Por Leandro Lopes Fiúza Santos

 

O presente texto constitui uma reflexão exploratória acerca do planejamento urbano na cidade de Salvador, no estado da Bahia, tomando como referencial de análise o projeto de via expressa intitulado “Linha Viva”, que, segundo seus idealizadores – governo municipal –, “viabilizará uma alternativa de mobilidade em Salvador, fomentará a logística de desenvolvimento urbano e incrementará a indústria do turismo.” (Leia aqui.) Em um primeiro momento, e não podemos perder isso de vista, um projeto que vise alcançar tais objetivos – ainda que muito vagos – não constitui, por si só, uma problemática. No entanto, o nosso ímpeto de vigília não nos permite descansar o sono dos justos sem nos indagarmos rotineiramente com uma questão inicial básica: A quem interessa a realização/concretização desse projeto?

Pergunta banal? Talvez, afinal de contas, “gato escaldado tem medo de água fria” e as políticas desenvolvidas e postas em prática pelo governo soteropolitano nos últimos anos têm sido colocadas a serviço de interesses outros que não aqueles de uma coletividade maior, historicamente relegada a segundo, terceiro… plano dentro das ações prioritárias dos governos. Ações estas que hegemonicamente reforçam a desigualdade e que, no entanto, dirigem-se enquanto discursos a esta mesma população à qual dizem prestar maior atenção. Isso nos coloca, assim, em posição justificada de desconfiança frente a todo discurso bem-feitor destes governos, autorizando-nos a inclinações antecipadas por uma resposta tácita em relação a quais atores/agentes determinados projetos visam atender. Contudo, não se trata aqui dos fins – sim, não há surpresas aqui, são os mesmo beneficiados de quase sempre –, mas dos meios, que nos levarão a alcançar a compreensão dos termos envolvidos na discussão aqui colocada.

“Podem ter certeza…”

Arrisco-me a afirmar que entre a imensa gama de incertezas existentes para a humanidade a respeito de variados temas, sejam eles banais ou excepcionais, existe algo em que não temos, ou não deveríamos ter, nenhuma dúvida. Refiro-me ao entendimento e aceitação por nós de que a sociedade capitalista (embora não exclusivamente) está estruturada, em função do modo de (re)produção da vida que institui, em classes sociais, entendidas como a brutal divisão social resultante do advento da propriedade individual dos meios de produção da vida (terra, máquinas e equipamentos, instalações fabris…) que separa radicalmente os detentores da propriedade privada dos detentores da força de trabalho.

“A luta de classes, o antagonismo dos seus interesses, a maneira como esses interesses se ligam, determina o regime político, consequentemente, a escolha do governo, as suas inumeráveis variedades e suas variações mais inumeráveis ainda. Pouco a pouco todas essas classes se reduzem a duas: uma superior, Aristocracia, Burguesia ou Patriciado; uma inferior, Plebe ou Proletariado”. [1]

Nesta perspectiva, ainda temos de ter em mente que a estrutura social desde o século XVIII até os dias atuais tornou-se muito mais complexa. No entanto, para as discussões aqui colocadas o mérito dessa questão não se faz primordial. “Seja como for, uma coisa é certa: continua existindo a exploração de uma minoria sobre uma maioria e as desigualdades socioeconômicas não só não desapareceram ao longo dos últimos séculos como, dependendo do país e do momento, até aumentaram” [2]. Exposto isso, o que pensar quando no discurso solene de posse do atual prefeito de Salvador, Antônio Carlos Magalhães Neto, o mesmo informa que “[…] podem ter certeza, em meu governo os interesses de Salvador vão estar sempre em primeiro lugar […]”? (Leia aqui.)

Em verdade, talvez o primeiro pensamento direcione-se a racionalizar os limites da prática político-governamental no interior de uma sociedade indiscutivelmente desigual. Ora, teoricamente, o líder político desta sociedade de fato deveria trabalhar para atender aos interesses de todas as classes que a compõem. Mas, sendo assim, ele irá esbarrar fatalmente na problemática primeira que refere-se à própria existência destas classes que estão em constante conflito em virtude dos seus interesses antagônicos. Em outros termos: é possível acreditar que no interior de uma economia capitalista existirá uma convergência de interesses comuns descolados dos interesses de classe e mesmo dos grupos específicos existentes no interior destas mesmas classes? Em verdade, as demandas sociais são tão significativamente diferentes em razão do próprio processo de reprodução social e do modo como este se expressa nas formas e conteúdos espaciais que, desta forma, a resposta para a pergunta colocada é evidentemente negativa.

Ainda que não seja o interesse aqui realizar uma análise, mesmo que superficial, do discurso do atual prefeito no momento da sua posse, vale a pena resgatar a passagem que embasa as considerações expostas no fragmento acima; afinal de contas, ele reconhece, como se verá, a existência mesma das classes sociais e da complexidade existente em uma grande cidade. No entanto, em um devaneio que me parece próprio dos políticos, aponta que “[…] para avançar de verdade, para colocar a nossa cidade de novo no eixo, vou precisar do apoio de todos vocês. Ninguém faz nada sozinho, muito menos administrar uma cidade do tamanho e da complexidade de Salvador. Precisamos fazer um amplo pacto pela reconstrução de Salvador. Um pacto que consiga unir partidos, ideologias, classes sociais, setores produtivos e crenças. E nesse pacto, o exemplo tem de vir primeiro de nós, políticos.” (grifo nosso).

Creio que temos até aqui um prato cheio para inúmeros debates… Contudo, o objetivo aqui foi alcançado, a saber, expressar como se tenta impelir uma falsa idéia de interesse coletivo destituído das especificidades próprias do viver em sociedade. Ou seja, em última análise, colocar Salvador “de novo no eixo” (qual?), como se todos os grupos almejassem os mesmos resultados sociais nos mesmos níveis de prioridade. Propaga-se nos interstícios do discurso uma idéia de neutralidade política que se atrela justamente ao tipo de pensamento que acredita ser possível a existência na sociedade capitalista de um governo voltado a atender um – assim como o pronome, esses sujeitos ficam indefinidos – interesse comum da cidade, um “interesse de Salvador” meramente. Os conflitos existentes em razão da forma como se dá a produção desigual dos espaços não devem ser subsumidos em função de um interesse comum. Assim como a física nos ensina, é o atrito que gera movimento, a problemática se realiza em função de determinados atores/agentes serem historicamente colocados à margem dos diálogos que, ao concretizarem-se enquanto projetos no espaço, o são sem o “referendo” dos principais afetados. Essas questões vão ser retomadas em outros pontos da discussão aqui colocada.

As bases desse tópico abrem a possibilidade de realizarmos uma pequena exposição sobre a idéia de planejamento urbano.

O planejamento urbano

As regras da gramática nos ensinam que planejar constitui um verbo transitivo, posto que o sentido do seu emprego em uma oração só se realiza a partir de um complemento. Afinal de contas, quem planeja, planeja algo. Entre os seus sinônimos, encontramos palavras tais como engendrar, esboçar, projetar, programar, planificar, planear… todas elas relacionam-se à idéia de tempo futuro, haja vista que não é possível, evidentemente, planejar o passado. Sendo assim, o primeiro ponto principal a ser retido aqui é entender que o ato do planejamento representa uma tarefa eminentemente prospectiva. Em outros termos, um esforço de visualização de ações futuras, ou seja, um grande desafio para todos aqueles envolvidos com esse ato no que se refere às ações em escalas tão complexas como as existentes nas grandes metrópoles. Para sintetizar, como aponta Marcelo J. Lopes de Souza em relação à idéia de futuro e complexidade do planejamento urbano, temos que: “esse conteúdo essencial permanece se se transfere a discussão para a seara do planejamento urbano, coisa muito diversa e infinitamente mais complexa que o planejamento de uma construção, por envolver todo um coletivo social prenhe de conflitos e contradições e uma ponderável dimensão de imprevisibilidade. Tendo em mente o planejamento urbano, mas mantendo a definição em um nível bastante abstrato, pode-se assentar que planejar significa tentar prever a evolução de um fenômeno, explicitar intenções de ação, estabelecer metas e diretrizes. Ou, para dizer a mesma coisa de modo talvez mais direto: buscar simular os desdobramentos de um processo, com o objetivo de melhor se precaver contra prováveis problemas ou, inversamente, com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios.” [3]

Imbuído das informações elencadas, temos em mente que o planejador, por ser um indivíduo consciente, participante da vida social – em menor ou maior grau –, insere-se fatalmente em uma vivência onde as suas posições políticas, ideológicas e filosóficas – para citar alguns termos abrangentes – expressam-se no seu ato de pensar e realizar as ações próprias do seu planejamento. Dito de outro modo, pode-se afirmar sem a menor sombra de dúvida que constitui mesmo uma atividade impossível na vivência social realizar um planejamento urbano imerso em alguma neutralidade sócio político-científica, como almeja a Sua Excelência, o prefeito, Antonio Carlos Magalhães Neto.

Sabendo disso e do que foi colocado no tópico primeiro, é sabido que no interior da sociedade capitalista o Estado não paira como um juiz neutro no jogo desigual das classes sociais, pois em geral tende a beneficiar através das suas decisões os grupos historicamente já privilegiados. Isso, por outro lado, não quer dizer também que não seja possível realizar um planejamento mais consoante com os interesses de uma maioria historicamente relegada à periferia das discussões propostas e implementadas enquanto ações no espaço. Leia aqui.

O Projeto “Linha Viva”

O projeto da via expressa ‘Linha Viva’, criado na gestão da anterior Prefeitura, à época tendo como chefe do executivo municipal João Henrique de Barradas Carneiro, segue em frente nos atuais marcos políticos governamentais da sociedade soteropolitana. As informações gerais fornecidas oficialmente indicam (leia aqui):

– 17,70 km de pista dupla.
– Três faixas de tráfego por sentido.
– Concessão (sem recursos públicos).
– Concessão com prazo de 35 anos.
– 10 intersecções, 17 viadutos transversais, 13 viadutos longitudinais, 2 trincheiras e 2 túneis, 1 ponte especial sobre o rio Jaguaribe – 56 km no total.
– Via que visa à integração.
– Será possível realizar o percurso em 15 minutos e velocidade de 100 km/h.
– Trará benefício a 780 mil moradores residentes na área de influência direta.
– Sistema de arrecadação de pedágio.

Como se percebe, o projeto não constituirá uma intervenção urbana das mais simples. ”[…] o traçado da Via Expressa LINHA VIVA tem início na confluência da Av. Antônio Carlos Magalhães com a BR-324 e se desenvolve no sentido norte em direção à Av. Luiz Eduardo Magalhães, cortando inicialmente o bairro de Pernambués […] e atinge a BA-526 (Estr. CIA/Aeroporto) na altura do Km 5 da mesma”(RIMA, p.18). O projeto atingirá diretamente um grande contingente populacional, haja vista que seguindo as linhas da faixa de servidão da CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), desapropriará – caso concretize-se o projeto – toda a população territorializada nas imediações por onde estão instaladas as referidas linhas. O Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), assinado pelo engenheiro Francisco Moreno Neto, indica que a via passa – ou passará – pelas “regiões de Pernambués, Cabula, Arenoso, CAB (Centro Administrativo da Bahia), Trobogy, Alphaville II, Mussurunga e norte de S. Cristóvão” (RIMA, p.6). Aqui, uma primeira ressalva refere-se ao fato de que, ainda que utilize no RIMA o termo “região”, este aparece desvinculado de qualquer questão prática de planejamento relacionada ao Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), lei no 7.400 de 2008, pois das áreas mencionadas a única relacionada a uma região administrativa entre as 18 existentes nessa ferramenta de planejamento é a região do Cabula. Isso tem importância em função de constar no Art. 324 da referida lei que “as regiões Administrativas […] constituem-se em unidades espaciais de referência para fins de planejamento e gestão” (grifo nosso). Isso aponta que em relação ao planejamento colocado pelo Estado, nesse caso específico, os termos utilizados não seguem rigorosamente os pressupostos colocados a partir da legislação. Dessa forma, no documento devem entender-se as regiões como sinônimo somente de áreas territoriais, não necessariamente bairros, já que o Alpha Ville II não se insere nesta subdivisão municipal, de acordo com as informações contidas no Sistema de Informações Municipais da Prefeitura (leia aqui).

Ainda assim, fazendo um exercício de elucidação, vamos tomar alguns bairros diretamente afetados, como apontado no RIMA, como exemplo para entender uma determinada questão.

Tabela 1 – População residente, região administrativa e rendimento médio

Rendimento médio do responsável por domicílio em salários mínimos População residente por cor ou raça
Bairro População residente, 2010 Região administrativa Feminino Masculino Amarela Branca Indígena Parda Preta
Luis Anselmo 11.501 Brotas 4,48 8,76 141 2.380 33 5.773 3.174
Arenoso 16.604 Cabula 2,88 4,54 264 1.766 47 8.420 6.107
Cabula 23.869 Cabula 2,88 4,54 404 5.876 95 12.677 4.817
Pernambués 64.983 Cabula 2,88 4,54 879 10.375 149 35.536 18.044
Saramandaia 11.272 Cabula 2,88 4,54 151 1.006 20 5.723 4.372
Mussurunga 30.847 Itapuã 3,33 5,8 551 4.877 108 16.856 8.455
São Cristóvão 53.903 Itapuã 3,33 5,8 811 7.479 108 30.299 15.206
Jardim das Margaridas 4.592 Itapuã 3,33 5,8 50 1.137 2 2.542 861
Trobogy 7.157 Pau da Lima 2,25 3,56 93 1.903 9 3.702 1.450
Nova Brasília 16.716 Pau da Lima 2,25 3,56 251 2.152 34 9.098 5.181
São Rafael 25.790 Pau da Lima 2,25 3,56 458 5.734 62 3.146 6.390
Novo Horizonte 12.952 Tancredo Neves 1,71 2,87 141 1.756 42 6.856 4.157
Total 280.186 4.194 46.441 709 150.628 78.214

Fonte: IBGE, Censo Demográfico
Recorte: Bairro
Elaboração: SIM
Adaptação: Leandro Lopes, 2013

Como podemos perceber, tomando por base esta “amostra” (Tabela 1) de bairros que serão possivelmente afetados pela construção, implantação e operação da via, o perfil da população apresenta-se como majoritariamente negra e de baixa renda (entre 1,71 e 8,76 salários mínimos), onde, em uma comparação entre gêneros, o homem ganha predominantemente mais do que a mulher. Por curiosidade, e também para se ter uma noção das disparidades de renda existentes nos diferentes espaços da cidade, o rendimento médio do responsável pelo domicílio dos indivíduos residentes no bairro da Barra é de 11,24 e 20,79 para o gênero feminino e masculino respectivamente  (leia aqui). Essas informações, ainda que digam muito a respeito do processo que vem se realizando, estão estabelecidas sobre o substrato muitas vezes “frio” dos números, mesmo quando eles são escandalosamente reveladores. Nesse momento, sugiro a visualização do vídeo “Saramandaia Existe” para se ter uma noção visual dos atingidos pelo projeto.

Uma outra questão que merece uma dedicada atenção está atrelada à própria idéia de via expressa. De acordo com o PDDU 2008, em seu artigo 192, tem-se que: “Para efeito da hierarquização do sistema viário do Município são consideradas as seguintes categorias:

I – via expressa, VE, com a função principal de promover a ligação entre o sistema rodoviário interurbano e o sistema viário urbano, constituindo-se no sistema de penetração urbana no Município e contando, obrigatoriamente, com faixas segregadas para o transporte coletivo, que terão prioridade sobre qualquer outro uso projetado ou existente na área destinada a sua implantação.

Aqui fica claramente demonstrada a flexibilização da lei para alcançar os objetivos propostos pelo Estado, pois ao mesmo tempo em que eles – governantes – adotam o discurso legalista para desapropriação das famílias territorializadas sob a faixa de servidão da CHESF, argumentado que “a construção de casas na ‘faixa de servidão’ é proibida” (RIMA, p.5), “esquecem” e omitem as informações contidas no plano diretor em que eles alegam estar embasados para o cumprimento das questões legais. E é desta forma que se inserem as modulações, instrumento jurídico que possibilita “exceções à regra”, tornando válidos projetos mesmo quando considerados inconstitucionais. Pontuaremos algumas questões mais à frente. Há outros imensos fatores problemáticos no projeto e no que se refere aos desacordos em relação à Lei no 12.587/12 (Lei de Mobilidade Urbana) as infrações são gritantes. Alguns outros problemas podem ser sinteticamente observados aqui. O que temos aqui é um projeto pautado na mobilidade do transporte particular e não no coletivo – o que é próprio da sociedade de bens oligárquicos na qual vivemos.

Exposta essa série de questões, vale a pena colocar agora alguns fragmentos existentes no RIMA, capítulo 9.1 quanto às “Justificativas de Implantação da Linha Viva”. São eles:

– “O projeto de construção da Via Expressa ‘LINHA VIVA’ visa melhorar o deslocamento e a mobilidade entre as regiões Sul e Norte do município de Salvador, notadamente criando uma nova via de apoio ao Norte da Av. Paralela, hoje cotidianamente congestionada em muitas horas de um dia útil típico.” (RIMA, 2012, p.5).

– “A LINHA VIVA está sendo proposta para atender um conjunto de condicionantes operacionais do tráfego existente em Salvador e que restringem a mobilidade”. (RIMA, 2012, p.5).

– “A LINHA VIVA atende, então, a uma necessidade do município que fica diariamente demonstrada no tráfego congestionado da Av. Paralela. A maneira de solucionar a condição existente é a de implantação de um novo sistema viário, que gere maior capacidade de escoamento do tráfego na região e uma nova alternativa de circulação. Ou seja, o fluxo de veículos que necessita transitar entre as regiões da cidade, próximas ao traçado proposto, não é mais suportado pelas ruas e avenidas existentes”. (RIMA, 2012, p.5).

– “Uma outra condição importante é relativa ao modal de transporte aqui adotado; ou seja, porque construir uma rodovia e não um sistema ferroviário ou metroviário, por exemplo. Em um ambiente urbano, como é o caso, as principais necessidade a serem atendidas é o transporte de pessoas, para o trabalho, escola, lazer, compras, mas também para transportar cargas para abastecimento do comércio, indústrias e serviços dispersos especialmente em geral. O único modal que se presta a este atendimento, de modo conjunto, é o rodoviário. Não há possibilidade de abastecer um supermercado por meio de metrô, só para melhor ilustrar esta situação. O modal rodoviário também é o único que se presta a um transporte de porta a porta, ou seja, da porta de casa até a porta do trabalho ou da escola, do supermercado, etc.” (RIMA, 2012, p.5).

– “Conforme expresso acima, o empreendimento é reconhecidamente necessário para resolver os sistemáticos congestionamentos do trânsito, está no melhor local e cumpre com todo o planejamento do município”. (RIMA, 2012, p.6).

Tendo em mente o exposto na introdução desse texto, o que temos neste exemplo de planejamento urbano na cidade de Salvador? Percebe-se claramente, e não precisamos de grandes elucubrações, que a “Linha VIVA” enquanto projeto constrói-se sem nenhum tipo de referência significativa da participação da sociedade civil diretamente afetada nos termos do projeto. As conclusões alcançadas pelos planejadores se realizam como se tudo estivesse sendo pensado para o bem da cidade, e já apontamos o problema disso. Parte-se do princípio, nesse tipo de situação, de que os problemas são eminentemente técnicos e que a sociedade civil organizada não teria condições assim de entender as dimensões e por isso pautar qualquer proposta significativa no planejamento urbano. Devemos salientar, por outro lado, que “nem 8, nem 80”… Reconhecemos que existe um caráter extremamente técnico na realização de projetos desse perfil. No entanto, o debate é invariavelmente permeado de questões políticas; não há – ou não deveria haver – o deslocamento desse par técnico-político. Contudo, os planejadores tradicionais insistem em manter nos seus diagnósticos e prognósticos essa trágica separação. Há que ser dito também que no concernente a questões extremamente técnicas, a incompetência muitas vezes é presença constante na vida dos planejadores de carteirinha. Se fizéssemos um levantamento das tragédias técnicas existentes na história desse país e mais especificamente dessa cidade, correr-se-ia o risco de termos uma lista infinita. Um fato recente, a ser lembrado, pode ser acompanhado aqui.

A “Linha VIVA”, pela localização estratégica onde poderá ser implantada, só confirma a regra de ações prioritárias do governo a favorecer o “desenvolvimento” de determinadas áreas, a saber, o vetor da Av. Luís Viana, vulgo “paralela” e adjacências; ainda assim, não esqueçamos, um “desenvolvimento” de prioridades classistas. O projeto fala de “incremento do turismo”, mas pensemos: por que não criar mecanismo de desenvolvimento que favoreçam e estimulem o turismo em áreas do subúrbio ferroviário de Salvador, que possui, diga-se de passagem, tantas potencialidades – como é possível perceber em um rápido passeio partindo na estação de trem da Calçada em direção ao subúrbio –? Sabemos que se trata de vontade política, que por sua vez está imersa em todo um jogo social que vivenciamos cotidianamente, onde as prioridades de alguns são vendidas como sendo as prioridades da maioria.

O processo de planejamento urbano, como salientado aqui em algum ponto, é constituído de uma dimensão ponderável de imprevisibilidade. Sendo assim, como diminuir as brechas de erros se a participação dos principais envolvidos, os quais vivem cotidianamente os diversos problemas de mobilidade urbana, não se realiza? E quando o são, diga-se de passagem, isso se realiza para cumprimento de questões meramente formais; afinal, quando somos “consultados” não podemos “deliberar” sobre quase nada. Como aponta Deise Lima, uma das moradoras do bairro de Saramandaia, “queremos discussão com a comunidade. Estão dificultando a participação popular. Não temos informações sobre nada. Não sabemos quantos moradores serão deslocados, para onde vão, quanto vai ser de inauguração. Sou contra a linha viva porque acho que o projeto, em escala de bairro, vai desestruturar um bairro que já é desestruturado” (leia aqui).

Em relação ainda a algumas questões gerais existentes no projeto, no que se refere a “Concessão” (sem recursos públicos), por exemplo, a questão me parece de uma fragilidade sem tamanho. Afinal de contas, ainda que o projeto se realize sem os ditos recursos, trata-se de uma privatização – termo relegado a concessão – de vários espaços públicos da cidade, sem a devida explicação e um significativo debate com a participação popular. Ou seja, em verdade, presencia-se mais uma vez a redução dos espaços públicos e ampliação dos espaços privados/privativos. Reflexões semelhantes podem se realizar em relação a todos os tópicos apresentados no início desta discussão. Perguntas tais como: “Via que visa que tipo de integração? O que se entende por integração nesse sistema? Como se chegou à conclusão de que 780 mil moradores serão beneficiados? Como…? Porque…? Quando…? Com que propósito…?” e assim por diante.

Por fim, o uso aqui em alguns momentos da lei no 7.400 de 2008 (PDDU) fez-se pois, de acordo com os empreendedores o projeto pauta-se “em uma série de documentos oficiais recentes que consolidam as ações para melhorar o transporte no município, a Lei municipal 7400/08 – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano no Município de Salvador – PDDU; o Projeto de Mobilidade de Salvador, com o PROVIA – Programa de Obras Viárias; e, a Lei Municipal 8.167/12 – Lei de Ordenamento de Uso e Ocupação do Solo de Salvador” (RIMA, 2012, p.3, grifo nosso). Dessa forma, demonstramos aqui que até mesmo quando utilizam-se ferramentas concebidas para atender determinados interesses – como foi o referido PDDU do município de Salvador – , ainda assim eles suplantam questões legais. Com a recente declaração de inconstitucionalidade da Lei de Ordenamento e Uso do Solo (LOUS, lei 8.167/12) (leia aqui) e todas implicações que ela comporta, alcança-se uma significativa vitória – ainda que seja necessário continuar lutando – para aqueles que reivindicam maior transparência e participação nas ações colocadas para a cidade. Ainda assim, no que tange à Linha Viva, a problemática ainda se desenrola, como se pode ver nesse vídeo:

Outras variadas questões sobre o projeto podem ser encontradas no site Linha Viva Não!, assim como em alguns outros links já indicados ao longo de todo o texto. Para uma sucinta reflexão, talvez já tenhamos nos alongado por demais.

Referências

[1] PROUDHON, P.J. Do princípio Federativo, São Paulo: Nu-Sol: Imaginário, 2001, (P.70). Pode ser acessado em aqui.
[2] SOUZA, Marcelo Lopes de; RODRIGUES, G. B. . Planejamento urbano e ativismos sociais. São Paulo: UNESP, 2004. (P.25-26)
[3] SOUZA, Marcelo Lopes de. A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização do planejamento e da gestão das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. (P.149)
SOUZA, Marcelo Lopes de . Mudar a cidade. Uma introdução crítica ao planejamento e à gestão urbano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. – Alguns capítulos podem ser encontrados aqui.

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