Mas a implacável estátua virgem / encoleriza-se, / demanda reparação. Por Poeta em Buenos Aires

São Paulo II

Vem dilúvio e recobre de memórias
os sulcos e linhas traçados da urbe.
Chuva e trovão, brota do chão aguaçal.
Fazem falta as canoas dos antigos
moradores, a singrar o curso das lembranças
que arrastam consigo os abjetos sacos de lixo.
Os planos, as formas, submersos. Há apenas
a solidão monótona de uma bruta superfície.
O paralelepípedo, o meio-fio, o cruzamento
e o retorno em U. Sem mais a água repousa
e arrefece. Até ser drenada e voltar para as suas
câmeras secretas.
Resplandecem por fim nossas vias,
riscos mais fortes que os da
tempestade. Ocupam o novo vazio
nossas paralelas, nossas perpendiculares,
giratórias e escadarias, em repúdio
a essa memória, a esse dilúvio
turvo que apaga e dissolve
formas do viver.

Mito

Venha entre risos, venha entre cócegas,
após um gole divino de vinho,
venha sim sem vergonha
com jogos jovens, brincalhões.
Não tenha medo, o bosque
é sagrado, o amor é sagrado,
e também o são os seus volumes.
Aperte-os com força e prossigam
a dançar, correndo
e se escondendo,
deixando-se apertar e fugindo.

Que música deliciosa!,
estes gracejos em grego, este
amor tão pagão!
Venha, pois logo ao lado
está o templo da deusa onde
tudo é amor! Para lá, consumar
o divino do mundo, mordiscadas
alegres e muito tesão.
Ao chão então entregues
como animais aos gemidos
num festival privado de prazeres,
celebrado ao pé da deusa.

Mas a implacável estátua virgem
encoleriza-se,
demanda reparação.
“Tragam as vítimas! Amarrem-nas à
mesa, que não mecham suas pernas!”
O sangue deve escorrer
como também escorreu
o sêmen em local sagrado.
O porco e o carneiro,
desce a faca no pescoço
de um jovem e de uma jovem,
cujos sangues alimentam
o insaciável bucho,
orgulhoso, da deusa.
As mulheres se acalmam, os hinos
vão glissando ao sóbrio, e
fumaça de carne e cabelo
empesta o espaço do templo,
opaco.

Ilustração de Henryk Siemiradzki

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