Por Carla Fibla e Passa Palavra

Embora pouco se ouça falar disso, a situação interna do Iraque está hoje muito diferente do que era há uns anos atrás, quando os três temas noticiosos recorrentes da ocupação eram a guerra civil sectária instigada pelos ocupantes (com as suas bombas e as suas milícias), a resistência nacionalista iraquiana aos ocupantes e os terríveis sofrimentos humanos impostos ao povo iraquiano, com mais de um milhão de mortos e 6 milhões de deslocados e refugiados e grandes regiões inteiras contaminadas com a radioactividade do urânio empobrecido usado pelos EUA.

Foi a fase em que se concretizou a conhecida ameaça que James Baker, secretário de Estado dos EUA, fez a Tareq Aziz, ministro dos Negócios Estrangeiros do Iraque – então o país mais desenvolvido de todo o Médio-Oriente e do mundo árabe, com notáveis serviços de educação e de saúde, infrastruturas e nível médio de vida da população. Essa ameaça – uma óbvia referência ao Plano Morgenthau, idealizado pelo secretário do Tesouro dos Estados Unidos no final da segunda guerra mundial, que consistia em desindustrializar completamente a Alemanha, que reduziria a sua economia à simples agricultura e pastorícia – foi feita no fim de um encontro em Genebra: “Nós vamos fazer o Iraque voltar à Idade da Pedra”.

A evolução dos acontecimentos no Iraque constituiu a maior derrota geopolítica dos Estados Unidos desde há muitas décadas. Os Estados Unidos derrubaram o regime anti-iraniano de Sadam Hussein e no final acabaram por ter um regime pró-iraniano instalado em Bagdad. Ainda recentemente, o secretário de Estado John Kerry foi a Bagdad para tentar convencer o governo iraquiano a impedir o trânsito de armas iranianas para o regime de al-Assad, o presidente sírio, e tudo o que obteve foi um rotundo não. Ou seja, a administração Bush destruiu o regime de Sadam Hussein, que havia estado ao serviço do capitalismo norte-americano na guerra contra o Irão, para no final o Irão obter a hegemonia sobre o Iraque. Aliás, a inclusão do Iraque na área de poder persa tem tradições históricas no mundo islâmico.

Desde 2010, mas com um recrudescimento notável nos últimos seis meses, espalhou-se pelo Iraque, talvez alimentada por uma nova geração de iraquianos, uma onda de manifestações, sit-in, desfiles e ocupações de locais públicos. As divisões internas do governo, a fragilidade das instituições, a impreparação ou hesitação das novas “forças de segurança” em paralelo com fortes milícias incontroladas e, talvez sobretudo, a exposição à luz do dia de uma corrupção generalizada e descarada – tudo isso tendeu a criar movimentos de massas enormes.

A ideia com que se fica, embora parcialmente desmentida por uma ou outra das entrevistas referidas abaixo, é a de que os temas dominantes há dez anos nas declarações contra Bagdade – o nacionalismo e a resistência à ocupação – deixaram de ser dominantes. Agora exige-se a liberdade, a libertação dos presos políticos e das mulheres, a supressão da Lei Antiterrorista, a demissão do governo e a perseguição dos corruptos. Agora convoca-se e coordena-se sobretudo pelas redes sociais da internet.

No Iraque de hoje, cheira mais a Praça Tahrir do que a maquis francês.

No artigo que se segue, a jornalista espanhola Carla Fibla, do site Aish.com.es, apresenta e resume as dez entrevistas que fez a diversas figuras da política e da intelectualidade iraquiana. O nome de cada entrevistado está linkado para a página da respectiva entrevista no site Aish (em inglês, quer os textos quer os áudios). Embora nós discordemos muito de alguns dos entrevistados, pareceu-nos útil e oportuno – Praça Tahrir, Praça Taksim – dar aos leitores uma perspectiva mais actualizada do que se passa no Iraque. Chamamos todavia a atenção para os erros “anti-imperialistas” e frentistas que sempre têm marcado a forma como a esquerda encarou a invasão e a ocupação do Iraque pelos EUA.

Está a haver uma mudança no Iraque (pelo menos na imagem que sempre tem sido dada, pela esquerda e não só, de que é uma situação de invasão-ocupação-resistência nacionalista), e essa mudança é no sentido de movimentos de massas autónomos e sem partido que lutam por liberdade, democracia e direitos básicos do povo, como em outros países muçulmanos, na África do Sul, na Índia, na Europa, no Brasil, etc.

Passa Palavra

Dez conversas para se entender o Iraque actual

Ao completarem-se 10 anos da invasão do Iraque seleccionámos um número igual de entrevistas e conversas realizadas pelo Aish com actores e protagonistas da cena política e social iraquiana.

Tentar apreender a realidade do Iraque quando está em marcha um processo de mutação intenso e altamente incerto não é coisa fácil. A percepção que se tem no Ocidente do que acontece no Iraque resume-se a que o país está mergulhado numa espiral de violência, num confronto sectário cíclico cada dia mais marcado, no caos político e em que há uma falta de segurança devida à recente ocupação estrangeira.

Tendo em conta o passado do Iraque, a sua situação geográfica estratégica, os traços próprios da sua população e a história da sua resistência e dos seus confrontos, é possível compreender uma parte importante do que está a acontecer agora; no entanto, sem nos aproximarmos dos cidadãos que protagonizam a mudança ou, pelo menos, fazem tremer os pilares do sistema, é impossível conhecer o que está por trás das suas reivindicações. Foi isso que o Aish fez poucas semanas depois de as manifestações contra o governo de Nuri al-Maliki se terem tornado constantes e de milhares de iraquianos terem ocupado praças e ruas pedindo o fim da corrupção e do sectarismo e o retorno a uma vida digna em que todos disfrutem dos direitos mínimos, como a água, a electricidade, os alimentos, a saúde, a educação e a segurança.

As dez conversas que agora partilhamos com os leitores do Aish foram realizadas por telefone a partir de Aman ou pessoalmente em vários pontos da capital jordana.Passaram-se mais de três meses desde que foram feitas mas o seu conteúdo e o grau de reflexão tornam-nas actuais. Os processos de mudança em lugares com tantos actores, como é o terreno iraquiano, não são fáceis nem rápidos, e só nas últimas semanas as fontes iraquianas que continuamos a consultar admitem que pode ser dado um passo definitivo, alcançado um ponto de inflexão, que pressuponha um avanço considerável na transformação do Iraque actual.

Por isso continuamos atentos, no Facebook e no Twitter, às reflexões colocadas da rede por Abu Fanar, o qual define assim o movimento em que participa: “Somos os donos de uma experiência jovem porque não formamos nenhum partido político, não pertencemos a nenhuma linha política, seja ela anterior ou de agora”. Abu Fanar denuncia que o governo de Maliki “está tentando mandar dinheiro a algumas autoridades religiosas e líderes sociais, e enviar delegações envolvidas no processo político para unir os jovens e convencê-los a deixarem de protestar”, e conclui: “Nos últimos 10 anos, os políticos tiveram suficientes oportunidades e não fizeram nada, foram de fracasso em fracasso ou não conseguiram nada no que se refere à estrutura social do país”.

Não há líderes, repetem todos os entrevistados, mas existe, no exterior, uma coordenação encabeçada pela Associação dos Ulemas Muçulmanos do Iraque. “As manifestações foram espontâneas, no momento preciso, no tempo adequado; as condições relacionadas com as mulheres detidas nas prisões, etc., foram os factores que ajudaram a criar um espaço para que as pessoas saíssem à rua, e por isso as massas o fizeram”, explica Muthana Harith ad-Dari, membro da Associação, para depois esclarecer que “a resistência são as manifestações e os sit-in” que se sucedem por todo o país. Sem rodeios, assegura que “Maliki nunca se comportou de forma diferente dos seus predecessores [no que diz respeito às revoltas], sem falar de Khadafi, Mubarak, Ali Abdulah Saleh e até Zine al-Abidin Ben Ali. Esses regimes são despóticos e ditatoriais e o seu único método é a repressão que é usada com a desculpa da segurança”.

Também em nome da Associação de Ulemas Muçulmanos, o xeque Mohammad Bashar al-Faidi explica: “Estamos a trabalhar em muitas direcções: com os chefes das tribos do norte, do centro e do sul do Iraque, ao mesmo tempo que nos mantemos em contacto com os jovens através do Facebook”. Confirma que as manifestações de propagaram por todo o país e que há zonas, como al-Anbar, que já se consideram libertadas, e recusam comparações com os acontecimentos da vizinha Síria: “O regime da Síria tem 40 anos, está firme, e as instituições de segurança e o exército são dirigidos pelo chefe do regime com grande firmeza, é esse o segredo da sua permanência no poder até agora. O regime no Iraque está dilapidado e não existe um exército como o exército sírio; no Iraque há uma colecção de milícias, de mercenários, com lealdades múltiplas”.

Entre os chefes de tribos com quem contactámos, o xeque Ahmad al-Mishaan al-Bidawi assegura que defendem “a desobediência civil, permitida pela legislação internacional por que nos regemos, pois já não reconhecemos a Constituição iraquiana”, e anuncia: “Estamos a preparar uma marcha até Bagdade mas queremos que o mundo nos ouça; queremos que a nossa voz ressoe porque as acções deste governo anularam a democracia”.

Também o xeque Khadim Enaizan comenta, a partir de Bassorá, a cidade no sul do Iraque onde a resistência considera que o Irão está a fazer maior pressão para acabar com as manifestações, que “os protestos não vão parar até que sejam libertados os presos políticos e as mulheres, até que seja anuciada uma amnistia geral que anule o artigo 4º da Lei Antiterrorista, além do fim deste governo”, algo que secunda o activista Uday al-Zeidi, que foi preso em Bassorá poucos dias depois de falar com o Aish. Agora volta a liderar os protestos, mas já na conversa que tivemos com ele assegurava que “as pessoas estão em efervescência” porque estão perante “a última oportunidade para provocar a mudança”. A revolta começou em 2010 no sul do país, e é daí que nos aparece o objectivo fundamental com mais clareza: “É uma revolta popular pela mudança, para substituir o processo político trazido pelos ocupantes por um processo político patriótico iraquiano, onde os seus representantes serão, todos eles, pessoas do interior do Iraque”.

A emoção com que o analista político Walid as-Zubaidi nos explica a sua última viagem ao Iraque, quando percorreu todo o país para comprovar o grau de empenhamento da população nas manifestações e a reacção das autoridades, permite augurar que é grande o alcance do que se está a viver no país: “Estou convencido de que 97% dos manifestantes são líderes dos outros. Não há qualquer liderança central que os dirija”.

Também em Aman tivemos ocasião de ter uma longa conversa com Abd el-Amir Tareq, que se declara nacionalista e baasista. “Precisamos de uma resolução das Nações Unidas que declare que o Estado que veio ocupar o Iraque com a desculpa de derrubar o mártir Saddam Hussein; além disso [as Nações Unidas] têm de entrar no Iraque e ajudar os manifestantes; não queremos a ocupação mas precisamos de ajuda; há uma diferença, esses colaboradores trouxeram-nos a ocupação, e por isso cortaremos a cabeça aos ocupantes que entrarem no Iraque”. Sobre o Partido Baas opina: “O Iraque não vai ser governado por um partido único porque agora o Iraque é plural; mesmo durante a época do Baas nós queríamos o pluralismo para que toda a gente avançasse e usufruísse de progressos”.

À frente do Iraq Surveys, uma das referências informativas criadas pelo movimento de protesto no interior do Iraque, Ahmad al-Mahmud mostra a sua firme determinação de “não negociar as 13 reivindicações apresentadas nas ruas”, e destaca o interesse do primeiro-ministro Nuri al-Maliki em “dividir, diferenciar-nos do sul, aumentar o tom sectário, e obviar a que o povo proteste porque não quer mais abusos e precisa de uma mudança”, um aspecto que o intelectual Abdulkarim Hani contextualiza recordando a revolução de 1952, depois de sublinhar que a população “perdeu o medo e está cada vez mais firme contra o actual governo”.

O artigo de Carla Fibla foi publicado (em castelhano) em IraqSolidaridad.org. Tradução do Passa Palavra.

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