por esse mundo? Quantos anos e séculos durará o regime do faz de conta?

  3. Interessante artigo. Fiquei um pouco frustrada só pelo tom do “te avisei” (recriminando a galera, meio moral a coisa). Existem pessoas que realmente desejam trabalhar e militar no mesmo lugar, coisa que nao é o meu caso, mas já sabemos dos problemas e conflitos que geram essa situacao, mas existem pessoas bastante críticas (como é o caso da greve que fizeram na Caros Amigos). Entao, sinceramente a postura desse artigo ao invés de fazer refletir, acho que afasta essas pessoas, nao é um convite a pensar e sim a pensar-do-jeito-que-vcs-pensam.

  4. Importante a pauta, e de acordo com Aline. Pra um veículo que se diz anticapitalista, essa visão que o Passa Palavra traz sobre a greve na Caros Amigos soa um pouco contraditória. É legítimo que o trabalhador reivindique melhores condições de trabalho e todos os demais direitos garantidos por lutas que sabemos que foram árduas. E também acredito que é legítimo criar mecanismos de autossustentabilidade para aqueles que querem se dedicar integralmente à militância e sabem que grandes corporações no mundo inteiro orientam-se para ocupar o tempo de trabalho, lazer e descanso do trabalhador.

    Agora reclamar de trabalho militante não-remunerado, é brincadeira, né?

  5. Por que é brincadeira, Domenic? Não entendi. Pelo que entendo a “reclamação” não é dirigida à possibilidade de se trabalhar de forma militante quando se optar por isso, mas sim de que existam pessoas e empresas se aproveitando disso para benefício próprio, para enriquecimento e lucro.

    Reforço a provocação final: “E esses muitos outros trabalhadores em empresas com patrões de esquerda, que há por aí, não têm nada a dizer? Não querem aproveitar este espaço para dizer alguma coisa?”

  6. Eu sei que a linha editorial do PP adota muitas vezes um tom confronto, provocativo e por vezes agressivo. Mas não entendi o ponto da Alice. Até reli o texto para ver se enchergava algo que tinha passado desapercebido, mas não achei. Não vi nada de “te avisei”, não se está denunciando nenhum “trabalhador iludido”, mas sim justamente as estruturas que permitem que alguém chegue a se maravilhar com a idéia de transformar a vida em trabalho.

    Eu pessoalmente não trabalho em uma organização “de esquerda”, mas trabalho numa pequena empresa familiar de internet e com gente muito jovem (os donos são um casal de 34 anos). A verdade é que nossos direitos são muito bem respeitados, mas acho que o ponto interessante é ver como a internet acaba forçosamente misturando a vida “social” com a vida de trabalhador. Ao usar a internet como instrumento exclusivo de trabalho, o que ocorre é que o patrão, ao tempo que deixa com que os trabalhadores usufruam de coisas como Facebook e celulares durante o expediente, acaba tendo mais facilidade para exigir deles que também cumpram pequenas funções fora do expediente. A vida dentro do horário de trabalho e fora dele vão ficando cada vez mais parecidos. É uma versão menor e mais simples da idéia da máquina de chopp no trabalho. Um metalúrgico diminui o ritmo quando fica cansado, mas não pode trabalhar no sofá de sua casa. Já alguém que cumpre uma função cognitiva no trabalho também diminui o ritmo quando o trabalho é intenso no escritório, o que o patrão percebe é que vale mais a pena deixá-lo descansar um pouco no trabalho, olhando qualquer besteira na internet (talvez até aprenda algo útil), e exigindo dele este tempo de trabalho fora do escritório.

  7. o problema de provocacoes é que muitas vezes impossibilitam qualquer diálogo. o problema de tom desse artigo é pra mim justamente esse, tipo assim “vcs querem jogar na cara deles”. e a ironia é que quando pessoas autonomas/libertarias/anarkistas/ vao em espacos das “esquerdas” é justamente esse tom que recebem como resposta. assim que é bastante fácil observar essa reproducao aqui.

  8. Curiosidade: tenho recebido, hoje mesmo (como imagino, vcs também), vários emails da Caros Amigos, como este: “Caros Amigos está nas bancas!” http://tr.delivery.whservidor.com/index.dma/DmaPreview?19089,85,2620,e211c10838771153d81ad3dce01cd612, e este: “Confira as notícias mais lidas nesta semana no site Caros Amigos” http://tr.delivery.whservidor.com/index.dma/DmaPreview?19089,87,2620,4e9a1888707f4e16e25d254e2e7d3cf6.

    Ah: no final o link “Apoie a mídia independente. Assine Caros Amigos”…, que remete ao http://lojacarosamigos.com.br/, “Conteúdos Para Todas Às Esquerdas”…

    Ou seja, furaram a greve, “contrataram” quem?

  9. Uma coisa que fiquei pensando a partir do outro texto do Delmanto foi sobre os patrões de esquerda que ele cita: Wagner Nabuco, da revista, e Ivana Jinkings, da editora. Eles são muito fracos intelectualmente, em matéria de conhecimento teórico sobre a esquerda e sobre a realidade, cinco minutos de conversa com cada um já da pra perceber que não lêem um livro do início ao fim há décadas. Isso não é interessante? Como conseguem enganar tanta gente há tanto tempo? Será que eles têm uma outra forma de inteligência, tipo uma inteligência gestora-malandra-punguista? Será que é o mesmo tipo de inteligência de um Capilé ou de um Youssef, outros dois que confesso sempre ter achado uns panacas mas que são muito bem sucedidos?

  10. Recentemente trabalhei numa instituição em que o patrão – ao inves de adotar esquerda e direita – se autodefinia como hacker. Do discurso da riqueza das redes, da ética pirata e de hakim bey, ele também autodefinia o seu próprio salário. Nessa onda de “colaboradores” e “confiança”, a única coisa que colocava terror eram as palavras “prestação de contas” e “auditoria” em relação aos convênios com o poder público.

    Organizar por qualquer melhoria de condições de trabalho era bastante difícil, pois ninguém possuia vinculo trabalhista direto, ou seja, tinha que comprar nota de prestaçao de serviço (algo pralá de comum no terceiro setor) e isso nos deixava sem direitos trabalhistas, como a possibilidade de se fazer uma greve e nao ser mandado para o olho da rua. Sim, entrar na justiça do trabalho nos daria ganho de causa, mas e as ameaças reais de nunca mais ser contratado por nenhuma das empresas/ongs da area?

  11. Encontrei na minha caixa de mensagens uma publicidade da revista Caros Amigos, que prossegue imperturbável depois de ter demitido a anterior equipa de jornalistas. E que agora anuncia para o seu número de Maio, nº 194, a colaboração, entre outros, de José Arbex Jr., Frei Betto e João Pedro Stédile. Aquece o coração ver estas manifestações de solidariedade empresarial. Patrões de esquerda unidos, jamais serão vencidos?

  12. Amanhece. Dois cinéfilos, saudavelmente ‘in vino veritas’, tentam lembrar o nome do filme de Godard – seria Made in U.S.A. ou A Chinesa [?] … – em que um personagem afirma: “Esquerda e direita, eis uma equação ultrapassada”.
    Nenhum dos dois lembrou, mas um deles sugeriu que a fórmula revolução x contrarrevolução mantém sua inoxidável eficácia.

  13. “Nesta segunda-feira, dia 12 de janeiro, a categoria dos jornalistas conseguiu uma importante vitória na defesa dos direitos dos trabalhadores, da verdade e da dignidade da profissão. Trata-se do julgamento do primeiro processo movido por ex-jornalistas da revista Caros Amigos após a violenta demissão ocorrida em 11 de março de 2013, quando toda a equipe foi sumariamente colocada na rua por reivindicar o cumprimento da legislação trabalhista e protestar contra a ameaça de cortes (redução de postos de trabalho) na Redação.”

    http://sitiocoletivo.blogspot.com/2015/01/vitoria-dos-jornalistas-contra.html

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