Com a faixa de frente “Lutar não é crime, libertem nossos presos”, em referência à repressão e aos presos políticos feitos pela polícia militar no mês passado, por onde passavam recebiam aplausos e adesões. Por Daniel Caribé

O 2 de Julho é uma data cívica: dia no qual os baianos comemoram a sua independência. Isto porque no ano de 1823 as tropas populares expulsaram as dos colonizadores e assim puderam se juntar ao resto do país, que já se considerava independente há quase um ano. Mas, além disto, já que a independência só tirou das mãos de uns para deixar nas de outros, é o dia também que os baianos escolheram para vaiar os seus governantes. Prefeito, governador e qualquer outra autoridade, ou desejoso de ser uma, “caem no plantão”, só para ficar numa gíria local. Sai ano e entra ano, e esta é uma das tradições que mais se fortalece.

Portanto, o 2 de Julho é mais do que um dia de comemorações. É o dia da insubordinação. A cada ano há um movimento aguardado por todos (ou quase), no desfile que sai da Lapinha bem cedo e dá uma pausa no Terreiro de Jesus por volta do meio-dia, para horas depois continuar até o Campo Grande com os poucos que não ficaram entre os botecos e as rodas de samba. Primeiro passa o governador, que este ano até banho levou. Depois vem o prefeito. E ao lado deles tudo que é tipo assessores, bajuladores e os seus partidários. Ah, sim, um pouco antes parte o Caboclo, que diz a história representar os heróis da Independência. Tudo bem, um ou outro popular até ensaia aplausos, mas a diversão – ou será vingança? – é mesmo outra.

Nos últimos anos têm sido dos professores das escolas estaduais a ala mais festejada. Geralmente vestidos de preto e contando ainda com grande credibilidade entre os trabalhadores mais precarizados, desfilam pelas ruas entre confetes, ainda mais depois da longa e recente greve. Aplaudir os professores vale o mesmo que vaiar os governantes, e quem faz uma coisa não deixa de fazer a outra. O inverso também vale. E alguns entendem que para ter qualquer tipo de legitimidade social deve se juntar a eles, mesmo sem autorização, por isto geralmente logo após vêm os partidos de esquerda que não estão no governo. A Marcha das Vadias é outro movimento que vem chamando a atenção e conseguindo passar o seu recado nos últimos anos.

Sim, as bandeiras são permitidas. E não só de todos os partidos, entre eles os da direita, como também as dos sindicatos, que jogam peso neste dia mesmo que tenham mais carregadores de placas e faixas pagos pela contribuição sindical do que filiados. As igrejas evangélicas, aos poucos e ainda timidamente, também se apresentam e se juntam às outras manifestações religiosas que de longas datas já passam por ali. Ainda há as associações de bairros, os grupos de capoeira, o Movimento Negro, os demais movimentos sociais, as fanfarras, os grupos de amigos, etc. É difícil explicar o que é o 02 de Julho, como devem ter percebido.

Este ano, entretanto, houve uma queridinha. A Frente da Tarifa Zero, formada por parte dos coletivos e pessoas que constroem o que passou a ser chamado “MPL Salvador”, representou no imaginário popular as lutas que tomaram as ruas do país no mês passado. Com a faixa de frente “Lutar não é crime, libertem nossos presos”, em referência à repressão e aos presos políticos feitos pela Polícia Militar no mês passado, por onde passava recebia aplausos e adesões. Outros coletivos e partidos preferiram desfilar em separado, mesmo apoiando o movimento.

Além do passe livre, da denúncia da repressão e muitas críticas à Copa, a “Ala do MPL Salvador” fez cumprir a tradição e não liberou nenhum governante: “prefeito, governador, cadê a porra do dinheiro do metrô?” e “quem não pula é governista”, foram palavras de ordem que ajudaram a espantar os oportunistas, ganharam simpatizantes e inflacionaram o bloco, mas a música que faria sucesso no verão, se ele não estivesse tão longe, seria a “a tarifa vai cair, vai cair, vai cair”, que faz alusão em sua letra ao fato de Salvador, diferente de outras capitais, não ter o preço das passagens reduzido. Teve até uma estranha bateria, fazendo muita zuada, que apareceu “do nada” e não queria mais desgrudar. Depois de alguma confusão, a ala seguiu, mesmo com a tentativa dos tambores de abafar os gritos. No final a bagunça já era tanta que até um instituto ligado à Polícia Militar veio para frente da faixa “Tarifa Zero Já” tirar fotos junto com outros turistas. Vai entender… Aliás, se teve outra novidade este ano foi a grande quantidade de policiais nas ruas.

Piadas à parte, é importante lembrar duas coisas aqui. A primeira é que hoje foi o sétimo ato em Salvador e não obtivemos ainda nenhuma vitória. Não foi nem de perto o mais cheio, e poucos daqueles que ficaram conhecidos como “coxinhas” se juntaram. Portanto, apesar da data cívica, foram raras as manifestações nacionalistas. De qualquer forma, o combate à corrupção está definitivamente enraizado naqueles que estão dispostos a tomar as ruas e vai ser difícil reverter esta situação. Há também um certo consenso entre as esquerdas em torno da pauta central, que não foge da mobilidade urbana, mas cada dia fica mais claro que um setor está preocupado mais em defender os governos do que em desestabilizá-los. E, em Salvador, que pouco correu o risco de uma revolta conservadora, agora há nítidas dificuldades em radicalizar a luta.

A segunda é que ainda há um preso político. Mesmo com esforços do Coletivo de Advogados e Advogadas Populares, que se formou durante a luta, e de o movimento ter conseguido arrecadar o dinheiro da fiança que beira sete mil reais, todo tipo de dificuldade para que a efetiva liberdade do preso político seja posta em prática é criada pelo poder judiciário, Ministério Público e polícia. A situação é ainda mais crítica porque os grupos que atuam dentro da institucionalidade não dedicam esforços a resolver esta questão. A exceção é o único vereador do PSOL na cidade, mas todos os outros partidos e sindicatos, mesmo nos atos puxados por eles e com a estrutura e dinheiro que os sustentam, fingem que o problema dos presos políticos não é de responsabilidade deles também.

Amanhã (dia 3 de julho) terá um novo ato, marcado para acontecer dentro da audiência pública convocada pela Câmara de Vereadores. Lá será debatido o tema da transporte público. Outros atos e atividades já estão sendo construídos.

 

6 COMENTÁRIOS

  1. Há tempos me impressiono com o caráter insurgente do proletariado soteropolitano. Praticamente todos os dias há manifestações em Salvador. Hoje, por exemplo, vendedores ambulantes que atuam próximos a um pedágio, interromperam a passagem; trabalhadores (terceirizados) que atuam nos serviços de limpeza de escolas estaduais e da universidade (estadual) UNEB fecham o acesso às unidades desde quarta-feira. Anteontem, estudantes de algumas escolas pararam o trânsito em protesto contra o protesto que fechou as escolas. E por aí vai – sem deixar de citar as muitas manifestações ligadas ao tema da moradia, dos transportes, e dos serviços.

    Os gregos têm essa imagem insurgente, mas os baianos não.

    Alguém conhece bibliografia sobre essa cultura de lutas, que extrapola em muito a força das organizações da esquerda?

  2. Otimismo da vontade e pessimismo da razão: sublevação e catarse. Tudo ao mesmo tempo: ágora agora.

  3. ulisses,
    Por “insurgente”, quero dizer que os proletarizados em Salvador parecem recorrer, mais que os de outras cidades, à prática da revolta, do protesto.
    Mas retenho aqui a diferença, discutida pelo João Bernardo no PassaPalavra, entre revolta e revolução. Por isso o otimismo não é, digamos, absoluto. Nesse sentido, inclusive, não deixei de citar um protesto estudantil contra um protesto trabalhista.
    Uma cultura política (?) insurgente pode ser a matéria prima de uma cultura política revolucionária, entendo dessa forma, mas não diria que o protesto está a meio-caminho da revolução, não digo.
    Então falta ágora como falta agora. Mas há qualquer coisa aí que merece muita atenção.

  4. Rodrigo, este assunto, entre outros, são a demonstração cabal da distância entre academia e lutas sociais radicais, de um lado, e entre a militância envolvida nestas lutas e a reflexão teórica mais densa (ainda que não-acadêmica), de outro. A bibliografia que você quer não existe. Talvez seja você um dos primeiros a criá-la, se se dedicar a isto.

  5. Não poderia haver melhor resposta.
    Não poderia haver pior constatação.

  6. “Então falta ágora como falta agora.”
    Houve um funcionário-censor que adiou o ‘sine die’.
    A novidade é que o ‘agora’ está em falta.
    Menos mal: sobrou o ‘aqui’.
    ÁGORA AXÉ!
    Hic & Nunc!

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