Por Ricardo Noronha

 

De perto ou de longe, a memória do processo revolucionário que percorreu a formação social portuguesa há 40 anos continua a revelar-se um elemento problemático para o regime a que deu forma. Há dez anos, o governo resultante de uma coligação à direita teve a esperteza saloia de promover comemorações oficiais sob o mote «Abril é evolução», deixando cair uma letra para revisitar o passado à medida das suas conveniências. O assunto motivou não pouca polémica, parcialmente desvalorizada pelo comissário científico da iniciativa, António Costa Pinto, segundo o qual tudo se trataria do desconforto político de “uma parte da esquerda”, a quem seria “desagradável” ver o “centro-direita de cravos a comemorar o 25 de Abril”[1]. Importa dizer que semelhante desqualificação dos seus críticos representava já um recuo face ao momento em que as comemorações foram anunciadas, um mês antes, quando o mesmo Costa Pinto as apresentou em termos mais sugestivos: “Celebrar os 30 anos do 25 de Abril é celebrar o seu legado que é a democracia e o desenvolvimento. O 25 de Abril é património comum a todos na sociedade, independentemente das ideologias políticas. As comemorações não devem substituir a diversidade ideológica da sociedade portuguesa, mas comemorar a democracia e o desenvolvimento” (Público, 26/03/2004).

Estava dado o toque para o que viria a ser a estratégia argumentativa doravante adoptada pela tecnocracia que alterna aos comandos do Estado e que não esconde o seu enfado sempre que se vê forçada a entrar num debate político: fabricar um consenso anódino e parolo em torno de expressões desprovidas de qualquer significado tangível, do qual foi expurgada a própria possibilidade do conflito e da divergência, para garantir que tudo correu como não podia deixar de ter corrido e vivemos no melhor dos mundos possíveis. Apesar de Costa Pinto possuir sólidas credenciais liberais, importa sublinhar que este ênfase num “património comum a toda a sociedade independente das ideologias políticas” foi precisamente um dos elementos constitutivos da ditadura que o 25 de Abril se encarregou de eliminar. Trata-se, bem entendido, de um artifício retórico saturado de efeitos práticos, uma vez que o significado de termos como “democracia” e “desenvolvimento” é objecto de uma disputa que semelhante discurso, numa terra de ninguém entre a historiografia e a política do espírito, pretende dirimir a favor de uma das partes. E, no caso concreto do 25 de Abril, a “parte da esquerda” para quem se revela “desagradável” ver o “centro-direita de cravos a comemorar o 25 de Abril” deve o seu desagrado precisamente à memória histórica que transporta e que não lhe permite ignorar o cortejo de infâmias que não poucas vezes se abrigou à sombra de palavras como “democracia” e “desenvolvimento” (para não falar de um seu parente próximo amiúde celebrado, a “estabilidade”). Não faltam vozes a insistir que não foi para isso que se fez o 25 de Abril e são essas vozes que este discurso «oficial» vem obliterar, em nome de um património comum que não existe nem nunca existiu. É nesse sentido que aponta Luís Trindade, num dos mais lúcidos ensaios sobre o tratamento historiográfico-comemorativo dado ao processo revolucionário desde o seu epílogo [2]:

Por outras palavras, a democracia saída da contrarrevolução esforçou-se por preservar uma existência fundamentalmente institucional da vida pública portuguesa. Mais do que um combate entre esquerda e direita ou entre democracia e totalitarismo (dualismos que fazem parte do discurso legitimador do regime vencedor em 25 de Novembro), aquilo que se jogou na revolução foi a continuidade de uma explosão participativa estranha a uma sociedade sem autonomia nem hábitos de intervenção.
A construção da democracia celebrou a estabilidade e o regresso dos portugueses a casa como um sinal de maturidade política. […] É por isso que, por entre a capacidade das restritas elites políticas e intelectuais em construírem regimes naturalmente representativos dos portugueses sem a participação dos portugueses, o 25 de Abril surge como um impensável. […] Como se o PREC, enquanto negativo de uma dinâmica social sem densidade, estranheza numa existência política vazia, se mantivesse irredutível a um discurso democrático meramente institucional e portanto preso a uma incapacidade atávica de transformar a realidade.

Dez anos depois, a direita no governo não esqueceu a lição de António Costa Pinto e pretende celebrar os seus próprios valores enquanto consensuais. O governo promove agora “um conjunto de iniciativas comemorativas dos quarenta anos do 25 de abril de 1974” para comemorar “os valores fundamentais conquistados e consensualmente consolidados ao longo destes quarenta anos” [3], mas Pedro Lomba – Secretário de Estado adjunto do Ministro adjunto (upa, upa!) – deu conta das ambições acrescidas da manobra:

Tal como foi necessário defender o 25 de Abril original contra o 25 de Abril deturpado, contra o PREC, para o país evoluir no sentido democrático e pluralista com justiça social e integrado na Europa, hoje é preciso basear o País numa economia aberta e competitiva dentro da zona euro e num mundo global. Já que festejamos 40 anos é preciso continuar com o processo de democratização que começou com o 25 de Abril original. O governo tenta continuar e desenvolver o espírito do 25 de Abril original [4].

A tese do 25 de Abril original contra o 25 de Abril deturpado – que é fundamentalmente a tese dos militares próximos do General Spínola, que ocuparam as principais posições de poder nos primeiros meses do processo revolucionário – encontra poucos defensores entre quem se dedica a estudar o período e o tema com alguma profundidade e rigor, dentro e fora da academia, pelo que Pedro Lomba não faz mais do que recorrer ao homem em quem a direita portuguesa aposta todas as fichas no momento de revisitar o passado, o historiador Rui Ramos. Uma vez que escrevi já um longo texto [5] sobre o seu trabalho mais recente, deixo aos leitores a possibilidade de avaliarem noutras paragens o respectivo rigor e pertinência, mas importa aqui sublinhar a forma desassombrada como este sector político, perfeitamente consciente da importância decisiva da luta de ideias, aposta em sucessivas incursões historiográficas estrategicamente concebidas para defender no espaço público a legitimidade do seu ataque à Constituição da República Portuguesa. A esse respeito, Miguel Cardina antecipou os traços gerais do que aí viria logo no início do ano, com uma presciência que não deixa de impressionar:

Mesmo que distante do espírito de Abril, a direita portuguesa irá encontrar formas de o comemorar, retirando-lhe toda a carga conflitual e emancipatória e inventando um palavreado oco sobre o “país”, a “mudança”, a “democracia” e o “Abril que é de todos”.
Será preciso recordar-lhes que o país mudou apesar da direita. E que as conquistas democráticas alcançadas – não só de natureza política, mas também social e económica – foram feitas contra o poder ancestral dos interesses que esta direita hoje representa. Na verdade, as políticas de austeridade em curso – privatizações, destruição das funções sociais do Estado, empobrecimento – são uma espécie de programa histórico da direita portuguesa, aplicado sob assistência. O entendimento do Tribunal Constitucional como uma “força de bloqueio” mostra bem como este programa histórico tem aspetos de revanche objetiva contra o processo de construção democrática do país. Quarenta anos depois, devemos lançar um olhar analítico sobre esse passado e os seus lastros. Também por isso, fazê-lo implica recusar os discursos que, por rotina mole ou interesse cínico, pretenderão liofilizar Abril [6].

O governo incluiu nestas comemorações um “Itinerário do 25 de Abril” [7], comissariado pelo Arquitecto José Mateus com a historiadora Raquel Varela como consultora científica. Recebi um convite para nele participar, na qualidade de historiador, que omitia o facto de se tratar de uma iniciativa promovida pelo governo, sob a coordenação do Ministro Adjunto Miguel Poiares Maduro [8]. Manifestei então a minha perplexidade pelo facto de essa informação não acompanhar o convite, procurando dar conta das diversas razões pelas quais não me parecia recomendável aceitar convites do governo para ajudar a comemorar o 25 de Abril. As respostas que recebi deixaram-me inteiramente esclarecido.

Sem deixar de respeitar as opções que cada um toma no âmbito do seu trabalho enquanto historiador, parece-me uma péssima ideia colaborar com um governo que tão deliberadamente desrespeita e ataca tudo aquilo que representou a revolução portuguesa de 1974-75: da constituição aos direitos laborais, das liberdades políticas à liberdade de imprensa, da escola pública ao serviço nacional de saúde, do direito à greve ao direito à manifestação. Não duvido das boas intenções dos participantes e compreendo a ideia de que é importante contribuir para uma imagem mais plural do que agora se celebra, mas é meu entendimento que o governo procura precisamente celebrar uma imagem do 25 de Abril que o apresente como o momento inicial que nos conduziu aos dias de hoje apesar dos sobressaltos do processo revolucionário. Existem diversas razões para que os historiadores recusem participar em operações de fabrico do consenso, acrescidas no caso de um evento que apenas pode ser considerado consensual se expurgado das dimensões conflituais que o atravessaram e que importa precisamente relembrar no momento em que vivemos. A democracia em Portugal foi construída contra diversas tentativas de normalizar a desigualdade social, de reduzir a participação política das classes sociais mais pobres da população, de contrair o espaço público e de cercear as liberdades. Nada disso foi consensual e nada disso deve ser esquecido. Que estejamos a falar de um governo que governa ostensivamente contra a Constituição e que ressuscitou diversos elementos do passado que o 25 de Abril veio liquidar (desde as operações de censura e condicionamento da informação ao ataque à escola pública e ao SNS, à emigração forçada ou ao recrudescimento da repressão policial e da criminalização dos pobres) torna ainda mais desaconselhável esta colaboração.

Mas há ainda o caso de estarmos perante um governo que procedeu e procede a um ataque sistemático ao ensino e à investigação científica, cujos ministros e porta-vozes se empenham em desvalorizar todo o conhecimento que não seja imediatamente rentável, com argumentos que já eram populistas e obscurantistas há mais de quarenta anos. Um governo que condenou ao desemprego – como na altura o afirmaram, e bem, diversas moções, artigos e tomadas de posição institucional – centenas de investigadores de diversas áreas científicas. Seria no mínimo insólito denunciar semelhante política de destruição da própria possibilidade de um estudo sério e rigoroso do passado, para depois responder positivamente às solicitações do governo que a promove, conferindo-lhe uma chancela de respeitabilidade e credibilidade científica no momento de celebrar um passado que se tem encarregado de combater.

Tudo o que escrevi acerca do processo revolucionário português tem como finalidade e horizonte a recuperação de uma memória silenciada e/ou denegrida, de luta e resistência contra um estado de coisas que prevaleceu em Portugal ao longo de 48 anos e do qual este governo e as forças políticas e sociais que o apoiam procuram recuperar elementos estruturantes. Recuso-me por isso a pactuar com um esforço notoriamente filiado na produção de uma “história normalizada”, afinal de contas o corolário lógico que deve acompanhar aquilo que o Primeiro-Ministro português denominou recentemente “o novo normal”: uma combinação de engenharia social neoliberal, reconfiguração autoritária da governamentalidade e asfixia do espaço público que contrasta visivelmente com o processo revolucionário aberto pelo 25 de Abril. Essa relação foi de resto magistralmente sintetizada em poucas linhas pelo ensaísta António Guerreiro, ajudando-nos a compreender o que se celebra quando o governo celebra o 25 de Abril:

As comemorações dos quarentas anos do 25 de Abril, as oficiais e as não oficiais, as da esquerda, as do centro e as da direita, são completamente inócuas, politicamente anestesiadas, de um conformismo idiota que serve sem a mínima reserva a reificação do passado. Por elas, não passa nem uma ligeira brisa de pensamento. Tudo desertou, ficou apenas o palco vazio de uma ideia. […] Todos se treinaram no exercício que consiste em fazer um uso público da História, mas todos desconhecem a lição que torna o passado carregado de presente, isto é, citável sem ser neutralizado e reificado. O significante vazio que mais recitam é “democracia”, tornada religião civil à escala planetária. Uns falam de democracia referindo-se a uma ordem jurídico-política; outros entendem-na no plano da prática administrativa, gestionária. Uns e outros parecem incapazes de interrogar tal conceito, de perceber a cisão que o habita e que o fez divergir em duas direcções diferentes. Por isso, deixámos de saber a que ordem de realidade política pertence a democracia. O que sabemos muito bem é que ela se tornou um mero dispositivo do discurso dos políticos. Ao ponto de poder ser entendida, hoje, como a religião dos governantes abandonada pela falta de fé dos governados [9].

Notas

[1] António Costa Pinto, “Abril e o futuro”, Diário de Notícias, 28/04/2004 (visionado aqui)
[2] Luís Trindade, «Os excessos de Abril», História, Abril de 2004 (aqui)
[3] Comemorar Abril (aqui)
[4]  Aqui
[5] Ricardo Noronha, “Uma história normalizada’”, Le Monde diplomatique (Edição portuguesa), Outubro de 2012 (aqui)
[6] Miguel Cardina, Abril em 2014 (aqui)
[7] Aqui
[8] Comemorações do 25 de Abril custam até 300 mil euros”, Diário de Notícias, 27/02/2014 (aqui)
[9] António Guerreiro, “A nossa acção paralela”, Público/Ipsílon, 18/04/2014

A segunda ilustração reproduz um desenho de João Abel Manta.

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