As comunidades sabem – e o afirmam em seu dia a dia – que a energia elétrica no México não é propriedade nem do governo nem dos funcionários públicos nem das empresas privadas. A luz é propriedade dos povos do México. Por Iris Cacho Niño e Antoine Libert Amico

 Leia aqui a primeira parte desse artigo.

As estratégias da Resistência Civil em Chiapas

luz_2Chiapas é o estado mexicano com a maior produção de energia hidroelétrica. O projeto hidroelétrico da Cuenca do Rio Grijalva, com suas quatro centrais (Angostura, Chicoasén, Malpaso y Peñitas), representa 45% da capacidade hidroelétrica total em operação durante dezembro de 2006 [1]. Dessa geração elétrica, em Chiapas só se consome 1%, sendo o resto interconectado nacionalmente e exportado a preço preferencial para os Estados Unidos, Belize e Guatemala. Paradoxalmente, no estado aproximadamente 275 mil pessoas não têm acesso à energia elétrica [2]. Além disso, é em Chiapas que se registram as tarifas mais caras de eletricidade para comunidades indígenas e camponesas. As cifras oficiais da Secretaria da Fazenda do estado estabelecem que em Chiapas, de mais de um milhão de usuários, 475.420 deles se encontram em resistência ao pagamento das altas tarifas energia elétrica, o que representa 40% do total da população. Quanto ao endividamento, os municípios são os maiores devedores de energia elétrica: em dezembro de 2007, a dívida total dos serviços municipais era de mais de 87 milhões de pesos, somando 112 municípios entre os 118 que conformam o estado. [3]

Muitas comunidade indígenas e camponesas de Chiapas estão há mais de quinze anos resistindo ao pagamento da energia elétrica, já que as tarifas caras atingiram cifras impossíveis para as comunidades rurais pagarem. Desde 1994 o descontentamento que já existia se generalizou em grande parte dos municípios chiapanecos. Atualmente várias dessas comunidades confluem na Rede Estatal de Resistência Civil A Voz do Nosso Coração, num processo de resistência civil organizada que se constituiu principalmente em torno da defesa da energia elétrica, um dos últimos recursos ainda públicos no México. Esse esforço organizativo aderiu politicamente à Outra Campanha, iniciativa político-organizativa surgida da Sexta Declaração da Selva Lacandona, emitida pelo Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em junho de 2005.

Ainda que as cifras oficiais calculem que o não pagamento das tarifas de energia elétrica prevaleça em 68 dos 118 municípios, isso não significa que todos esses milhares de usuários e usuários em resistência civil sejam parte de um processo organizativo. Pode supor-se que a maioria dos 427 mil usuários seja integrantes de algum processo organizativo, particularmente como bases de apoio do Exército Zapatista de Libertação Nacional. No entanto, muita gente não paga energia elétrica simplesmente porque não pode, porque não tem recursos financeiros suficientes. Não necessariamente por um questionamento estrutural produzido por uma reflexão sobre se as tarifas são justas ou não. Frente a isso, a Rede de Resistência Civil conseguiu abrir um espaço para a organização e articulação de pequenos grupos de não pagamento das tarifas elétricas que foram se conhecendo e reconhecendo no trabalho da resistência. Por mais que o que agrupava as comunidades em um primeiro momento, e muitas das outras se vincularam depois, fosse simplesmente o não pagamento das altas tarifas de energia elétrica, atualmente as comunidades em resistência se articulam em um esforço organizativo amplo que questiona a desigualdade estrutural. O cumprimento dos Acordos de San Andrés torna-se, assim, uma das principais reivindicações políticas da Rede Estatal de Resistência Civil.

luz_5Como parte de um processo organizativo para além do simples não pagamento de luz, as comunidades da Rede começaram a organizar capacitações no manejo do sistema de distribuição de energia elétrica, buscando se apropriar de um serviço para os povoados [aldeias] com o objetivo de não depender mais da Comissão Federal de Eletricidade. Os vínculos e contatos para realizar as capacitações, além de acumularem conhecimento técnico à Rede, permitiram a construção de laços concretos com outras organizações a nível regional, estadual e nacional. Assim, a capacitação técnica permitiu a consolidação de um grupo amplo, representativo de todas as regiões do estado, com o conhecimento, as ferramentas e o compromisso necessário para se estabelecerem como fornecedores comunitários de energia elétrica. Dessa forma, foram realizados trabalhos de manutenção comunitária, reconexões de energia e ampliações à rede com os recursos econômicos e o trabalho das comunidades. Essa situação traz um novo impulso ao trabalho organizativo da resistência, começando a solucionar um problema concreto e muito sentido pelas comunidades, que é a falta de energia elétrica devido aos cortes de luz, ao serviço ruim da Comissão Federal de Eletricidade e às instalações precárias que são comuns nas comunidades indígenas e camponesas. É assim que a Rede de Resistência conseguiu ganhar coesão e se fortalecer com base em um aprendizado muito concreto: as pessoas organizadas têm capacidade de solucionar seus próprios problemas sem depender das instituições do governo.

As comunidades organizadas na Rede Estadual da Resistência Civil se negam a pagar as contas de luz não somente pelos baixos preços dos seus produtos e seu constante empobrecimento, mas também porque reconhecem que é um sistema que está por trás de sua pobreza. As comunidades sabem – e o afirmam no seu dia a dia – que a energia elétrica no México não é propriedade nem do governo nem dos funcionários públicos nem das empresas privadas. A luz é propriedade dos povos do México. Assim, as comunidades reivindicam na prática as razões apresentadas pelo primeiro informe do governo de Adolfo López Mateos, que durante a nacionalização da energia elétrica no México em 1960, explicou: “os recursos naturais e suas fontes de energia básicas tem de estar a serviço da coletividade e da elevação do nível de vida do povo mexicano”. Estar “a serviço da coletividade” é despejar as comunidades indígenas de seus territórios para a construção de uma represa para produzir energia para as grandes empresas? É “elevação do nível de vida” pretender cobrar dois mil pesos para ter três tomadas e um rádio em casa?

A experiência do processo organizativo das comunidades em resistência tem sido constantemente fortalecida com a construção de relações de solidariedade e trocas com outras comunidades e organizações. Além disso, ela conta com o valioso apoio de trabalhadores solidários da Luz e Força do Centro, integrantes do Sindicato Mexicano dos Eletricistas (SME), que vem acompanhando a construção de ampliações na rede de energia elétrica e sistemas de geração alternativa de energia nas comunidades em resistência do estado de Chiapas.

sindicato-eletricistasEm vários momentos as comunidades têm tido representação em fóruns e encontros de base, compartilhando suas experiências e estratégias organizativas. Os encontros vêm traçando objetivos claros de coordenação e articulação que podem levar, a médio ou longo prazo, à configuração de um movimento de resistência nacional pela defesa da energia elétrica baseada na defesa do território. Já fomos testemunhas dos primeiros passos nesse sentido, ao ser a Rede Estadual de Resistência Civil uma das impulsionadoras e articuladoras da nascente Rede Nacional de Resistência Civil Contra as Altas Tarifas de Energia Elétrica.

O papel dos programas governamentais na luta e resistência das comunidades

O levante armado do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 1º de janeiro de 1994, representou uma mudança radical na conjuntura que teve repercussões importantes nas comunidades indígenas e camponesas de Chiapas, sejam elas bases da apoio do EZLN ou não. Frente às reivindicações de justiça, democracia e liberdade, o governo mexicano iniciou uma guerra contra as comunidades de Chiapas que segue até os dias de hoje. Essa guerra de contrainsurgência, baseada na teoria e prática militar da “guerra de baixa intensidade” contra um inimigo interno, se expressa de diferentes maneiras. A expressão mais óbvia da contrainsurgência em Chiapas é a faceta militar, com o estabelecimento de bases e bloqueios militares e policiais. No entanto, atualmente a expressão mais sentida da contrainsurgência são os programas e projetos do governo. Frente ao forçado convencimento do governo mexicano de que não iriam conseguir combater o EZLN pela via armada, devido à pressão nacional e internacional, as instituições do governo e os programas assistenciais se tornaram as armas mais fortes para deslegitimar o projeto de autonomia zapatista. O EZLN, ao declarar sua autonomia e não reconhecer um governo que não cumpre com os Acordos de Sán Andrés, se recusa a receber qualquer apoio financeiro por parte do governo. Levando isso em conta, é impossível falar de programas e apoio governamentais sem reconhecer o contexto de guerra de contrainsurgência que visa os processos comunitários autônomos.

Os programas assistenciais do governo não são mais do que migalhas do orçamento federal disfarçadas de benefícios, que pretendem definir as pessoas e as comunidades indígenas e camponesas apenas por sua condição de pobreza. Reduzi-las a sujeitos passivos e não mais atores sociais donos do seu próprio destino e desenvolvimento. São programas focados em um setor ou grupo “vulnerável”, que promovem a individualização, geram dependência, desmobilizam a população e não combatem as causas estruturais da pobreza e da desigualdade social. O objetivo principal dos programas e apoios do governo é estimular a divisão nas comunidades. Valendo-se de “manhas” ou condicionantes para a entrada dos programas, os governos federal e estadual buscam desfazer o tecido social das comunidades, e também das famílias, por meio dos programas. Além disso, são aplicados estrategicamente, aproveitando-se das comunidades e bases de apoio zapatista que se encontram em tal situação de pobreza que pode levá-las a renunciar ao EZLN, deslegitimando o projeto de autonomia. Basta observar os grandes alvoroços midiáticos oficiais quando ocorre alguma entrega de apoios ou aceitação dos programas em supostas ex-bases de apoio.

luz_6Os efeitos dos programas governamentais nas comunidades em resistência às altas tarifas de luz ficam claros nos programas “Oportunidades Energético”, “Leitores de Medidor Comunitários” e “Luz Solidária”. O programa Oportunidades, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), é um programa de apoio financeiro concedido às mulheres. É o mesmo programa de “combate à pobreza” de seis anos de Carlos Salinas de Gortari, que então se chamava “Progressa”; reciclado por Vicente Fox com o nome “Oportunidades”; e continuado por Felipe Calderón com a modalidade do “Oportunidades Energético”. A mesma política neoliberal assistencialista e individualizada, acomodada à retórica neoliberal segundo à conveniência do contexto.

O programa Oportunidades entrega 435 pesos a cada dois meses, para cada criança matriculada na educação básica. Em 24 de janeiro de 2007, Felipe Calderón anunciou o novo programa “Oportunidades Energético”, destinando 3 bilhões de pesos à sua implementação. O programa consiste em acrescentar mais 50 pesos à quantia entregada inicialmente, como um “apoio adicional” para que as famílias consigam pagar as altas contas de luz. Segundo estatísticas da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedesol), existem 5 milhões de famílias que recebem o programa que gastam em média 201 pesos em energia elétrica bimestralmente, portanto o apoio irrisório não representa mais do que 25% do total do custo de energia dessas famílias (La Jornada, 25 de janeiro de 2007) – supondo que as cifras da Sedesol estejam próximas da realidade.

Nas palavras do próprio Calderón: “Esse novo elemento energético do programa representa 25% do que as famílias beneficiadas pelo Oportunidades gastam em média hoje no consumo de energia; é 30% que se somam ao que já é recebido em apoio alimentar[4].

Na prática, o programa “Oportunidades Energético” tem funcionado como um mecanismo de pressão para o pagamento da energia elétrica. A estratégia vem sendo a de coincidir a entrega bimestral do apoio financeiro com a chegada da conta de luz nas casas. Assim, se pressionam as mulheres a apresentarem a conta de luz paga para então entregar o apoio financeiro. Frente a uma conta de luz de mais de mil pesos (e não de 201 pesos, como afirma Sedesol), o apoio de 50 pesos parece mais uma piada do que qualquer outra coisa. Isso se torna ainda mais absurdo frente ao fato de que muitas comunidades indígenas e camponesas estão há mais de dez anos resistindo ao pagamento, acumulando dívidas que a CFE contabiliza em até 40 mil pesos.

Não existindo um programa oficial que o faça, a Comissão Federal de Eletricidade promove a formação de “Leitores de Medidor Comunitarios” como mais uma estratégia de pressão pelo pagamento de luz, utilizando pessoas das próprias comunidades para tentar forçar os demais em resistência a pagarem. O programa consiste em capacitar as pessoas das comunidades na leitura dos medidores domésticos de consumo de energia. Além de registrar o consumo de energia, essas pessoas são também responsáveis por entregar as contas de luz e cobrar o pagamento correspondente. Posteriormente, entregam à CFE os rendimentos das cobranças de energia elétrica e recebem uma porcentagem dessa quantia, como se fosse um salário. Dessa forma a Comissão Federal de Eletricidade regula o salário dos “Leitores de Medidor Comunitários” pelo pagamento das contas da comunidade. Tal situação gera divisão e conflitos intracomunitários entre a resistência organizada e os leitores de medidor.

luz_7A imposição de condicionantes aos programas governamentais pelas instituições sempre foi uma prática comum no México. Nos últimos anos, essas condições tiveram como objetivo debilitar o movimento de resistência civil. Dessa maneira, as instituições do governo exigem a apresentação da conta de luz paga para a obtenção de uma série não só de programas assistenciais, mas também de serviços básicos. Por exemplo, para obter ou renovar o título de eleitor, o Instituto Federal Eleitoral está exigindo como comprovante de domicílio a última conta de luz com selo de pagamento, negando-se muitas vezes a receber qualquer outro tipo de comprovante.

A mais recente tentativa da CFE e do governo de Chiapas para provocar a divisão comunitária e debilitar o movimento de resistência civil foi o programa “Luz Solidária”, lançado pela Secretaria da Fazenda estadual com base em um acordo firmado com a CFE. Esse programa é apresentado como “o mais importante da história”, um “ato de justiça social” que demonstra a “natural sensibilidade aos que menos têm” por parte do executivo estadual [5].

Da mesma maneira como ocorreu no passado, após o governo federal anunciar um aumento nas tarifas, o governo estadual busca coordenar com a CFE uma estratégia para por fim à resistência civil do não-pagamento. Assim foi com o programa “Vida Melhor”, posto em prática após o decreto do gabinete de Fox que eliminou os subsídios às tarifas residenciais em 2002. Frente à realidade de contar com uns 350 mil usuários e usuárias em resistência naquele ano, o governo estadual de Pablo Salazar Mendiguchía se pôs a cobrir 50% da dívida acumulada, comprometendo o usuário a cobrir os outros 50% em pagamentos trienais. No entanto, isso não melhorava em nada a tarifa já estabelecida pela Secretaria da Fazenda e Crédito Público para o pagamento de luz. Os que aceitaram esse programa viram as primeiras contas chegarem mais baixas que o habitual, mas logo depois aumentaram drasticamente, tornando seu pagamento impossível e obrigando as comunidades a regressarem à resistência civil.

Com a reforma fazendária de fins de 2007, a SHCP anunciou o aumento do preço da gasolina no México, com base em previsões do preço internacional do combustível que a seguir se mostraram contrárias à realidade (recentemente, o preço a nível internacional do petróleo mexicano diminuiu a um terço do que era no início do ano). Ao mesmo tempo, a Fazenda estabeleceu custos mais “competitivos” no setor energético. Nem uma única menção aos usuários domésticos. Coincidentemente, agora que Chiapas registra mais usuários e usuárias em resistência civil, aparece o programa da “Luz Solidária”, que vem sendo denunciado pela Rede Estadual da Resistência Civil como “mais uma estratégia para acabar com a força e a unidade dos nossos povoados em luta, como foram os programas Vida Melhor e Luz Amiga[6].

luz_9O programa “Luz Solidária” propõe um subsídio do governo estadual para unificar as duas tarifas que se aplicam em todo o país: a tarifa de verão, que se aplica durante os seis meses mais quentes (de abril a setembro), e a tarifa fora do verão. Com esse subsídio, os usuários domésticos de Chiapas de baixo consumo bimestral teriam uma só tarifa durante todo o ano, evitando assim as variações na conta de energia elétrica.

Como sempre, as raízes dos problemas da população, quer dizer, cobrar excessivamente por algo que é um direito humano, foram deixadas de lado. Nos pronunciamentos públicos sobre os benefícios do programa, o governo estadual se atreve não apenas a dizer que dará às pessoas uma suposta solução aos seus problemas, mas também a explicar os motivos da indignação popular: “Atualmente existem duas tarifas, uma de verão e outra fora do verão, o que gera flutuações no pagamento do serviço pela mudança do preço e,consequentemente, mal-estar entre a população”. Dessa forma, o governo busca minimizar as causas de fundo do movimento de resistência, ao dizer que seu descontentamento se deve, basicamente, à incompreensão sobre a conta de luz. [7]

Todavia, nem o governo estadual nem a CFE quiseram fornecer informações claras sobre esse novo projeto. Os comunicados de imprensa afirmam que com esse programa se unificará a tarifa durante todo o ano, no lugar de uma tarifa de verão e outra fora do verão. Mas não dizem qual é a tarifa por Kilowatt/hora (KWh) que será aplicada. Ao mesmo tempo, as comunidades relataram que a CFE está promovendo esse programa como um “perdão” da dívida, quando o conceito de dívida não aparece de forma nenhuma em “Luz Solidária”.

Esse novo projeto aparece como uma iniciativa puramente midiática. Isso assumem os próprios deputados da LXIII Legislatura local, ao dizerem que mais importante do que reduzir as tarifas de energia elétrica, o fundamental desse programa é que “fortalecerá a confiança da sociedade no seu governo, o que é muito importante para a governabilidade em Chiapas[8].

As operações de desmantelamento das instalações elétricas

Apesar das tentativas das instituições de pressionarem o pagamento da luz, a quantidade de usuários e usuárias em resistência só aumentou nos últimos três anos. Em dezembro de 2004 eram 290.673 pessoas em resistência; em junho de 2008 a média que se relatou foi de 427.420 pessoas [9]. Frente a isso, a Comissão Federal de Eletricidade apelou para cortes massivos de energia elétrica, como uma medida de pressão e intimidação. As operações não são simples cortes de luz e sim todo um desmantelamento no qual a CFE não apenas suspende a transmissão de energia, como também destrói o cabo para impedir que as comunidades voltem a conectá-lo. Na maioria das vezes, esse cabo que a CFE destrói fora comprado e instalado pelas próprias comunidades.

CFE1Nas operações de corte de energia elétrica, a CFE nunca trabalha sozinha. Após anos de experiência com a indignação das comunidades frente ao serviço ruim e as altas tarifas, os trabalhadores da Comissão Federal de Eletricidade decidiram estar acompanhados de contingentes da polícia municipal e/ou estadual nas ações de desmantelamento. Atores importantes nessas operações, produzidos pelas divisões fomentadas pelas instituições de governo, são também os moradores das comunidades que não estão em resistência contra as altas tarifas. Dessa forma, uma operação de desmantelamento do sistema elétrico é sempre acompanhada por uma ou várias pessoas da comunidade, que vão apontando as casas das pessoas que são integrantes da Resistência Civil para realizar os cortes de luz. Essa situação gerou vários conflitos e choques nas comunidades, quando os cortes de luz são usados pelas lideranças governistas ou ligadas a partidos das comunidades para amedrontar seus opositores. Frente à grande conflituosidade social que a CFE tem representado nas comunidades, os trabalhadores pressionam as lideranças partidárias para elas mesmas solicitarem o corte da luz, com a finalidade de obter “respaldo” e “justificativa” para sua ação. As divisões comunitárias que levam à confrontação sobre o pagamento da energia elétrica foram provocadas também pela CFE, que faz as pessoas que não estão em resistência acreditarem que suas contas de luz são tão altas porque estariam pagando “a dívida acumulada” dos demais que integram a resistência civil na comunidade, o que é uma completa mentira.

Em 2008, apenas nas comunidades da Rede Estadual de Resistência Civil, ocorreu em média um corte de energia elétrica por semana. Essa situação é, sem dúvida, parte de uma estratégia de agressão constante às comunidades que se organizam à nível regional, buscando provocar um desgaste ao movimento e às suas finanças. Mas ao mesmo tempo essa situação acabou fortalecendo as comunidades, pois começaram a experimentar diversas formas de resistência e organização para assegurar o acesso a esse serviço básico, solidificando o caminho para o exercício da sua autonomia.

A participação das mulheres: a transgressão

As mulheres constituíram uma parte importante na história dos movimentos sociais no México durante boa parte de seu desenvolvimento, porém na maioria das vezes terminaram invisibilizadas. Os cargos representativos e a tomada efetiva de decisões estiveram negados a elas por muitos anos. Em muitos casos, não existem mulheres representantes porque esses cargos foram sempre “por tradição” dos homens. Muitas mulheres têm sua participação em espaços públicos e políticos limitada porque as tarefas consideradas “naturais” a elas são impostas como prioritárias da sua condição. Apesar dessa situação, as mulheres vêm pouco a pouco se incorporando às assembleias, reuniões, marchas, trabalhos. Vão exigindo presença, respondem às convocatórias, comparecem às marchas e aos encontros; porém, em muitas ocasiões, ainda com pouca participação efetiva na tomada de decisão.

luz_1Um fato a se notar é que nas operações de cortes massivos de energia elétrica, o lar toma uma importância considerável. Na maioria dos casos, os desmantelamentos ocorrem em contextos e momentos em que as mulheres se encontram sozinhas em casa, porque os maridos saíram para trabalhar na colheita. Essas situações as colocam em um ambiente de vulnerabilidade, se consideramos que as operações são violentas, empreendidas por trabalhadores da Comissão Federal de Eletricidade acompanhados por policiais municipais e estaduais. Resta dizer que as experiências conhecidas em contextos de insubordinação e com presença policial se desenrolaram muitas vezes em graves eventos violentos contra as mulheres. Os companheiros integrantes da Resistência Civil em Chiapas manifestaram certo temor frente a essas situações, já que em vários casos são as suas companheiras quem enfrentam a CFE. Aguerridas, como costumam ser não somente nessas situações, enfrentam com muita coragem e dignidade os trabalhadores que tentam arrancar delas um direito humano básico e imprescindível.

Assim, são as mulheres as que têm defendido em inúmeras ocasiões o sistema de luz comunitário das agressões da Comissão Federal de Eletricidade. Existem vários exemplos desses dignos atos de autodefesa e reivindicação de direitos ao serviço básico. Podemos mencionar uma comunidade do município de Socoltenango, composta quase inteiramente por mulheres, já que a maioria dos homens migrou para os Estados Unidos. Para repelir as agressões da CFE, as mulheres mantêm sempre ânforas cheias de água para impedir que os empregados da paraestatal possam subir nos postes para realizar os cortes massivos. Em outras comunidades, as mulheres se organizam com métodos semelhantes, à espera da presença dos trabalhadores da CFE.

Não é que os considerem seus inimigos; porém, como explica a companheira Sara López da Candelária, Campeche: nos estados onde estamos sem pagar a luz elétrica, nós infelizmente temos enfrentado os trabalhadores da CFE. Digo infelizmente porque a briga não é com eles, o problema não é com eles, nós dizemos: não é com vocês trabalhadores, é com um sistema. Mas bem, vocês estão colaborando em apoiar esse sistema, então nem como companheiros isso lhes toca[10].

Mas além disso, as altas tarifas de energia elétrica representam um ataque direto contra a economia familiar, que é na maioria das vezes responsabilidade das mulheres, sejam chefes de família ou não, que se vêem obrigadas a gastar os já por si pequenos salários para tentar cobrir as necessidades familiares.

Não é exagero mencionar que no caso da demanda penal contra integrantes da Resistência Civil de Não Pagamento da Luz Elétrica em Candelária, Campeche, uma das mais ativas integrantes, presente em vários fóruns sobre o tema e com uma importante trajetória política, é Sara López, que foi posta em uma clara situação de vulnerabilidade ao se encontrar dentro de um processo penal movido por uma clara linha de intimidação governamental. Esse contexto a coloca em um cenário de desgaste jurídico que tem como finalidade debilitar o trabalho organizativo e político que Sara, junto com outros companheiros e companheiras, vem trabalhando para construir há vários anos no município de Candelária, Campeche. Mas é também uma clara mensagem às companheiras ativistas, líderes e integrantes de movimentos populares e organizações sociais, que se atrevem a se insubordinar e sair do espaço doméstico. Conhecemos muitos exemplos em que as mulheres foram símbolos de resistência da resposta. As mulheres atuam e se mobilizam. Eles o sabem muito bem, como também nós sabemos muito bem que a repressão, além de sistemática, é misógina.

luz_3Concluindo

O território é muito mais do que um pedaço de terra para semear; ocupa um lugar que vai além das políticas neoliberais que pretendem convertê-lo em um elemento a mais dentro do jogo da economia da compra-e-venda. O território representa o fortalecimento das identidades, redes comunitárias e organizações internas, que garantem a sobrevivência e reprodução dos povos. Mas é também um espaço onde são representados uma série de direitos e que permite que se ative a autonomia. Com as capacitações técnicas no manejo de energia elétrica, se adquiriu um conhecimento prático muito valioso e encorajador. Ao saber que lhe pertence um serviço, este se transforma, na prática, em propriedade dos povos. A energia elétrica, além de direito humano, torna-se então uma parte do território, entendido como muito mais do que a terra; concebido como um espaço onde é representada a prática da livre determinação.

O que há por trás da resistência civil de não-pagamento da energia elétrica? É somente uma renúncia ao pagamento ou uma convicção política? Envolve um questionamento estrutural ou é simplesmente uma questão de não poder pagar?

Existem diversas formas de entender a resistência civil de não-pagamento da energia elétrica. Em algumas ocasiões as pessoas não pagam porque simplesmente não podem fazê-lo. Em outras ocasiões, as comunidades se organizam para exigir uma tarifa justa. Em outras tantas, o não-pagamento se converte em um mecanismo de pressão política. Porém, em muitas outras, vai mais além e se ergue como o exercício prático da autonomia e da livre determinação dos povos. Um questionamento ao Estado capitalista, racista, patriarcal e neocolonial que se sustenta como poderoso e com base em uma série de condições históricas, culturais e econômicas, oprime e subordina a população em geral e os povo camponeses e indígenas em particular. Então, como o estado é o partiarca, o que manda, o que garante, os povos devem sustentá-lo no poder através de, entre outras coisas, o pagamento de serviços básicos, ainda que sejam de má qualidade, ainda que sejam repartidos conforme convém e de forma discriminatória, ainda que contenham no fundo os interesses mais obscuros do sistema.

Porque os povos em resistência conhecem perfeitamente o funcionamento do sistema; o conhecem porque vivem seus efeitos todos os dias: “se nós seguimos acreditando em um governo que está a serviço do capital, estamos perdendo tempo. Como vou pagar à CFE se esse dinheiro é para financiar as grandes empresas privadas?[11]

Falamos então de um movimento real de insubordinação contra o Estado. Um Estado que exige o pagamento como se fosse legítimo e privatiza os direitos humanos elementares. Frente a um descontentamento que se generaliza, que se articula e que começa a abrir espaços claros de empoderamento e organização, ao Estado não sobra mais do que utilizar a sua única arma: a criminalização da luta social. Os movimentos de resistência civil contra o pagamento das altas tarifas de energia elétrica já começaram a vivê-la. A denúncia penal contra os companheiros e companheiras de Campeche é apenas um dos exemplos.

Notas

[1] Comisión Federal de Electricidad, Programa de Obras e Inversiones del Sector Eléctrico 2008-2017.
[2] Gobierno del Estado de Chiapas, Plan de Desarrollo Chiapas Solidario 2007-2012.
[3] Expreso de Chiapas, 22/10/2008.
[4] Notimex, 24 de janeiro de 2007.
[5] Coordinación de Comunicación Social, Gobierno Estatal, «Aporta gobierno estatal 280 millones para subsidiar la luz de los chiapanecos», 19 de outubro de 2008. Em: <http://www.cosoco.chiapas.gob.mx>.
[6] Denuncia pública de la Red Estatal de la Resistencia Civil, 11/10/2008.
[7] Coordinación de Comunicación Social, Gobierno Estatal, «Aporta gobierno estatal 280 millones para subsidiar la luz de los chiapanecos», 19 de outubro de 2008. Em: <http://www.cosoco.chiapas.gob.mx>.
[8] Cuarto Poder, 21/10/2008.
[9] Expreso de Chiapas, 22/10/2008.
[10] Participação de Sara López no Encontro Popular “Água, Energia e Alternativas Energéticas”, ocorrido de 6 a 8 de novembro de 1008 em Aguacaliente, Cacahuatepec, Guerrero.
[11] Depoimento de um companheiro de Campeche no Encontro Popular “Água, Energia e Alternativas Energéticas”.

Sobre este artigo
Este artigo foi originalmente publicado em espanhol no CETRI em dezembro de 2008, e agora traduzido pelo Passa Palavra a partir da sugestão deixada por um leitor em comentário no texto sobre o movimento por água e luz de Guiné-Bissau. A tradução da parte 1 pode ser lida aqui.

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