Por João Valente Aguiar

Até mesmo na obra científica de Marx sobre a exploração capitalista persiste uma ambiguidade entre um vector anticapitalista assente na análise da exploração económica e um outro vector subscritor das práticas dos gestores. Antes de avançar quero voltar a sublinhar que o contributo de Marx ao nível da compreensão de algumas mais importantes dinâmicas que estruturam o capitalismo continua a ser inestimável. Mas como na análise teórica e política nunca se trata de indivíduos ou da sua santificação ou demonização, vejamos como Marx combinou uma defesa da classe dos gestores no seio da sua análise sofisticada e complexa da relação social fundamental da contemporaneidade.

Sem me alongar sobre a análise marxiana do capitalismo, lembro apenas que no Livro Terceiro de O Capital o centro da análise continua no estudo «da determinação social específica do capital no modo de produção capitalista – a propriedade de capital que possui a capacidade de comando sobre o trabalho dos outros» (Marx 1991: 505). Esta breve definição das relações de produção no capitalismo é importante – e profundamente contraditória, como se verá no seguimento da discussão – na medida em que essa relação não é concebida apenas em termos da propriedade privada dos meios de produção. De facto, Marx nesta passagem assume muito explicitamente que «a propriedade de capital» pressupõe e «possui a capacidade de comando sobre o trabalho dos outros». Ou seja, o capitalismo não apenas se definiria pela propriedade jurídica dos meios de produção mas também pela transformação do poder de gestão e de administração do processo de trabalho de uma minoria sobre uma maioria.

Umas poucas páginas adiante Marx chega mesmo a citar um livro de 1836 para dar conta do papel predominante dos gestores no capitalismo: «O senhor Ure já fez notar como não são os capitalistas industriais mas os gestores industriais que são “a alma do nosso sistema industrial”» (Ure citado em Marx 1991: 510). O livro original de Andrew Ure pode ser encontrado aqui.

Sendo assim, perguntará o leitor como é possível relacionar estas argutas e valiosas observações de Marx com a tese de que este autor teria, ao mesmo tempo, identificado os interesses dos trabalhadores com o interesse dos gestores?

Numa primeira leitura do que que está para trás deste artigo, pode existir a impressão de que, no Manifesto do Partido Comunista ou em A Guerra Civil em França, Marx não se teria dado conta da existência de gestores no seu tempo. Não escrevi isso mas é uma possível constatação do que ficou implícito nos pontos 2 a 4 deste artigo. Ora, uma leitura atenta dos capítulos 23 e 27 [*] do Livro Terceiro de O Capital demonstra que Marx realmente conhecia a existência e a novidade dos gestores já no século XIX.

Todavia, Marx não retira todas as consequências da existência de gestores no capitalismo. Muito longe disso. Não só não os vai considerar como uma classe social como vai claramente aproximá-los da classe trabalhadora. Isso é particularmente visível na crítica de Marx à «confusão entre o lucro da empresa e os salários de supervisão ou de gestão» (Marx 1991: 513). Aí, Marx não vai apenas defender que «o mero gestor […] não possui capital sob nenhum título» (Marx 1991: 512). Desdobrando o raciocínio de que os gestores não possuiriam qualquer poder de apropriação de capital, Marx vai apresentar a tese de que «a formação de uma classe numerosa de gestores comerciais e industriais» implicaria que o seu rendimento «seria similar aos salários do trabalho qualificado em geral, dado o desenvolvimento geral que reduz os custos de produção da força de trabalho com um treino especial» (Marx 1991: 513).

Isso significa que o desenvolvimento da produção capitalista estaria a dar ao tal «mero gestor» a particularidade de estar cada vez mais a «tomar conta de todas as funções que cabiam ao capitalista funcional [o capitalista individual da indústria], ficando apenas com as que são funcionais» à produção de bens e serviços, tendo entretanto «o capitalista desaparecido do processo de produção como alguém supérfluo» (Marx 1991: 512).

Portanto, no momento em que a expansão e a complexificação do capitalismo nas relações de trabalho vinham ocorrendo, Marx vai concluir que o gestor seria uma espécie de trabalhador qualificado com meras funções técnicas de administração do processo produtivo. Nesse sentido, não me parece desprezável o facto de Marx, por um lado, não incluir os rendimentos dos gestores na categoria de lucro – «o lucro médio [= juro + lucro das empresas] apresentar-se […] como uma magnitude completamente separável dos salários de gestão» (idem) – e, por outro lado, estabelecer a equivalência desses rendimentos a um salário de um trabalhador qualificado: «o rendimento de um gestor é ou deve ser simplesmente o salário de um determinado tipo de trabalho qualificado, com o seu preço a ser regulado no mercado de trabalho como o de qualquer trabalho) (Marx 1991: 567). Ainda hoje a Sociologia das Classes Sociais continua a utilizar em Portugal a categoria PBTEI (pequena burguesia técnica e de enquadramento intermédio), precisamente uma categoria que inclui tanto trabalhadores técnicos e qualificados como gestores intermédios e supervisores, misturando funções socioeconómicas totalmente opostas. Neste aspecto, o tratamento de Marx sobre o papel do conjunto da classe dos gestores padece dos mesmos problemas que a análise sociológica comum. Na realidade, Marx ainda consegue confundir mais as coisas. Onde a Sociologia actual mistura trabalhadores qualificados com profissionais de supervisão e de gestão de média patente, Marx coloca no mesmo plano trabalhadores qualificados e todo o tipo de gestores, das categorias intermédias às de topo.

Politicamente Marx foi agravar a fusão ideológica entre gestores e trabalhadores quando prognosticou que o afastamento dos capitalistas proprietários da produção abre espaço ao desenvolvimento de novas formas de organização da sociedade. Naturalmente, com os gestores e a classe trabalhadora lado a lado.

«O lucro aparece assim […] simplesmente como a apropriação do trabalho excedente de outras pessoas, surgindo da transformação dos meios de produção em capital; isto é, do seu estranhamento relativamente ao produtor; da sua oposição, como propriedade de outros, relativamente a todos os indivíduos realmente activos na produção do gestor até ao trabalhador de mais baixa patente. Nas empresas de sociedade anónima, a função [da produção] é separada da propriedade [jurídica] do capital, de modo que o trabalho é também completamente separado da propriedade dos meios de produção e do trabalho excedente. Este resultado da produção capitalista no seu mais elevado desenvolvimento é um ponto necessário da transição rumo à transformação do capital em propriedade dos produtores, não mais a propriedade privada de produtores individuais, mas antes a sua propriedade como produtores associados, como propriedade directamente social. Além disso, ela é um ponto de transição rumo à transformação de todas as funções anteriormente ligadas à propriedade de capital no processo de reprodução, em funções simples dos produtores associados em funções sociais» (Marx 1991: 568) [negritos meus].

Ou seja, Marx antevia na expansão dos gestores a criação de um trajecto de superação do capitalismo. Mais ainda, a inclusão dos gestores na comunidade de «produtores associados» antecipa todas as tragédias que o capitalismo de Estado protagonizou.

Em suma, seria da expansão dos gestores no controlo e administração do processo de produção que surgiria uma antecâmara para uma futura transição para o socialismo. «Esta é a abolição do modo de produção capitalista dentro do próprio modo de produção capitalista, e é assim uma contradição auto-abolidora que se apresenta prima facie como um mero ponto de transição para uma nova forma de produção. […] Ela dá origem ao monopólio em certas esferas e assim provoca a intervenção do Estado» (Marx 1991: 569). E aqui fecha-se o ciclo; é aqui que o estatismo se encontra com o papel atribuído aos gestores na transição para um pretenso modo de produção alternativo ao capitalismo.

Se nas partes 2 a 4 deste texto era teoricamente possível considerar que a existência de um vector nacionalista nas obras de Marx reproduzia a presença inconsciente de determinados interesses dos gestores num tempo em que ainda não se tinham assumido totalmente como classe social, com a leitura dos capítulos 23 e 27 do Livro Terceiro de O Capital parece-me impossível sustentar a primeira leitura. De facto, Marx tinha um conhecimento claro da existência e do surgimento dos gestores dentro do processo produtivo capitalista e, como se viu na primeira citação nesta secção, tinha até definido a função socioeconómica da gestão dentro das relações de produção.

Por conseguinte, parece existir uma forte correlação entre a tese da identificação dos gestores com os interesses de classe dos trabalhadores e as teses mais estatistas e nacionalistas que permeiam as obras políticas clássicas de Marx. Estes dois eixos constituir-se-iam na base para o desenvolvimento de um campo multifacetado de formação de gestores.

Nota

[*] Respectivamente, os capítulos “O juro e o lucro da empresa” e “O papel do crédito na produção capitalista”.

Bibliografia desta quinta parte

MARX, Karl (1991 [1894]) – Capital, Volume Three. London: Penguin

A série Marx e a nação. Um abraço pela frente e uma facada por trás é formada pelos seguintes artigos:

1) O nacionalismo
2) O espaço nacional no centro da constituição do proletariado em classe
3) A onda internacional ignorada
4) A Comuna de Paris: um Estado por cima dos operários?
5) Marx e os gestores
6) As duas esquerdas dos gestores

1 COMENTÁRIO

  1. Um retorno a Marx para se livrar “dele”, do Pai, não para libertar um núcleo racional de algumas camadas metafísicas, mas para explorar a contradição fundamental entre posições de classe amalgamadas num otimismo novecentista com a técnica, e um asco generalizado com a política. Daí até a formulação engelsiana da administração das coisas, onde hoje se vê com muita clareza: as coisas nos tornamos nós.

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