A valorização da espacialidade, que de certo modo pode colaborar para uma articulação transversal das lutas, ainda não possibilitou claramente um avanço substancioso nessa direção, apesar de alguns ensaios inspiradores em matéria política prefigurativa. Por Marcelo Lopes de Souza.

A primeira parte desse artigo pode ser lida aqui

Territórios dissidentes e práticas espaciais insurgentes: experimentando um novo mundo no interior do velho

Práticas espaciais nada mais são que práticas sociais (ações sociais, isto é, protagonizadas por sujeitos coletivos e inscritas em uma teia de significados e valores, sejam essas ações premeditadas ou não) cuja dimensão espacial é particularmente forte ou evidente. O espaço, longe de ser um mero palco ou receptáculo (espaço absoluto) ou um simples quadro de referência onde localizamos os eventos (espaço relativo), é uma realidade que condiciona os agentes: condiciona materialmente, por meio do substrato espacial material (materialidade da superfície terrestre, seja enquanto “primeira natureza”, seja enquanto “segunda natureza”); mas condiciona, também, por meio de fronteiras, limites, áreas de influência e territórios (projeção espacial das relações de poder) e através dos efeitos exercidos pelos símbolos e signos inscritos no espaço, ou por aquilo que a paisagem sugere, sobre os processos de socialização e criação e reprodução das significações presentes no imaginário. Práticas espaciais que expressem e viabilizem descontentamento, resistência, protesto e desejos de emancipação em face de algum tipo de opressão têm existido sempre: espaços são territorializados (conquistados, apropriados, postos sob o controle de um grupo específico), materialmente refuncionalizados ou reestruturados, dotados de novos significados para se ajustarem a novas identidades e novos propósitos e projetos; paisagens e suas representações são manipuladas; interações espaciais são desfeitas e refeitas; localizações se valorizam e desvalorizam, são abandonadas, são revalorizadas. Assim como os territórios dissidentes que, por um período maior ou menor de tempo, representam a ousadia da criação e da sociedade instituinte diante da sociedade instituída, as práticas espaciais insurgentes que geram e gerem esses territórios não são fenômenos recentes na história da humanidade. Todavia, há evidências de que a sua relevância, no contexto do repertório geral de estratégias e táticas dos movimentos e protestos sociais, aumentou e se tornou mais visível desde meados do século passado, acelerando-se essa tendência nos últimos, digamos, vinte anos. [1]

workersDesde o fim da época áurea do movimento operário, que coincide mais ou menos com a derrota durante e logo após a Revolução Russa (vitória apenas para a ideologia do “socialismo burocrático”, animado pela nova classe dos gestores) e com o esmagamento da revolução e dos conselhos operários na Alemanha que se seguiu imediatamente ao fim da Primeira Guerra Mundial, processo esse que teve como último e particularmente triste episódio a destruição da Revolução Espanhola (animada pelos anarquistas e sabotada pelos stalinistas ao longo da guerra civil) e a vitória fascista, alguns fenômenos interessantes e ambivalentes passaram a ter lugar. Se o movimento operário e a mentalidade estritamente classista (maximamente representada pelos marxistas, mas também em larga medida compartilhada pelos velhos anarquistas) patrocinaram uma absorção de todas as agendas de luta e resistência contra formas de opressão pelo movimento operário, tácita ou explicitamente levando-se a crer que os mais diversos problemas (machismo, racismo etc.) seriam superáveis mais ou menos automaticamente na esteira da superação da exploração de classe (vista como o problema central, e ao qual todos os demais estavam atrelados e subordinados), o definhamento da luta anticapitalista na esfera da produção e a burocratização e a esclerose de partidos e sindicatos operários abriram as portas para a multiplicação de agendas e movimentos sociais relativamente independentes em face das lutas dos trabalhadores enquanto tal. Lutas como o feminismo e a luta antirracista, que já vinham de longa data e tinham antecendentes, respectivamente, no movimento das suffragettes e no movimento abolicionista, aprofundaram-se e tornaram-se mais complexas a partir dos anos 1940. Passou a tomar corpo, também, uma verdadeira “reificação do urbano”: descolado da esfera da produção e convertido em arena de luta em si e por si, a mobilização popular em torno de infraestrutura, habitação e equipamentos de consumo coletivo (as “condições de reprodução da força de trabalho”), o “urbano” passou a suscitar a proliferação de organizações específicas, tais como as associações de moradores, que tinham tido nas comissões pró-melhoramentos de décadas anteriores um pálido ancestral. Em analogia com o “fetichismo da mercadoria” brilhantemente desvendado por Marx, poder-se-ia falar, a propósito do que veio ocorrendo desde os anos 1960 e 1970, em uma “fetichização dos problemas urbanos”. [2] Na esteira isso, em questão de alguns decênios, uma agenda de luta pretendidamente totalizante, puxada por um movimento social que aparentemente tudo absorvia e de tudo poderia dar conta em matéria de emancipação humana, foi sucedida por uma multiplicidade de agendas e movimentos, cada uma delas e cada um deles responsável por uma fatia da realidade e seus problemas e conflitos específicos: opressão de gênero ou racial, carência de infraestrutura e déficit habitacional, problemas ambientais, homofobia, e assim sucessivamente.

Com isso, duas leituras seriam possíveis, com base em duas tendências objetivas concomitantes. Positivamente, conflitos, opressões e agendas de luta que antes eram abafados e secundarizados (ou até negados, às vezes), puderam ter suas especificidades tematizadas e tornar-se objeto de reflexão aprofundadas; negativamente, as articulações concretas entre os diferentes tipos de opressão foram via de regra cada vez mais negligenciadas em favor de uma “especialização” que gerava compartimentos estanques ou quase estanques, daí decorrendo várias contradições sob o ângulo emancipatório, com um tipo de sensibilidade hipertrofiando-se em detrimento de outros tipos: o militante ambientalista socialmente pouco sensível e não raro até um tanto misantropo, a ativista feminista de classe média pouco ou nada atenta às particularidades da vida das trabalhadoras pobres e negras (como a sua própria empregada doméstica), militantes sindicais de esquerda machistas e homofóbicos, e por aí vai. Determinadas fraquezas, hoje evidentes como nunca, não são, todavia, completamente novas: notemos o caráter pequeno-burguês da reivindicação eleitoralista das suffragettes, pelo que foram acerbamente criticadas pela feminista anarquista Emma Goldman; e notemos, igualmente, o conteúdo nada anticapitalista e nada antiestatal da maior parte da mobilização abolicionista, antirracista e antissegregacionista. Limitações e incompletudes desse tipo, se não poderiam jamais ser vistas como virtudes, tampouco impediram alguns debates de mérito e até mesmo certos avanços civilizatórios, ao passo que a cristalização de compartimentos e alienações recíprocas, à qual assistimos e com a qual sofremos contemporaneamente, se assemelha a uma caricatura, pois constitui um pântano em que atualmente chafurdamos quase com uma espécie de orgulho corporativista, minimalista e “pós-moderno”.

neighboorhoodInteressantemente, muitas vezes houve e há, também, um deslocamento da contestação radical da fábrica para o bairro e outros espaços, quer gostemos disso ou não. Como disse Murray Bookchin em 1980: “nos Estados Unidos, as fábricas estão virtualmente mudas, enquanto que as cidades, particularmente os guetos e os subúrbios, não estão”. [3] Todavia, é claro que, muito frequentemente, o ativismo de bairro, localista, puramente reivindicativo e bastante autolimitado no que concerne à sua agenda, era uma luta de bairro (ativismo paroquial) que, por não se alçar ao patamar de uma luta a partir do bairro (um verdadeiro movimento emancipatório), [4] tinha fôlego curto e era presa fácil de clientelismo e fisiologismo. A “densidade espacial” dessas lutas derivadas da “reificação do urbano” era e é grande, pois, diferentemente do velho movimento operário, em que a identidade e a agenda de lutas eram essencialmente setoriais (por mais que a heterogeneidade espacial e a necessidade de atuação em várias escalas, evidentemente, tivesse múltiplas implicações e oferecesse várias possibilidades de instrumentalização estratégica e tática), no casos de boa parte dos “novos movimentos sociais” o acesso a recursos espaciais, a resistência contra a segregação residencial (expressão espacial do racismo, da pobreza e da desigualdade) e mesmo a formação de identidades e dinâmicas organizativas obviamente girava, direta e fortemente, em torno de questões espaciais, mais que (ou não apenas) setoriais.

Nas décadas de 1980 e 1990 parecia claro que os “novos movimentos sociais” dos dois decênios anteriores correspondiam a um modelo esgotado. Em parte, porque obtiveram êxitos limitados, porém visíveis, evidenciando-se também o seu fôlego curto e dando ensejo a que se formalizasse uma interpretação de que havia algo como “ciclos de vida” bem definidos, em que um movimento se gestava, crescia, passava a incomodar e pressionar o Estado (ou, mais raramente, o capital, diretamente) e, a partir daí, ou se saía vitorioso, ao ver suas demandas específicas e pontuais satisfeitas, ou era derrotado – em ambos os casos dissipando-se em seguida, com menos ou mais dignidade. Em parte, no entanto, porque reivindicações específicas e pontuais mal chegavam a arranhar o cerne dos problemas de base. A lógica desses ativismos (que em muitos casos nem sequer mereceriam o qualificativo de movimentos, o que costuma pressupor a capacidade de afrontar a ordem sócio-espacial instituída, e não apenas buscar vantagens e uma melhor acomodação em seu interior) se assemelhava e assemelha, em muito, à lógica de simples grupos de pressão ou de interesse, e o corporativismo – “corporativismo territorial”, no caso dos ativismos de bairro – era uma marca que não raro estava presente, dificultando a ampliação da consciência de direitos, o aprofundamento da conscientização crítica e a formação de alianças supralocais e sobretudo intertemáticas. Os ativismos de bairro (bairros formais e favelas) eram e são amiúde objeto de instrumentalização por parte de políticos profissionais e do Estado, e seu autoproclamado apartidarismo (ou mesmo “apoliticismo”), longe de dar margem ao florescimento a uma consciência radical de crítica construtiva do Estado (e do capital) e dos partidos, comumente foi uma fachada para um certo tipo de “politofobia” muito vulnerável perante interesses e agendas conservadores. [5]

Não obstante, algumas coisas relativamente novas começaram a despontar no horizonte, ainda nas décadas de 1980 e 1990, e principalmente nesta última. Três características especialmente marcantes ressaltam dos “novíssimos movimentos sociais” e formas de protesto (ou “segunda geração” dos “novos movimentos sociais”, considerando as muitas afinidades com os movimentos que despontaram nas décadas de 1960 e 1970): 1) a intensidade das maneiras como a espacialidade é salientada; 2) ao mesmo tempo, destaca-se o amplo uso de novas tecnologias de comunicação (Internet de um modo geral, redes sociais e twitter) para formar redes de ativistas e solidariedade e convocar para manifestações presenciais em espaços públicos; 3) por fim, a presença de uma forte dimensão libertária (comparável àquela de fins dos anos 1960, mas com mais capilaridade social), a qual, sem embargo, em geral não se apresenta em “estado puro”, mas sim mesclada com elementos de outras tradições teórico-discursivas e prático-políticas, notadamente a marxista.

Captura de Tela 2014-07-27 às 20.53.45Sobre o ponto 1, deve ser sublinhado que, além de ser muitas vezes adensada ou reavivada a relevância do espaço como referência identitária e organizativa (especialmente em escala “nanoterritorial” ou microlocal, mas às vezes até mesmo regional, como o demonstra o “território zapatista” em Chiapas), a importância dos processos de territorialização e refuncionalização e reestruturação espaciais, com a formação de territórios dissidentes menos ou mais duradouros, menos ou mais efêmeros (squatsokupas e ocupações, social centres críticos, Temporary Autonomous Zones, bloqueios de ruas e suas variantes locais e nacionais [cortes de ruta e piquetes, “empates” etc.], “acampadas”, e assim sucessivamente) adquire foros de estratégia privilegiada de pressão sobre o Estado e a própria opinião pública. Ademais, é no quotidiano dos territórios dissidentes que se operam processos de socialização (uma nova paideia) em espaços públicos ou não, em meio a barricadas e enfrentamentos, festas, ocupações… Também nascem ou renascem formas de ativismo supralocal e até mesmo inter ou transnacional, com a formação de redes de cooperação que costuram muitos países e até vários continentes. Além disso tudo, atividades econômicas, tanto de produção quanto consumo (“empresas recuperadas” e autogeridas pelos trabalhadores após falência, hortas e restaurantes comunitários, “clubes de troca” e moedas sociais, tudo isso nos marcos de microcircuitos econômicos alternativos) crescem e florescem, por necessidade extrema em certos casos, é certo, mas algumas vezes com base em projetos e em uma disposição fortemente críticos, e não como simples “remendo” complementar ao sistema em crise, como sói acontecer com as formas típicas e bem-comportadas de “economia solidária”. Em resumo, pode-se dizer que o evidente aumento de “densidade espacial” das lutas sociais nas últimas décadas se deve aos seguintes fatores imediatos principais: a) uma crescente importância dos “pequenos espaços” (da escala dos bairros àquela das ocupações de sem-teto e outros “nanoterritórios”) como lugares de socialização e experimentação alternativas, no contexto de uma globalização econômica e de uma pasteurização cultural que, simultaneamente, reforçam a necessidade de novos enraizamentos afetivos, novos vínculos telúricos e novos “sentimentos de lugar” (o que até pode desembocar em localismo paroquial e xenofóbico, mas não necessariamente), e colaboram para aumentar a relevância de “barricadas” e “trincheiras” simbólicas e práticas em escala microlocal (por exemplo, lutas contra remoções forçadas e gentrificação); b) uma cada vez maior importância dos espaços identitários: em vez de predominante ou exclusivamente “setorial (“trabalhador”), a identidade dos protagonistas é, amiúde, diretamente espacial (“sem-teto”, “trabalhador sem teto”, “trabalhador sem terra”, squatter, favelado…) ou, pelo menos, intimamente vinculada a esforços de instrumentalização tática e reorganização estratégica do espaço (zapatista, piquetero, indígena…); c) uma preponderância e uma nítida visibilidade, crescentes ao longo do último meio século, de agendas de luta em que a espacialidade está no centro das atenções: habitação, infraestrutura, transporte e mobilidade urbana etc. (se, no século XIX e na primeira metade do século passado, mobilizações contra a carestia dos aluguéis, por exemplo, costumavam estar associadas e não raro subordinadas à luta dos trabalhadores enquanto tal, ao longo da segunda metade do século XX o protesto e a organização em torno de um sem-número de coisas foi adquirindo uma espécie de vida própria). Esse caráter “totalizante” atribuído, na prática, a certos espaços microlocais como bairros e vizinhanças, antes relegados a um plano muito secundário como meros palcos da “reprodução da força de trabalho”, e essa dimensão que passou a ganhar a mobilização ao redor dos equipamentos de consumo coletivo – enfim, tudo isso pode, como sempre desconfiaram os marxistas (e até um marxista como o jovem Manuel Castells de La question urbaine, publicado em 1972 [6]), servir para desviar as atenções da luta por uma revolução na esfera propriamente da produção. No entanto, como piqueteros, zapatistas e outros vêm mostrando, isso não tem de ser sempre assim. Se a cidade (e o espaço social em geral) e a sua transformação não podem passar ao largo da produção, daí não se deve deduzir que “a cidade começa na fábrica”, e muito menos que o conjunto das resistências que não se vinculem diretamente à produção seja de somenos importância ou simples “diversionismos”. Os espaços sociais concretos, como referências de mobilização, organização e (re)construção de agendas, só serão um estorvo se assim permitirmos, em vez do trunfo que poderiam ser, rumo a articulações (multiescalares!) das esferas da vida e das frentes e agendas de luta. Não parece haver aí nenhuma inevitabilidade, quer para um lado, quer para o outro.

O termo nativo argentino trabajo territorial capta boa parte do espírito por trás dessa revalorização da espacialidade nas lutas sociais contemporâneas:

Na verdade, o “trabalho territorial” contém em si a sua própria definição política. Fazer trabalho territorial não significa apenas, nesse caso, fortalecer o trabalho coletivo no espaço local, mas acima de tudo atribuir a essas atividades comunitárias uma capacidade de mudança social. Primeiro, o trabalho no território é proposto como uma produção de novos valores de solidariedade que reconstituem as relações interpessoais e as dimensões existenciais do povo quebradas pelo desemprego, pela pobreza e pelas formas de autoritarismo que, de várias formas, permeiam a sociedade. Em segundo lugar, essa construção comunitária tem como objetivo a produção de uma nova sociedade, que não antagoniza diretamente com os lugares de poder instituídos para poder se impor, mas sim se projeta e autoafirma como “soberania não estatal”.[7]

O mesmo tipo de reconhecimento é deixado transparecer neste depoimento de um dirigente da central sindical argentina CTA (Central de Trabajadores de la Argentina):

Em realidade, o bairro sempre foi um espaço das organizações partidárias, e não das organizações de trabalhadores. E, digamos assim, isso abriu uma discussão importante; e, em segundo lugar, o território era o que tinha permitido que a Central tivesse e mantivesse uma presença no conflito social que não teria tido, se tivesse se restringido ao âmbito estritamente laboral. [8]

Não é à toa que Raúl Zibechi, estudioso dos movimentos argentinos da década passada e profundo conhecedor das lutas latino-americanas em geral, sentenciou que “as novas territorialidades são a característica diferencial mais importante dos movimentos sociais latinoamericanos,  e é o que lhes dá a possibilidade de reverter a derrota estratégica.” [9] Não obstante, a valorização da espacialidade, que de certo modo pode colaborar para uma articulação transversal das lutas (isto é, que não seja uma “unificação” artificial e com alguma hierarquia implícita), ainda não possibilitou claramente um avanço substancioso nessa direção, apesar de alguns ensaios inspiradores em matéria política prefigurativa; aliás, também o “movimento por uma outra globalização”, que parece ter almejado catalisar uma integração das lutas, em larga medida malogrou quanto a isso, apesar de também ter deixado lições importantes.

riotQuanto ao uso das modernas tecnologias de comunicação e informação, muito tem sido escrito sobre elas, às vezes exagerando-se a sua importância. Os zapatistas tornaram-se conhecidos por seu uso inteligente da Internet desde meados dos anos 1990, e foi isso que alavancou a possibilidade de encetarem uma “política de escalas” [10] que lhes garantiu notoriedade e lhes granjeou simpatias e até uma certa proteção maior, graças à exposição de suas demandas e denúncias perante uma opinião pública internacional. Mais de quinze anos depois, foi a vez de a “Primavera Árabe” (e, antes disso, já no Irã) demonstrar a utilidade de um uso maciço das redes sociais para convocar manifestações e protestos em espaços públicos, simbolizados pela Praça Tahrir, no Cairo – o que, de quebra, mostrou que entre as novas tecnologias de comunicação e os protestos presenciais havia e há antes uma relação de mútua complementaridade que de substituição ou exclusão de uma pela outra coisa.

Por último, a dimensão libertária constitui uma expressão de nítido renascimento do ethos e das práticas de inspiração e ânimo libertários, de modo ainda mais complexo e disseminado do que na época das revoltas estudantis de quase meio século atrás. Entretanto, as condições em que isso se dá, de maneira ainda mais clara do que já era possível perceber em 1968, não corresponde a uma simples volta ao passado e às referências de outrora, ao contrário do que gostariam de pensar alguns nostálgicos do anarquismo clássico. Por desdenharem ou simplesmente desconhecerem (ao menos em detalhe) os enfrentamentos e as animosidades entre libertários e marxistas, que tanto marcaram e envenenaram gerações passadas, os jovens ativistas de hoje acabam recorrendo a um repertório de termos/conceitos, princípios, táticas e estratégias que, embora costume pender muito mais para a tradição libertária que para a “comunista autoritária” (para lembrar a expressão de Bakunin), nem por isso deixa de ser mesclado, heterogêneo e “sincrético” (de fato, “sincretismo” é mais adequado, como descrição do fenômeno, que “síntese”, ao menos na maioria dos casos). Talvez haja ganhos nesse “hibridismo” e nessa reciclagem legados, assim como nesse enfraquecimento (que não pode ser confundido com desaparecimento) de velhos dogmatismos e sectarismos; a despeito disso, é lícito temer que se esteja a incorrer, aqui e ali, em contradições latentes ou manifestas, ou a escamotear-se certos antagonismos de fundo que, mais cedo ou mais tarde, terão de vir á tona. Seja lá como for, e goste-se disso ou não, o fato é que estamos diante de uma paisagem sociopolítica e cultural nada homogênea e nada simples de descrever e menos ainda de explicar. Dessa forma, uma “virada libertária” ou “giro libertário” é algo plausível, e que na verdade parece já estar em curso há muitos anos; [11] por outro lado, trata-se de uma “virada” ou de um “giro” complexo, marcado por um “hibridismo” essencial, e de modo algum se trata de uma “virada anarquista” ampla e puro-sangue, como alguns parecem crer e querer fazer crer.

Para arrematar (e provocar): back to the blackboard

Back do the blackboard, ou “de volta ao quadro-negro”, é a maneira como os estadunidenses com frequência falam quando querem referir-se à necessidade de aprender melhor alguma coisa. Nossa quadra da história é confusa, estonteante: não à toa, “complexidade” é uma das palavras que mais têm frequentado o discurso das ciências da sociedade. Nesses marcos, referenciais políticos bem estabelecidos, como “esquerda e direita”, são, de várias partes e com intenções as mais diversas, colocados em xeque. Por um lado, questionam-se ideias petrificadas (às vezes para aprofundar e reabrir o debate crítico, outras tantas vezes para sugerir, indigentemente, que chegamos ao “fim das ideologias” ou ao “fim da história”); por outro lado, o mais comum é que velhas ideias sejam substituídas por ideia nenhuma (ou pelo menos não à altura das antigas), sendo muito mais fácil indicar aquilo que algo supostamente não é mais (“pós-modernismo” e “pós-anarquismo” [post-anarchism] são exemplos cabais dessa sorte de anemia intelectual) que aquilo em que algo efetivamente se transformou.

Tenta-se, quase desesperadamente, caracterizar o que tipifica a “condição humana”, hoje. Assim, para exemplificar, Jürgen Habermas chamou o nosso tempo de uma época marcada por uma “nova intransparência”, [12] e o sociólogo alemão Ulrich Beck propôs chamá-la de “segunda modernidade”, a qual teria principiado na segunda metade do século passado e consistiria no quadro formado pelas características de “fragmentação” e heterogeneização do capitalismo tardio e da cultura de massas contemporânea: precarização, individualismo agonístico e exacerbado, crise do welfare state, “sociedade do risco” etc.. As descrições são, às vezes, sensíveis, e inegável é o seu quinhão de verdade; mas são incompletas, e as explicações mais ainda. Atualmente, criam-se muito mais palavras novas que novas ideias – e estas, amiúde, nem sequer são boas.

school_grid5Uma das caracterizações mais poderosas é aquela que devemos a Cornelius Castoriadis, que denominou os tempos atuais (na verdade, já desde meados do século XX) de uma “época do conformismo generalizado” (époque du conformisme généralisé).[13]O balanço feito por ele diz respeito a tendências muito profundas da vida política e cultural contemporânea, e que outros autores também tentaram aprender, recorrendo a fórmulas interessantes como “o declínio do homem público” (Richard Sennett). Seguramente o diagnóstico de Castoriadis permanece atual. Seguramente, também, sem embargo, provavelmente ele teria retocado ou complementado sua apreciação, se não tivesse morrido em 1997 e, com isso, deixado de testemunhar o grosso das transformações recentes na direção de uma nova cultura política de resistência. Ele, que já tinha percebido, no final dos anos 1960, que as revoltas estudantis constituíam uma “brecha” em meio ao “conformismo generalizado”, decerto não teria deixado escapar que, apesar das contradições e dos riscos (protofascismos e renascimento dos nacionalismos, culturalismo, neocomunitarismo conservador etc.), nossa época, se abriga um conformismo generalizado, de maneira nenhuma e cada vez menos assiste a um conformismo absoluto.

De certo modo, levar a sério a décima primeira tese sobre Feuerbach, de Marx (“Os filósofos têm, até hoje, apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, quando o que conta é transformá-lo” [14]), é hoje algo tão ou mais necessário do que ontem, pois a fixação um tanto escapista da intelectualidade “progressista” nos discursos e a negligência para com aspectos fundamentais da realidade objetiva (economia capitalista global, geopolítica, contradições e paradoxos da resistência anticapitalista etc.) em boa medida corrói o ânimo e desarma. É preciso reaprender a interpretar o mundo à nossa volta, mas isso só será possível com e pela práxis. Não obstante, isso tampouco é um álibi para qualquer voluntarismo antiteórico e antirreflexivo. A ação política emancipatória (práxis) é tão necessária à reflexão crítica profunda quanto esta é para a ação política.

Talvez por seu cunho altamente polêmico e emblemático, eu gostaria de me deter um pouco em dois assuntos, antes de concluir.

Nossa sociedade, no mundo inteiro, possui traços de patriarcado e machismo – vá lá: em alguns países e regiões bem mais, em outros bem menos. E, no mundo inteiro, o racismo se acha disseminado –  idem. Entretanto, o fator de subalternização e heteronomia mais persistente, em meio a um mundo que se vem ocidentalizando a passos largos desde meados do século passado e mesmo já desde muito antes, e em sociedades cujo imaginário gira em torno do econômico (lucro, crescimento, produtivismo) como dimensão dominante (eu não disse, preste-se atenção, que a produção, pura e simplesmente, “determina” todo o resto), consiste na exploração e na estratificação econômicas, o que nos remete, em bom português, à luta de classes. O que não quer dizer, todavia, que as lutas estritamente econômicas sejam, todo o tempo e em todos os lugares, “mais importantes”, e muito menos as únicas importantes. Como valorizar, sem subordinações apriorísticas e hierarquizações genéricas, baseadas em vieses diversos, a consideração das várias formas de opressão e de suas interligações e reforços recíprocos, bem como as várias formas de resistência e suas relações de complementaridade? Em outras palavras, como evitar resvalar para um classismo estreito e economicista, mas também como evitar escorregar para a armadilha do culturalismo “pós-moderno”, que desvincula o poder, a cultura e o simbolismo (e, assim, o machismo, o racismo…) da exploração de classe e alimenta uma rebeldia que “se esquece” da economia quando de seus esforços para “mudar o mundo”?

lego-ecologyO segundo ponto não é menos controvertido. É fácil demonstrar, com a documentação hoje disponível e facilmente acessível, que fios filosóficos e políticos unem, direta ou indiretamente, o pensamento reacionário e eugenístico dos séculos XIX e XX (incluído, aí, o nazismo) às preocupações ecológicas das últimas décadas, expressas em termos de “biocentrismo”, “preservacionismo”, culto do mito da “natureza intocada”, “ecologia profunda” (deep ecology) etc., em que a solidariedade com os (outros) animais ou, genericamente, com o “planeta” (que, para os entusiastas da “hipótese Gaia”, seria quase uma entidade viva), prepondera sobre a solidariedade dos seres humanos entre si. Porém, em que medida seria justo ou razoável tomar isso como pretexto para menosprezar, de partida, preocupações com a degradação e a proteção ambientais em geral? Será sensato permitir que a ingenuidade “alternativa” de uns (que não percebem determinados custos sociais embutidos nos modelos “ecológicos” que preconizam, ou as limitações intrínsecas das estratégias que adotam) e o conservadorismo neomalthusiano e até “ecofascista” (como diria Bookchin) de outros tantos (para os quais custos sociais pouco ou nada importam) nos induzam, por conta de um ceticismo exagerado da nossa parte, a subestimar a urgência da tarefa que reside em conceber e combater por uma matriz tecnológica e uma espacialidade muito diferentes das herdadas do capitalismo e por ele modeladas? Precisa, realmente, toda objeção ou ressalva relativamente ao moderno capitalismo e suas tecnologias e espacialidades típicas ser (ou ser interpretada como) agrarismo passadista, ruralofilia romântica ou “anarcoprimitivismo”? (Ora, não seriam a social ecology de Murray Bookchin [15] e as reflexões de Cornelius Castoriadis sobre ecologia e tecnologia [16] poderosas ilustrações de que, sim, é perfeitamente possível levantar tais objeções e ressalvas sem aceitar “danos colaterais” socialmente regressivos e conservadores?) Até que ponto, finalmente, o abuso desautoriza o uso? De um ponto de vista que valorize o “direito à cidade”, essas questões já não são desimportantes; de um ângulo que realce o direito ao planeta, então, nem se fala.

A respeito desses temas dos dois parágrafos anteriores, onde ainda parecem predominar só os fossos, que sejam construídas pontes, e pontes sólidas. É esse um esforço que terá de ser coletivo, e não individual, e em última instância prático-político, e não apenas intelectual – ou não será. E ele parece não ser nada fácil, pelo que temos visto. Mas tampouco é a quadratura do círculo.

bricksFaz-se urgentemente necessária uma nova síntese – teórica e prática, “práxica”. Ação direta e luta institucional; tática e estratégia; curto e longo prazos; agentes e estruturas/sistemas; (inter)subjetividade e objetividade; economia, política e cultura; utopia e pragmatismo; espaço e tempo; revolta e revolução; “saber local” e saber acadêmico; aprofundamento de lutas e agendas específicas e articulações transversais; combinações escalares (não só analiticamente, mas também e sobretudo politicamente: política de escalas). Uma síntese que represente uma convincente superação da “tese” da modernidade e seus desdobramentos (racionalismo, economicismo, teleologismo do mito do “progresso” e da ideologia capitalista do “desenvolvimento econômico”, produtivismo e “dominação da natureza”, cientificismo, objetivismo, ortodoxias marxista e anarquista clássica) e que, ao mesmo tempo, saiba evitar as caricaturas e os excessos da “antítese” chamada de “pós-modernismo” (culturalismo, discursivismo relativista e antiobjetivista, crítica extremada da razão e laivos irracionalistas, estetização do conflito social e conivência com a espetacularização da política e a indústria cultural). Sincretismos não são suficientes, e podem mesmo revelar-se deletérios, em algum momento. E o mesmo se pode dizer de revoltismos, descentramentos e lutas específicas que, no afã de não resvalarem para concepções antiquadas (notadamente de tipo bolchevique) de “revolução”, contentem-se com (ou jamais consigam ir além de) um trabalho de sísifo, eventualmente exitoso na escala da tática, mas que carece de fôlego e estratégia e tende a se esgotar no minimalismo lúdico-político simbolizado pela ação voluntarista e indignada dos rebeldes de cada geração (“rebeldes com data de validade”?…), deixando atrás de si, com frequência, não muito mais que uma tênue memória das derrotas e das vitórias (ambas plenas de lições). Enfim, back to the blackboard. Com humildade, sim; mas com determinação.

Notas

[1] No livro A prisão e a ágora (op.cit.), busquei apresentar e esmiuçar o pano de fundo e as condições em que os conceitos de “prática espacial insurgente” (desdobramento e especificação recontextualizados do conceito mais geral de “prática espacial”, esboçado por Henri Lefebvre quarenta anos atrás) e “território dissidente” se tornam bastante úteis para a análise das lutas sociais da atualidade. Um tratamento mais introdutório e direto desses mesmos conceitos foi oferecido, mais tarde, no meu livro Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2013 –  vide os capítulos 4 e 10).

[2] Uma discussão das ideias de “reificação do urbano” e “fetichização dos problemas urbanos” pode ser encontrada no livro A prisão e a ágoraop.cit. (vide o subcapítulo 4.2. da Parte I). O assunto já havia sido tangenciado em minha tese de doutorado, de 1993, e no livro O desafio metropolitano: Um estudo sobre a problemática sócio-espacial nas metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2000 – vide o Cap. 3 da Parte I).

[3] Vide a pág. 38 de Murray Bookchin, “Por um novo municipalismo”, em Ecologia social e outros ensaios (Rio de Janeiro, Achiamé, 2010 [1980-1982]).

[4] Desenvolvi, em uma dissertação de mestrado defendida em 1988, uma análise a propósito da diferença entre as lutas “de bairro” e “a partir do bairro”, no âmbito de uma reflexão sobre as potencialidades e limitações do ativismo de bairro; essa análise foi, muitos anos depois, retomada no livro O desafio metropolitanoop.cit.

[5] Os temas (e problemas) do “corporativismo territorial” e da “politofobia” foram examinados por mim igualmente no livro O desafio metropolitanoibidem.

[6] Nesse livro, cuja primeira edição brasileira foi publicada, sob o título A questão urbana, em 1983 pela editora Paz e Terra, do Rio de Janeiro, Castells (que no início dos anos 1980 já se havia afastado do marxismo estruturalista de sua juventude, adotando uma posição eclética) deixa claro, apesar de sua linguagem sinuosa e rebarbativa: os “movimentos sociais urbanos” podem até ser conjunturalmente importantes, mas estão fadados a ser estruturalmente secundários, já que as “contradições urbanas” são “estruturalmente secundárias” elas próprias, e a relevância desses movimentos será proporcional à intensidade com que souberem ser bons coadjuvantes do movimento operário – devidamente conduzido, este último (que seja bem entendido), pelo partido supostamente representante dos interesses da classe trabalhadora. Interessantemente, já não havia mais, no início dos anos 1970, nenhum movimento operário digno desse nome; o que havia, isso sim, eram a ideologia “eurocomunista” e as ambições político-eleitorais do PCF.

[7] Vide Gabriela Delamata, Los barrios desbordados: Las organizaciones de desocupados del Gran Buenos Aires (Buenos Aires, EUDEBA [= Série Extramuros, n.° 8], 2004), p. 48. Em espanhol, no original: “En efecto, el ‘trabajo territorial’ contiene en si mismo su propia definición política. Realizar trabajo territorial no sólo significa, en este caso, afianzar el trabajo del colectivo en el espacio local, sino por sobre todo, atribuir a esas actividades comunitarias aptitudes de cambio social. En primer lugar, el trabajo en el territorio se propone como producción de nuevos valores de solidaridad que reconstituyan los lazos interpersonales y las dimensiones existenciales de las personas resquebrajados por el desempleo, la pobreza y las formas de autoritarismo que bajo distintas modalidades calaron en la sociedad. En segundo lugar, esta construcción comunitaria apunta a la producción de una sociedad nueva, que no antagoniza directamente con los lugares del poder instituido para imponerse, sino que se proyecta y autoafirma como ‘soberanía no estatal’.”

[8] Apud ibidem, p. 43, nota 20. Em espanhol, no original: “En realidad, el barrio siempre fue un espacio de las organizaciones de los partidos y no de las organizaciones de los trabajadores. Y, digamos, esto ha abierto una discusión importante, y en segundo lugar, el territorio fue lo que permitió que la Central tuviera y mantuviera un nivel de presencia en el conflicto social que de otra manera no hubiera podido tener, si se hubiera quedado restringida al ámbito estrictamente laboral.”

[9] Vide Raúl Zibechi, Autonomías y emancipaciones: América Latina en movimiento (Lima, Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2007), p. 26. Em espanhol, no original: “[l]as nuevas territorialidades son el rasgo diferenciador más importante de los movimientos sociales latinoamericanos, y lo que les está dando la posibilidad de revertir la derrota estratégica.”.

[10] Política de escalas” (politics of scale) é a expressão, ainda não totalmente consolidada no Brasil, por meio da qual geógrafos anglo-saxônicos vêm designando “a articulação de ações e agentes operando em níveis escalares diferentes (isto é, que possuem magnitudes e alcances distintos) com a finalidade de potencializar efeitos, neutralizar ou diminuir o impacto de ações adversas ou tirar maiores vantagens de situações favoráveis; por exemplo, ampliando esferas de influência (ao expandir audiências, sensibilizar atores que sejam possíveis aliados etc.) e propiciando sinergias políticas (ao recrutar novos apoios, costurar alianças etc.).” Essa é a maneira sintética como retratei, em uma primeira aproximação, a essência do conceito, em um artigo de 2010 e, posteriormente, em meu livro Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial (Rio de janeiro, Bertrand Brasil, 2013), no qual podem ser encontrados vários pormenores teórico-conceituais sobre a temática das escalas e sua relevância científica e prático-política.

[11] Paralelamente, aliás, a um “giro espacial” (spatial turn) nas ciências sociais e humanidades, do qual se vem falando (às vezes com um certo exagero) desde a década de 1990. Pensadores como Foucault e Lefebvre, diga-se de passagem, tinham já antecipado e preparado esse “giro”, cada um a seu modo e com ênfases e interesses distintos, em vários de seus trabalhos dos anos 1960 e 1970.

[12] “Nova intransparência” é, na verdade, a tradução livre e aproximada que se difundiu no Brasil da expressão habermasiana “neue Unübersichtlichkeit”, que significa, basicamente, “nova incapacidade de se obter visões de conjunto”. Apesar da razoável aproximação de sentido daquela tradução para o português, algo da expressão alemã se perde com ela, pois não é exatamente de “intransparência” que se trata, mas sim da dificuldade para se conseguir formar juízos lúcidos em meio a uma complexidade atordoante de fatores e elementos, com tantos ilusionismos, contradições, deformações, confusões e falsas aparências. Não é à toa que a categoria da “totalidade”, usada e abusada pelos vários marxismos, é uma das ilustres baixas em uma quadra da história em que se celebra desabridamente o minimalismo, reação por certo exagerada às generalizações excessivas de outrora.

[13] Vide Cornelius Castoriadis, “L’époque du conformisme généralisé”, em Le monde morcelé – Les carrefours du labyrinthe III (Paris, Seuil, 1990).

[14] “ Die Philosophen haben die Welt nur verschieden interpretiert; es kommt drauf an, sie zu verändern.

[15] Consultem-se, por exemplo, as coletâneas Post-Scarcity Anarchism, publicada em Edimburgo e Oakland pela AK Press, 3.ª ed., em 2004 (em especial os ensaios “Ecology and Revolutionary Thought”, de 1965, “Towards a liberatory technology”, também de 1965, e “Post-Scarcity Anarchism”, de 1968), e Social Ecology and Communalism, de 2007, igualmente publicada pela AK Press (ver, sobretudo, o ensaio “What is Social Ecology?”, publicado em 1993 e revisado em 1996 e 2001). Vide, ainda, The Ecology of Freedom: The Emergence and Dissolution of Hierarchy, de 2005 (primeira edição em 1982), também publicado pela AK Press.

[16] Consulte-se, por exemplo, o ensaio “Technique”, incluído na coletânea Les carrefours du labyrinthe (Paris, Seuil, 1978); vide, também, o livro Da ecologia à autonomia, publicado em São Paulo pela editora Brasiliense, em 1981, e que consiste na transcrição de um debate travado entre Castoriadis e Daniel Cohn-Bendit (que figura como coautor) na Bélgica, no ano anterior.

Os leitores portugueses que não percebam certos termos usados no Brasil
e os leitores brasileiros que não entendam outros termos usados em Portugal
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

3 COMENTÁRIOS

  1. Tenho muitas críticas em relação à idéia de luta fora da esfera da produção. Qualquer coisa que se dê fora da produção é uma coisa que não veio a ser, isto é, que não se produz, que é como uma forma eterna platônica, uma coisa dada de uma vez para sempre – em suma é a velha reificação. Logo, toda luta que supõe defender algo fora da produção é, por esta razão, reificante – e este é o caso de todas as lutas identitárias (mulheres, negros, consumidores, nação, etnia…). Considerar tudo em sua produção foi realmente a grande sacada de Marx, em radical contraposição a marxistas e anarquistas, que se agarram a suas identidades “puro-sangue”, suas panelinhas vanguardistas e suas doutrinas.

    Assim, por exemplo, a opressão das mulheres só pode ser mesmo combatida na esfera da produção, transformando as condições de existência materiais em que as mulheres são praticamente constrangidas a se sujeitar. A opressão das mulheres jamais terminará enquanto a mulher for afirmada como uma identidade contra outra(s) identidade(s) (isso só leva ao punitivismo, ou seja, à pura irracionalidade, à adesão à violência do poder), mas apenas se elas se libertam dessa reificação, ao transformarem (junto com todo nós) suas condições de existência de modo a produzirem a si mesmas livremente, o que evidentemente envolve uma luta geral para produzir as condições de existência de uma livre associação universal na qual a individualidade livre possa se desenvolver, forever. (O proletariado é definido como aquele a quem a produção é privada – desse modo, quando ele toma a produção, dissolve todas as identidades, inclusive a dele mesmo).

  2. Humanaesfera:

    Esta segunda parte do texto, e mais diretamente o ante-antepenúltimo parágrafo, procura exatamente suscitar esse tipo de debate. No entanto, a minha posição, ao mesmo tempo em que é crítica em relação à separação entre luta de classes, de um lado, e as demais lutas, de outro, tampouco despreza as especificidades de outras lutas emancipatórias.

    Por razões ideológicas e “biográficas” (certas experiências pessoais e até conjunturas da vida que ensejam menor ou maior tolerância, informação, rabugice etc.), o debate em torno disso tem, me parece, gerado mais calor que luz, a maior parte do tempo. Críticos de figurino “pós-moderno” desferem críticas nem sempre justas ou inteligentes ao que consideram estreiteza econômica, sem perceber (e, muitas vezes, percebendo bem) que, ao minimizar a luta de classes e reservá-la a uma espécie de museu das lutas sociais, se autoconfinam em um gueto politicamente limitado e vulnerável perante o reacionarismo e posturas antipopulares; a essas críticas, aqueles que insistem em afirmar a importância fundamental da luta de classes reagem, muitas vezes, simplesmente desqualificando certas questões específicas (ou subordinando-as mecanicamente à luta de classes em sentido estrito, o que dá quase no mesmo); e assim prossegue, em meio ao que, com frequência, é um diálogo de surdos.

    Tomados em suas versões mais “didáticas” (e, por isso, caricaturais), os dois lados desse (não-)diálogo me parecem muito problemáticos. Infelizmente, em um momento em que mais se fazem necessárias certas pontes – nisso tenho insistido -, mais parece que estamos distantes de investir até mesmo em pinguelas. E mais: não faltará que haverá de ver nessa minha insistência uma certa falta de fibra – como eu estivesse, simplesmente, querendo “contemporizar”, e não, justamente, sugerindo a necessidade de (auto[s])superações variadas e simultâneas. Por isso e outras várias coisas, há muito tempo não consigo mais ser otimista. De quando em vez, porém, ainda me dou ao luxo de desabafar.

  3. COMUNIDADE HUMANA MUNDIAL [n+1]
    Devir cena do espaço: espetacularização da vida, aviltada como mera sobrevivência, em temporalidade(s) incôngrua(s).
    Devir comum do espaço, usufruto coletivo: superação (aufhebung) do ‘com-um’ paranoide & protofascista.

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