Se o espaço se tornou moldável, isso significa que a actividade do artista passou a conjugar uma determinada intenção estética com uma prática que busque modelar o meio externo. Por João Valente Aguiar

1.

O João Bernardo publicou recentemente um artigo em duas partes (aqui e aqui) sobre a produção da pintura enquanto espaço autónomo. Esta primeira frase é a minha síntese do seu artigo e corresponde efectivamente ao que me parecem ser os seus pontos-chave: a) a processualidade da pintura, em que se analisa o trajecto histórico dos modos como a tela foi abordada ao longo do tempo; b) essas abordagens caminharam no sentido de descarnar a pintura da influência de elementos externos a si mesma e, nesse sentido, a autonomizaram enquanto um conjunto de técnicas não-narrativas. A abolição do movimento, da perspectiva e da figura corresponde a um mesmo processo estético-formal na formação e especialização da pintura: o segundo momento na vida da pintura.

2.

O texto tem quase cinquenta anos, mas continua a deter propriedades relevantes para discussão. Para além da análise da processualidade que acima procurei sintetizar ao máximo, creio que o texto pode e deve ser lido à luz dos caminhos que a pintura percorreu de 1966 em diante. A esse propósito, a frase que abre o ponto 7 desse texto de João Bernardo é particularmente sugestiva: «a pintura vê então apontada a sua nova função: prevê a futura relação entre as coisas». Do meu ponto de vista, é notável que 20 anos antes das teses da estetização da vida quotidiana, o autor tenha apresentado por onde iria caminhar a pintura. Mas se as teses da estetização da vida quotidiana adquiririam uma ressonância pós-modernista, o mesmo não se passa naquele texto. Se o pós-modernismo repousou na inflação desmesurada do simbólico, retirando espessura ao social, toda a obra teórica de João Bernardo percorreu um sentido inverso. O da integração das formas simbólicas nas estruturas sociais.

3.

Retomando a discussão acerca do papel da pintura na previsão da «futura relação entre as coisas», importa perceber de que modo a saturação da tela implicou um terceiro momento na vida da pintura. Mondrian surgiu como o expoente do esgotamento da tela enquanto ponto máximo da referida abolição do movimento, da perspectiva e da figura. Se a pintura não habita mais a tela, para onde ela foi? A presciente observação de João Bernardo de que a pintura se fundiu com outras artes no Urbanismo é, do meu ponto de vista, a constatação de que a pintura se abriria doravante ao espaço.

4.

Num ensaio intitulado A moldura, um ensaio estético, o sociólogo alemão Georg Simmel vai perspectivar a obra de arte como fechada sobre si mesma e não passível de extravasar as suas fronteiras, mais concretamente a própria moldura. Segundo Simmel, a moldura abriria um fosso entre a obra de arte e o mundo exterior. Nas suas próprias palavras, «a moldura não pode, na sua configuração, oferecer em lugar algum uma abertura ou uma ponte, pela qual, por assim dizer, pudesse entrar o mundo ou pela qual a obra pudesse sair para o mundo» (Simmel 1995: 103). Sobre este objecto de estudo Simmel continua devedor, por um lado, à tradição kantiana da estética pura e transcendental e, por outro lado, a uma noção da obra de arte como um objecto situado e implantado na cultura erudita e respectivos circuitos de exposição e legitimação: a tela, mas também as galerias e os museus.

Ninguém pode prever e acertar o futuro, mas Simmel falharia nesta matéria. O caminho da pintura seria o da inequívoca ultrapassagem da moldura.

5.

Mas, se Simmel falhou na previsão da moldura enquanto fronteira última da pintura, a sua análise do dinheiro teria outro destino. A propósito do paradoxo entre a «impessoalidade do agir económico» (Simmel 2009: 43) e o apelo à individua(liza)ção prescrita pelo liberalismo e pela inserção dos indivíduos no mercado de trabalho, o dinheiro operaria no capitalismo como um integrador de práticas distintas. Essa integração social das práticas do cálculo e da racionalização burocrática (Max Weber) com as práticas da busca do sucesso individual e da impressão da marca dos indivíduos dotados na sociedade só foi possível na medida em que as formas pecuniárias reflectem precisamente essa estrutura interna divergente. Se as formas monetárias não se cingem ao simbólico, não é menos verdade que a sua simbologia ultrapassa a assunção shylockiana do dinheiro como puro equivalente de egoísmos, poder e relações de mando-obediência. Dito de outra maneira, por um lado «o dinheiro originou para todos os seres humanos um nível vastíssimo de interesses comuns» (Simmel 2009: 46-47), o que acarretou a supremacia das relações meta-pessoais no desenvolvimento e expansão do mercado e da esfera económica. Mas, por outro lado, essa expansão da impessoalidade das relações económicas mais vastas só se tornaria possível na medida em que o dinheiro não se configurava apenas num nível de interesses comuns e supra-individuais. De facto, ao lado desta vertente, o self individual transmuta-se em capital para o espaço público e/ou para as empresas, em fator de potenciação mais eficaz e criativa dos recursos disponíveis.

6.

Nesse sentido, a pintura conferiu à produção do espaço um papel análogo ao do dinheiro na esfera económica e das sociabilidades: a estabilização de um quadro formal e a expressão de criatividade dentro desse quadro. Neste contexto, o Minimalismo dos anos 60 constitui uma das mais potentes expressões da configuração da pintura no seu terceiro momento de expansão para o exterior da tela. Com o Minimalismo ocorre uma radical simplificação das formas, dos materiais e das cores, o artista pretende acentuar as qualidades físicas e plásticas, sem imitar ou expressar nada para além da realidade física e sensível das formas.

Judd

Donald Judd, Boxes (1965)

Untitled 1965/71 by Robert Morris born 1931

Robert Morris, Sem título (1965)

7.

Com o Minimalismo surge uma encruzilhada espacial no horizonte da pintura, mas que é acima de tudo uma encruzilhada substantiva. Com o esgotamento do formalismo, depois de décadas obcecado com o aprimoramento e com a busca de novos arranjos internos da composição pictórica e da composição espacial da obra – dentro da tela – a questão imediata que tal análise levanta é: se a pintura alcançou uma realização das suas qualidades essenciais, o que resta para ela fazer? Uma solução foi a pintura estender-se para a terceira dimensão.

A tridimensionalização da forma geométrica (e não somente desta) protagonizada pelo Minimalismo (anos 50 a 70) não corresponde apenas a uma transposição do objeto para o exterior. De facto, esse movimento implicou, dentre outros efeitos: a) a expansão da arte para o exterior; b) o estilhaçar de uma concepção observacional da obra de arte, substituída ou complementada doravante por uma postura de vivência prática da obra de arte por parte do público; c) a ruptura com o espaço de exposição típico da arte dos 150 anos anteriores. Daí em diante, a arte enquanto ideia materializava-se no espaço quotidiano.

Dito de maneira provocatória, sem o Minimalismo dos anos 60 e 70 teria sido possível às transnacionais Ikea ou Apple inovar no design dos seus produtos? Como não acredito em coincidências no que diz respeito a questões macroestruturais, a resposta é não.

8.

Com a expansão da arte para o espaço público ocorreu igualmente uma crescente apropriação de novas técnicas (multimedia, fotografia) e composições formais. Neste capítulo, a Land Art tornou-se numa das correntes marcantes da fusão de forma, espaço, imagem e performance.

Long

Richard Long, A circle in the Andes (1972)

Em A circle in the Andes uma fotografia espelha a ida do artista aos Andes para desenhar um círculo na paisagem a partir da recolha de pedras no local. A fusão entre forma, espaço, imagem e performance não é, todavia, um mero artifício. Ela confirma a espacialização da conceptualização estética, o que inevitavelmente implica: o desdobramento da forma (no caso, um círculo) no espaço e o arquivamento do produto do deambular do artista numa fotografia. Constitui-se uma estética espacial e imagética que, neste caso específico, permite reemergir um kitsch um tanto ou quanto reminiscente do Romantismo.

Retenha-se, todavia, a interligação viva e dinâmica entre imagem, acção e forma gravadas no espaço. É esse o expoente – actual – da expressão da pintura fora da tela.

9.

Se a exteriorização dos elementos formais da pintura extravasou em muito a tela, isso implicou uma nova relação com o espaço. A plasticidade das formas induziu uma plasticidade do espaço físico. Ora, se o espaço se tornou moldável isso significa que a actividade do artista passou a conjugar uma determinada intenção estética com uma prática que busque modelar o meio externo. E aqui reentra a questão enunciada acima no ponto 5, a propósito do papel de articulação do dinheiro entre a individuação e as relações impessoais. A arte vista neste prisma consuma uma visão performativa das práticas sociais e individuais. Por conseguinte, a arte fornece um quadro formal e simbólico que unifica e integra a criatividade e o empenho exigidos aos trabalhadores da mais-valia relativa e o seu desempenho individual mais ou menos bem-sucedido no estabelecimento de uma marca pessoal na criação de novos produtos. A expansão da pintura para fora da tela é também uma gramática da vida social dos sectores mais qualificados da força de trabalho. Não é por acaso que Steve Jobs um dia afirmou que «os verdadeiros artistas criam produtos». Seria redutor ler estas palavras como se se destinassem a um vulgar desejo de mercadorização absoluta da arte. Pelo contrário, elas parecem-me demonstrar como o desenvolvimento autónomo e específico da pintura para fora da tela foi apropriado pelos sectores mais dinâmicos do capitalismo e como estes perspectivam a sua força de trabalho em termos de uma imbricação entre criatividade e produção de mais-valia (leia aqui e aqui). É esta a maior arte do capitalismo: utilizar e inserir no seu seio o máximo desenvolvimento autónomo de cada esfera coerente de práticas e de simbologias.

McClurg

John McClurg, Double take (2009)

10.

A pintura fora da tela tornou-se numa forma pecuniário-simbólica de integração global de práticas e de disposições da classe trabalhadora mais qualificada e criativa.

Bibliografia

SIMMEL, Georg (1995) – Der Bildrahmen. Ein ästhetischer Versuch. In SIMMEL, Georg – Aufsätze und Abhandlungen 1901-1908. Vol.1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, p.101-108
SIMMEL, Georg (2009) – A psicologia do dinheiro e outros ensaios. Lisboa: Edições Texto e Grafia

4 COMENTÁRIOS

  1. João Valente,
    se o objeto artístico plástico se libertou do sujeito artista e hoje goza de sua autonomia no mundo do valor, sem ninguém ter que lhe ficar importunando a vida com perguntas desconfortáveis (afinal, o que é a arte?!);
    pelo outro lado da inequação, o novo sujeito artista parece já ter encontrado seu lugar ao sol. Saiu de cena o vanguardista programático “de salão”, acomoda-se na poltrona agora o burocrata gestor, especialista na arte dos editais e na das boas relações.
    A nossa sorte aqui em terra brasileira é que ainda restam alguns velhos Abujamras contra a caretice moderninha.

    (programa Provocações entrevista o artista plástico mexicano Felipe Ehrenberg)
    bloco 1 http://www.youtube.com/watch?v=xdEDMWS8188
    bloco 2 http://www.youtube.com/watch?v=v5Rmfm9EX4w
    bloco 3 http://www.youtube.com/watch?v=mZ_VYMWBoSk

    um abraço!

  2. Jovem,

    no que concerne à arte contemporânea existe uma identificação muito forte entre a obra, o autor e a arte. Claro que o objecto artístico se libertou (como aconteceu sempre) mas repare numa coisa. O que passou a definir a arte de Warhol em diante foi a aleatoriedade e o relativismo na definição da arte. Ou seja, tudo é arte desde que o autor assim o considere. (Aqui não me refiro tanto aos circuitos de legitimidade e de canonização mas mais ao que os indivíduos percepcionam como seu, como a sua arte). Se isto for verdade, então a passagem do que é a concepção individual da arte para o plano mais amplo da legitimação/canonização passa pela vinculação entre a marca individual do artista e a possibilidade que essa tem de ser apreciada no actual campo artístico mais vasto dos seus pares, das galerias, curadores, especialistas, etc. Você pode responder que, de certa forma, isto sempre aconteceu. E nalguma medida isto parece estar correcto. A novidade está no que você mencionou “por outro lado”. Isto é, a criação do artista-empresário do estilo Jeff Koons.
    Isto é possível por duas grandes ordens de razões. Primeiro, a legitimação e difusão das obras de arte num tempo em que as possibilidades de expansão da pintura se colapsaram depende também do mercado empresarial. Por exemplo, alguns dos mais relevantes prémios de artes plásticas nos EUA e no Reino Unido dependem de patrocínios de grandes empresas (BMW, Philip Morris, etc.). Isso significa que os tecnocratas das grandes transnacionais têm um impacto relevante (apesar de não ser único nem unidimensional) na definição da definição da arte hoje divulgada: tanto no plano dos prémios e na gestão de galerias, como no plano da construção de colecções de arte pelas empresas e pelos tecnocratas tomados individualmente.
    Segundo, se a construção de novas formas e novos arranjos formais dentro da tela se foram esgotando e se a dimensão conceptual/visual ganhou preponderância sobre o formal em grande parte das artes plásticas dos últimos 40 anos, se portanto a arte é assim muito mais do domínio do conceptual do que do formal (o conceito é sempre uma forma e vice-versa mas não vou entrar em detalhes neste momento), então a ideação do artista expressa-se também numa certa correspondência entre formas conceptuais artísticas e formas conceptuais para-económicas. Isto significa que, em determinados casos, a arte, sem destruir o seu centro de produção simbólico-formal, pode contribuir fortemente para fornecer linguagens passíveis de ampliar novos ramos de negócios e de produtos. O exemplo da apropriação do minimalismo (ou de certas variantes do minimalismo) pelo design e pelas empresas de mobiliário, automóvel, software, etc. é um dos mais presentes.

    Só uma nota breve. Nada do que eu disse acima tem um carácter de atribuir essa conexão a toda a arte actualmente produzida. E nem que toda ou até maioritariamente ela seja produzida directamente para universos empresariais. Mas que muitos vectores da arte contemporânea têm sido aproveitados economicamente disso não tenho dúvidas.

    Abraço

  3. Algumas considerações a propósito dos dois últimos comentários, embora não forçosamente em resposta directa.

    Se a obra de arte não se autonomizasse não existia arte. Em primeiro lugar, estão inteiramente equivocados aqueles — e são a esmagadora maioria — que pretendem explicar uma obra de arte pelos problemas ou traumas do autor. Quaisquer que sejam os mecanismos psíquicos que a suscitaram, uma obra vale como obra porque ultrapassa todo o confinamento à sua problemática originária. Se for verdade que Flaubert disse que Madame Bovary era ele, se fosse só ele não haveria romance nem hoje o leríamos. Para empregar um exemplo extremo, as telas de Bacon são obras de arte porque todos nós podemos reflectir-nos nelas, senão não ultrapassariam o desespero do autor e não interessariam mais ninguém. Em segundo lugar, está igualmente equivocado — e refiro-me aqui às análises estéticas dos marxistas, na sequência de Plekhanov e de Lukács — quem limita uma obra à expressão da época em que foi criada, aliás, da época que a criou. Se fosse só isto, nós, de uma época diferente, não poderíamos reflectir nela as nossas preocupações e os nossos anseios.

    O mistério da obra de arte consiste no facto de ela ser um triplo espelho, reflectindo o autor, a época e aquele que a vê, lê ou ouve. Por isso uma obra de arte, a partir do momento em que é criada, foge ao autor. No espaço criado por essa obrigatória distanciação introduzem-se os processos de apropriação e de distribuição vigentes em cada sociedade. Hoje, são os processos capitalistas. Mas este é um efeito e não uma causa. A causa é o facto estético fundamental, o triplo espelho.

    Outra questão é que costuma remeter-se a Marcel Duchamp e aos objets trouvés a noção de que é arte tudo aquilo que o artista considerar arte. Warhol estendeu essa noção à produção de massas e aos novos meios de comunicação, aliás, por isso mesmo se integrou no movimento da Pop Art e fez com que o tema transitasse para a nossa época.

    Quanto ao aproveitamento do minimalismo pela produção industrial, acho que se passou ali o mesmo que ocorre em todas as lutas sociais. O funcionalismo nasceu com uma dupla perspectiva. Por um lado, nasceu como uma das correntes do produtivismo industrial, sem outro horizonte do que o capitalismo. A data inaugural mais marcante desta trajectória é a exposição industrial de Londres em 1851, com o Palácio de Cristal de Joseph Paxton. A Werkbund inaugurou uma nova etapa nesta corrente. Paralelamente, no entanto, a criação da Bauhaus abriu perspectivas diferentes, como as abriram, mais radicalmente ainda, os Vkhutemas e em geral a Proletkult nos primeiros anos da Rússia Soviética. Entre o austríaco Loos, numa ponta, e o russo Bogdanov, na outra, ia todo um mundo. Afinal, o funcionalismo contribui para criar uma nova civilização, o que talvez seja ainda mais poderoso e mais básico — ou mais amplo — do que um modo de produção. Só como nota, mas que não é um detalhe, eu entendo a crítica à ecologia como uma luta em defesa desta nova civilização de que o funcionalismo constitui o eixo. Por isso a crítica à ecologia é para mim não só uma preocupação como a preocupação central.

    Quanto à mercantilização da obra, haveria muito a dizer, quanto mais não seja porque os artistas vivem de alguma coisa e portanto têm de arranjar dinheiro com as obras. O problema começa quando as obras são feitas desde início para ganhar dinheiro. Outro dia li declarações do pintor chinês Yue Minjun, um figurativo contemporâneo, que representa todos os seus personagens a rir, e ele explicava que se deixasse de pintar assim os seus quadro perderiam o valor, porque deixariam de ser reconhecidos imediatamente. E quem iria gastar todo aquele dinheiro a comprar uma obra que as visitas lá de casa não reconhecessem de imediato como sendo de um pintor chinês famoso e caro? Deste modo a obra converte-se em logotipo, a imaginação deixa de funcionar plenamente, o mistério do triplo espelho deixa de se exercer e, afinal, a obra deixa de ser arte. É o que se passa com boa parte da arte contemporânea, mas passou-se também, embora em formas um pouco diferentes, noutras épocas em que o capitalismo não existia.

    Para quem estiver interessado nos mecanismos económicos da arte contemporânea recomendo Donald Thompson, Lo Squalo da 12 Milioni di Dollari. La Bizzarra e Sorprendente Economia dell’Arte Contemporanea, Milão: Mondadori, 2009. Comprei na tradução italiana, mas o original é em inglês e tem a vantagem de o autor ser um economista profissional muito interessado pela arte contemporânea. É um livro fascinante.

    Mas acerca disto, antes de mais e acima de tudo, aconselho-vos a verem o único filme genial realizado nos últimos quarenta anos. Os últimos filmes geniais haviam sido Pierrot le Fou, de Godard (1965), Zabriskie Point, de Antonioni (1970) e Taxi Driver, de Scorsese (1976). Nas quatro décadas seguintes houve filmes bons e alguns muito bons, mas nenhum genial. Até que no ano passado apareceu um filme genial. E é genial porque emprega todas as potencialidades do cinema para fazer cinema e não outra coisa, e porque toma a superficialidade quotidiana como espelho para reflectir as inquietações mais profundas dos seres humanos. Limitando-me agora ao que diz respeito ao artigo do João Valente Aguiar e a estes comentários, esse filme apresenta uma crítica impiedosa à mercantilização da arte conceptual e da arte gestual, aliás, à mercantilização de tudo. Trata-se do filme realizado em 2013 por Paolo Sorrentino, La Grande Bellezza.

  4. Talvez seja uma leitura um pouco impregnada, quando me refiro à separação entre o objeto arte e o sujeito artista. Na tradição ocidental as artes e oficios representam a passagem do inóspito para a integração da natureza ao espaço humano: arte é alterar o mundo pelas mãos, ouvidos, olhos e boca humanas. Homero, Zeuxis, Michelangelo, Wagner. Nada de romantismo, apenas o reconhecimento de que a arte é feita por homens e para os homens. No filme que eu acho uma delícia, “F for Fake”, de Orson Wells, há uma digressão a respeito de uma catedral gótica: um trabalho humano de uma tal solidez e permanência física no mundo. Na catedral em questão no entanto não havia qualquer tipo de assinatura. Não seria também esse um momento em que o sujeito artista deixou de ter relevância, estando a arte dedicada inteiramente à glória de Deus? A entrevista com este Felipe mexicano me parece ser elucidativa nesse aspecto: entre outros momentos reveladores, ele comenta, não sem orgulho e com um tom de desdém, que não faz parte do “mercado da arte”, não produz objetos para serem vendidos. Oras, que visão mais primária e fetichizante de mercado! É do nível de um Fora do Eixo, pois se trata expressamente de enganar as pessoas fazendo-as pensar que estas práticas artísticas estão num âmbito extra-econômico (romantismo 2.0), quando na verdade o que fazem, justamente o tópico abordado por João Valente, é conseguir capturar estes conceitos e inovações estéticas para que o mercado possa habitá-los também, espalhando o fluxo de capital para tempos e espaços antes impensáveis. O truque é que fazem isso não vendendo obras, mas sim desenvolvendo “processos” e “criações” nos quais “os verdadeiros gestores criam arte”: a partir de uma ideia ele mobiliza sua equipe de auxiliares e subordinados que executarão o plano conforme as instruções. Mas não são eles os artistas, os que montaram as obras, os que realizaram o projeto. Artista é aquele que está articulado com a fonte financeira e burocrática, aquele que dá sentido poético à produção e que a organiza com seu verbo. Catedrais góticas de fumaça.

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