Apesar do fim do ato, o som das baterias ainda ecoa no ar de revolta onde a violência de ontem e hoje se difundem em acordes não tão dissonantes. Por Passa Palavra.

O desfile do Cordão da Mentira [1] realizado 50 anos após o golpe militar reuniu cerca de 1000 pessoas de inúmeros coletivos em frente ao Dops – Departamento de Ordem Política e Social –, em plena terça-feira no município de São Paulo. Seguindo o ritmo dos sambas compostos pelo Cordão, que lembravam as violências promovidas pelo Estado de ontem e hoje com a conivência dos grandes veículos de comunicação, a bateria do Bloco Unidos da Lona Preta, Espaço Cultural Carlos Marighella e fanfarra do M.A.L. animavam o cortejo, que seguiu pelo centro da cidade e terminou no bairro de  Higienópolis, que abriga uma das sedes da Tradição, Família e Propriedade (TFP), grupo de extrema-direita ligada à igreja católica que, em 1964, dias antes do golpe, conclamou as forças do exército a agir contra a ameaça comunista. Além disso, esta região também  ficou conhecida pelo episódio da “gente diferenciada”[2].

Você aí,
Vendo o circo passar na janela
A versão corrompida na tela
Não convence o coração
Diz aí
Não ouviu falar em Marighella?…
Nunca entrou numa favela?…
Prefere não dar opinião
É melhor começar a pensar
Numa nova saída
Naquele moleque sem lar
Nos trabalhadores sem terra
Minha gente sofrida

***
Mas hoje ocupando a praça
Sem juíz, censor ou editor
Valendo mais que mera errata
A gente desmascara
Convertido e enganador

Ao longo do percurso lambes eram colados em postes com poesias e frases de efeito “Você me prende / Eu escapo morto”, “Você corta o verso / Eu faço outro”, “Quem tortura? / Quem mata? Quem tortura? / Quem mata?”. As placas com nomes de rua eram substituídas por placas com nomes de mortos e desaparecidos durante a ditadura.

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Durante os pontos de parada, artistas de diversos grupos teatrais fizeram intervenções acompanhadas da exibição de vídeos nas paredes dos prédios, para lembrar episódios como o da desaparecida política Ana Rosa Kucinski, demitida por abandono de emprego da Universidade de São Paulo, sem que a USP tenha reparado o erro 50 anos depois. Em frente ao 3º Distrito Policial a grande manifestação de prostitutas e travestis ocorrida em 1979 também foi referenciada. Na Rua Maria Antônia, ao lado da Universidade Mackenzie, foi lembrado o conflito entre os estudantes desta universidade – sendo que grande parte integrava o Comando de Caça aos Comunistas – e os universitários da USP. Esta ação ocorreu entre 2 e 3 de outubro de 1968 e ficou conhecida como “batalha da Maria Antônia”.

No carro de som, a faixa “Moinho resiste!” lembrava os constantes e recentes abusos policiais dentro da favela através de uma violência cotidiana aos seus moradores, além da demora de muitas horas dos bombeiros para atender ocorrências de incêndio. Integrantes do grupo Mães de Maio carregavam placas com fotos de jovens mortos pela polícia nas periferias de São Paulo. Na maioria dos casos, os óbitos foram justificados por “resistência seguida de morte”.

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A polêmica dos laudos médicos motivou a intervenção da Frente de Esculacho Popular, vestida com jalecos para referenciar legistas que contribuíram na falsificação de laudos sobre a causa da morte e também na autorização das contínuas torturas, além de se negarem a oferecer remédios às vitimas. Deste modo, a “resistência seguida de morte” apontada nos dias de hoje remete a uma série de dissimulações registradas pelos peritos de outrora.

Apesar do fim do ato, o som das baterias ainda ecoa no ar de revolta onde a violência de ontem e hoje se difundem em acordes não tão dissonantes

Notas

[1] O artigo do primeiro desfile do Cordão da Mentira pode ser encontrado aqui.

[2] Este tema pode ser relembrado no 3º parágrafo aqui.

 

Você pode ver o vídeo do desfile aqui.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

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