Por Passa Palavra

A empresa de ônibus ABC iniciou suas atividades em 2001 na cidade de Colônia do Sacramento, no Uruguai, operando uma linha entre o centro histórico e o bairro Real San Carlos. Porém, em meio ao contexto regional de crise econômica, seu proprietário acumulou dívidas que não conseguiria pagar e se viu, no mesmo ano, prestes a abandonar o serviço.

Mas, se o cenário era de recessão, era também de luta: na outra margem do Rio da Prata, operários argentinos recuperavam as fábricas abandonadas pelos patrões e retomavam a produção sob controle coletivo. Os rodoviários da ABC não fizeram diferente: diante da iminência de perderem seus empregos, iniciaram suas assembleias para discutir a proposta de assumir a empresa. A mobilização culminou em setembro daquele ano, quando, em negociação no Ministério do Trabalho, o patrão cedeu aos trabalhadores os três veículos e as demais instalações até 2007.

Surgia aí uma das primeiras empresas recuperadas do país: a ABC Cooperativa, sob “Gestão Operária”.

As assembleias foram mantidas: semanalmente, aos sábados, todos os trabalhadores se reúnem para deliberar coletivamente sobre os rumos da empresa. Desde os menores aspectos, como o horário de almoço, até a gestão dos fundos – quanto do dinheiro arrecadado nas passagens vai ser direcionado aos salários, quanto à manutenção dos veículos, etc. Eleitos por voto, os cargos da presidência e secretarias da cooperativa podem ser destituídos pela decisão de qualquer assembleia. Com isso, a ABC se distingue das demais cooperativas de transporte do Uruguai, em geral geridas por um conselho diretor que se reúne não mais que uma vez por ano com os empregados para apenas informar sobre a situação da empresa.

Contra todos os prognósticos, a ABC voltou a operar sob controle operário e superou as dívidas deixadas pelo patrão falido com a Prefeitura e o Banco da Previdência Social. Mais do que isso, aumentou os salários acima da média nacional e ampliou os postos de trabalho – de inicialmente 9, no ano de 2013 eram já 15.

Não existindo um sindicato de rodoviários em Colônia, os trabalhadores da ABC buscaram solidariedade da UNOTT (União Nacional dos Operários de Transporte) e das cooperativas de ônibus de Montevidéu, com as quais conseguiram financiar a compra de novos veículos por um preço mais barato. Essa articulação chegaria ao fim em 2008, quando a ABC foi expulsa da PIT-CNT por criticar a política governista assumida pela central sindical.

Outro esforço da cooperativa foi de estabelecer uma rotatividade de funções – manutenção, direção, cobrança – em seu interior. Além disso, a ABC criou também uma escola para motoristas de ônibus inexperientes, na qual se formam novos trabalhadores para a própria cooperativa e para empresas de ônibus em geral.

Contrapondo-se à tendência geral das empresas de ônibus que demitiram os cobradores e deram dupla-função aos motoristas, a ABC manteve dois trabalhadores em cada ônibus. Não só por recusar engrossar o exército de desempregados, mas por entender que a existência de um segundo trabalhador no ônibus – disponível a orientar os passageiros, enquanto o motorista se concentra em dirigir – é fundamental para prestar um serviço de qualidade à população.

Em 2006, a ABC criou também um centro cultural num bairro de periferia, onde desde 2010 transmitem uma rádio comunitária, a Iskra 102.9 FM, que pode ser sintonizada em um raio de 20 km.

Se em um primeiro momento o embate dos trabalhadores da ABC foi com o antigo proprietário, após 2001 a gestão operária passou a enfrentar uma batalha com as demais empresas da cidade. Defendendo a implementação de uma “tarifa popular”, a ABC se opôs sistematicamente a todos os aumentos no preço da passagem, por entender que prejudicariam a população de Colônia. Como a aprovação de um reajuste depende da decisão consensual de todas as partes (a prefeitura, que regula o sistema, e as empresas), há anos a ABC barra qualquer possibilidade de aumento.

Isso causou prejuízos à outra empresa, COTUC, que operava há 30 anos na cidade e mantinha relações íntimas com a prefeitura. Quebrada, a COTUC se renovou na nova empresa Sol Antigua S/A. Esta passou a operar três linhas, enquanto a ABC permaneceu operando apenas a do bairro Real San Carlos – e, toda vez que tentou ampliar seus serviços, foi impedida pelo governo.

Em 2009, com apoio do BanDes – o Banco de Desenvolvimento da Venezuela –, a ABC Cooperativa comprou um veículo novo, 0 km, e se apresentou sozinha para a licitação da linha do bairro El General. Na véspera do encerramento do prazo, a Sol Antigua se inscreveu usando, de fachada, um nome diferente: SA S/A. Ao contrário da ABC, que havia investido em novas instalações para oferecer o novo serviço, a SA S/A não apresentou nada, mas mesmo assim ganhou a linha. Desde então, a ABC denuncia o “amiguismo” e o favorecimento ilícito do governo à Sol Antigua, e reivindica a operação linha de El General.

A mesma situação se repetiu em 2012, quando a ABC Cooperativa se apresentou sozinha para a concorrência do transporte na cidade de Carmelo, na província de Colônia, a 80 km da capital. Apesar de ter sido a única empresa a se apresentar, foi recusada.

Com seus sucessos e dificuldades, a experiência de mais de uma década da ABC Cooperativa sob gestão dos seus trabalhadores lança luz a um horizonte possível à luta dos movimentos sociais de transporte no Brasil. Embora já em sua Carta de Princípios o Movimento Passe Livre levantasse como perspectiva estratégica a luta “pela expropriação do transporte coletivo, retirando-o da iniciativa privada, sem indenização, colocando-o sob o controle dos trabalhadores e da população”, de fato essa proposta esteve distante por muito tempo. A vivência massiva de decisão da população sobre o sistema de transporte com a derrubada dos aumentos na tarifa em junho de 2013 deu outra dimensão à questão para os movimentos daqui. Lentamente, ela vai ganhando concretude, como os recentes experimentos de organização temporária de linhas autônomas, como fizeram os moradores do Marsilac; e, principalmente, com o desenvolvimento das formas coletivas de lutas dos trabalhadores rodoviários, que atingiram dimensões inéditas com a onda de greves em todo país em 2014. Nesse sentido, o contato dos movimentos do Brasil com a experiência da ABC e as possibilidades de intercâmbios são muito importantes.

Fontes

A ABC Cooperativa possui dois blogs próprios na internet: um criado em 2009 para denunciar a licitação da linha de El General (http://abc-coop-gestionobrera.blogspot.com.br/) e outro de sua rádio comunitária (http://laiskraradio1029.blogspot.com.br/), porém ambos não são atualizados há anos.
La história de la ABC Cooperativa – Control Obrero. Revista Bus America, janeiro de 2013. http://revista.bus-america.com/Notas/ABC%20Coop%20-%20Control%20Obrero.htm
Entrevista a los obreros de la cooperativa de transportes ABC Gestión Obrera de Colonia de Sacramento (Uruguay). Corriente El Militante, 4 de março de 2009. http://argentina.elmilitante.org/amrica-latina-othermenu-42/uruguay-othermenu-50/4088-entrevista-a-los-obreros-de-la-cooperativa-de-transportes-abc-coop-gestin-obrera-de-colonia-de-sacramento-uruguay.html
Nasce la primera rádio de una empresa recuperada por sus trabajadores. Gonzales (independiente de la prensa), 20 de janeiro de 2010. http://gonzalezmensuario.blogspot.com.br/2010/01/nace-la-primera-radio-de-una-empresa.html
Luís Rivas, ABC Coop: “En estas condiciones, no entramos a El General”. El Ecodigital. http://www.elecodigital.com.uy/index.php/sociales/2737-luis-rivas-abc-coop-en-estas-condiciones-no-entramos-a-el-general
Línea de ómnibus urbana: la empresa coloniense ABC pretende desembarcar en Carmelo. El Município Digital, 11 de março de 2012. http://elmunicipiodigital.com/noticia/4031-linea-de-omnibus-en-la-ciudad-la-empresa-coloniense-abc-pretende-desembarcar-en-carmelo
“En la Unidad Popular encontramos una organización política que se enfrenta al capital financiero y a la ingerencia de las multinacionales”. Colônia CX36, 28 de maio de 2014. http://www.radio36.com.uy/entrevistas/2014/05/28/rivas.html

31 COMENTÁRIOS

  1. Coincidência, a crítica abaixo foi publicada recentemente em http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/09/breve-critica-ideia-de-economia.html :

    “Abaixo, uma breve crítica à ideia de economia paralela anticapitalista (economia solidária, parecon, bancos proudhonianos, autogestão das empresas, cooperativismo, dinheiro alternativo, rede de escambos, comunidades hippies, socialismo de impressoras 3D, além dos estatismos, como a URSS e Cuba):

    Uma rede produtiva anticapitalista paralela terá que trocar (matérias primas, por exemplo) com a outra rede, a capitalista, e concorrer com ela. Para não falir, ela terá que impor internamente métodos de coação ao trabalho equivalentes aos da rede capitalista, pois só com essa equivalência (=valor de troca) a troca é possível. Por outro lado, se não quiser trocar com a rede capitalista, se isolando, terá que coagir os participantes a se conter, se reprimir e se sujeitar à um regramento paranóico (como um novo “feudalismo” nacionalista, ou um novo “despotismo asiático”) que certamente reestabelecerá uma sociedade de classes.

    Daí que não apoiamos nenhuma tentativa de economia paralela anticapitalista, porque são fadadas a serem variedades de exploração capitalista, quando não uma reedição descarada do despotismo arcaico.

    Em contraste, defendemos outra perpectiva: que o comunismo surja subterraneamente do seio do capitalismo, rompendo a casca capitalista em escala mundial. E isso só será possível graças à ação rápida e internacional do proletariado autônomo. O proletariado luta, enquanto classe, não por se conter e se reprimir (diferente, por exemplo, da “classe média” – anticonsumista, miserabilista, micronacionalista, reacionária e punitivista) mas luta, por definição, pela expansão das capacidades humanas de pensar, desejar e agir, o que implica o comunismo: uma livre associação que ultrapassa e suprime o Estado, o trabalho, as nações, o capital e as classes.

    Basicamente, favorecemos um acúmulo de forças no cotidiano subterrâneo que é interconectado mundialmente através da rede produtiva capitalista. Os proletários mapeiam como a produção onde já estão é interconectada com as outras (como por exemplo, http://humanaesfera.blogspot.com.br/2013/03/a-logistica-e-fabrica-mundial.html) e, pela comunicação (pela internet, por exemplo), surge um conhecimento mais amplo dos nexos materiais do trabalho a que estão submetidos. Isso permite a superação da greve por uma tática de continuar a produção, mas dessa vez como produção livre (gratuita) para e pela população, suprimindo a divisão emprego/desemprego naquele momento (abolição da empresa). Começando primeiro numa cidade, a difusão dessa experiência será tão apaixonante (incontível), que rapidamente, em um ou dois dias, se difundirá pelas principais metrópoles do mundo. O mapeamento da interconexão dos fluxos e estoques da produção mundial, cada vez mais completo, já permite à população descobrir quais produções não servem para ela, desativando-as, e modificando outras. Os governos e as forças repressivas não tiveram tempo para estudar e coordenar um ataque e nem há mais condições para isso, pois a produção que sustenta essa condições está nas mãos da população. Os soldados, fraternizando, dão as armas para a população e se juntam a ela. Os que resistem tem suas condições de existências cortadas até que se rendam. Em menos de uma semana, o mundo inteiro estará sob o modo de produção associado, o comunismo (ver http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/07/propriedade-privada-escassez-e.html). Senão, quanto mais a difusão global se retarda, com os estoques acabando, mais insustentável (materialmente falando e em termos de repressão) se torna o modo de produção comunista, pois mais se é forçado – pela necessidade de trocar (com o resto do mundo ainda não transformado) para repor os estoques – a reproduzir o mesmo modo de produção capitalista, havendo o risco de o comunismo se tornar mera cobertura ideológica de uma variedade de exploração capitalista.

    Resumindo: contra o espetáculo trabalhoso e vão do ativismo, da militância, do vanguardismo e do voluntarismo (sem falar do espetáculo da concorrência entre as facções esquerda/direita do Estado), esse acontecimento é uma ocasião raríssima, uma confluência de fatores difíceis de serem reunidos, e para qual só é possível contribuir permanecendo “preguiçoso”, “sem esperança”, “epicureamente oculto”, acumulando forças no subterrâneo contra o trabalho a que somos submetidos. E nada garante que vai dar certo… e nem que vá acontecer.

    humanaesfera, setembro de 2014 “

  2. Lendo o último parágrafo do comentário anterior, fiquei em dúvida se era um texto irônico ou sério.
    A proposta é que se abra mão de toda atividade organizativa, militância, trabalho de base, à espera “preguiçosa” de uma irrupção repentina e extraordinária, em escala global, de uma ação decisiva do proletariado? Engraçado, porque a ideia de apostar no “acúmulo de forças cotidiano e subterrâneo” me pareceria ser justamente o oposto disso – o longo esforço de construir experiências de luta enraizadas no dia-a-dia, como aparentemente é o caso dessa empreitada do trabalhadores da ABC.
    Já essa espera de uma irrupção global repentina, isso sim soa como “espetáculo”…

  3. Controle operário e autogestão são duas – entre outras – maneiras distintas de manejar as relações entre capital e trabalho, numa situação de crise pré-[ou, antes, ainda não…]revolucionária.
    Na primeira, o gestor é o proprietário ou alguém designado por ele. O controle incide sobre o processo de extorsão de sobretrabalho, os fluxos de caixa, a contabilidade etc., sem imiscuir-se nas decisões do capitalista.
    Na segunda, o coletivo autogestionário examina e delibera. Sobretudo, quanto às condições de extorsão do sobretrabalho ou mais-valia, lucros, salários etc. – atuando, ele mesmo, como capitalista.
    Em ambas, o capital – como valor que se valoriza, mediante a exploração do proletariado – é soberano e déspota mais ou menos esclarecido…

  4. Sim, Caio. Exaltar o sacrifício, o esforço árduo, o trabalho, a renúncia, a espera, a dificuldade, a recompensa… é apanágio de toda e qualquer classe dominante, tanto atual quanto potencial (como as vanguardas que falam em “árduo trabalho de base”).

    Luta de classes é antes de tudo luta contra o sacrifício, contra o trabalho, contra o poder de recompensar e punir, o esteio da classe dominante.

  5. Mas humanaesfera, se você assume que a espera e a renúncia são apanágios de qualquer classe dominante, por que então propõe a renúncia ao “árduo trabalho de base” em nome da “espera preguiçosa” de uma súbita e decisiva revolução operária mundial?

    Se rejeitamos a atividade organizativa e militante em geral, de que “acúmulo de forças subterrâneo” estamos falando? Só se for, então, o inexorável acúmulo das forças produtivas…!

  6. pois é Caio,
    sempre haverão aqueles que esperam para ver a revolução “da janelinha”. Aprender a pilotar, bah, isso é coisa de autoritários.

  7. “Uma idéia nova nunca pode caminhar dentro da lei. Pouco importa se esta idéia diz respeito às mudanças políticas ou sociais, ou a qualquer outro domínio de pensamento e expressão humana – a ciência, literatura, música; na realidade, tudo aquilo que se direciona a liberdade, regozijo e à beleza, tem que se negar a caminhar dentro da lei. Como poderia ser diferente? A lei é estacionária, fixa, mecânica, ‘uma roda de biga’ que esmaga tudo pela frente, sem levar em conta a hora, lugar e condições, sem levar em conta causa e efeito, sem nunca entrar nas minúcias da alma humana.”
    — Emma Goldman

    A partir do momento que jogamos o jogo do capital, não importa qual seja nossa posição neste jogo, estaremos produzindo e reproduzindo o capital. A cooperativa ABC pode ter a mais honesta e igualitária autogestão, mas mesmo assim perpetua o antigo papel dentro do sistema de transporte, ou seja, levar o trabalhador para trabalhar. Ela se operacionaliza da mesma forma que antes, quando a gestão era totalitária, ou seja, cobrando do trabalhador pelo transporte para levá-lo ao local onde será alienado e produzirá mais valia. Onde é que está a se combater o capital? Ajudando a produzir mais capital? Estas ações se enquadram mais como revolucionárias ou reformistas?
    Talvez deixar de produzir algo para o sistema, por menor que seja, seja mais revolucionário de que produzir algo grandioso por nós mesmos mas para o sistema…

    Abraços fraternais,

    Beto.

  8. Bom dia,

    concordo com o fato de que a experiência dos trabalhadores do Uruguai está presa pelas amarras dos sistema capitalista, reproduzindo-o ao invés de destruí-lo por dentro (perceptiva utópica). O próprio texto revela os limites de uma experiência que nada contra a maré do controle do Estado que é totalizador, ou seja, reproduz a hegemonia do capital.

    Porém, ainda dentro destes limites, acredito que experiências como esta, não só dão confiança aos operários quanto a sua capacidade de gerir coletivamente o seu trabalho (princípio do trabalho associado em Marx), como também servem de auto-educação dos operários para exercer tal controle. Isso sem falar na melhoria da condição de trabalho imediata destas pessoas, avanço limitado mas essencial para a luta pela sobrevivência de cada dia dentro do sistema do capital, no qual (quase) todos nós estamos inseridos.

    Acredito sim que esta experiência é um pequeno avanço tático no sentido de uma sociedade emancipada, que, infelizmente, necessitará de um processo revolucionário violento para ser iniciada. Não estou falando de experiências realmente inúteis como os sindicatos, mas de algo que se opõe ao controle do Estado. Se os trabalhadores não se educarem para fazer o enfrentamento imediato e cotidiano contra o capital, menos chances terão de destruí-lo quando as circunstâncias forem favoráveis.

    Abraços camaradas!

  9. “Onde é que está a se combater o capital?”. A própria forma de organização dos trabalhadores na cooperativa já não indica?
    E ainda assim, se a experiência da ABC não tem nada de mais, o que sugerem nossos camaradas revolucionários de verdade? Que os trabalhadores aceitassem a falência da empresa e que fossem para a fila das agências de emprego, onde procurariam algum posto em que seria subordinado a algum patrão?
    Poderiam ao menos nos falar em que ano vem a revolução, pra ninguém perder tempo lutando à toa por enquanto.

  10. Respeito as opiniões dos demais companheiros e em nenhum momento desmereço a atitude dos trabalhadores uruguaios, ao contrário, creio que há um grande louvor, mas isso não significa que concordo com a tática usada.
    Relembro Emma Goldman: “Uma idéia nova nunca pode caminhar dentro da lei” e neste caso é o que justamente acontece “quando, em negociação no Ministério do Trabalho, o patrão cedeu aos trabalhadores os três veículos e as demais instalações até 2007”, ou seja, só foi possível a realização da cooperativa mediante anuência do estado e do patrão, mas quais as verdadeiras razões desta “permissão”? Pergunto isto não para por em dúvida o movimento trabalhista, mas para por em dúvida as intenções estatais e patronais.
    “Uma idéia nova nunca pode caminhar dentro da lei”. A luta tem que se iniciar antes da revolução, sem dúvida nenhuma e elas acontecem. Por mais que existam críticas, mais os movimentos de luta por terra e moradia são um bom exemplo de luta que se operacionaliza à reboque da lei: eles vão lá e se apossam da terra e da casa contra a lei e a autoridade, contra o mercado, e, portanto, contra o capital. Estes movimentos acabam cooptados justamente quando esquecem que “Uma idéia nova nunca pode caminhar dentro da lei”…
    Outras formas de luta são possíveis. Nos transportes, o “pula catraca” é um deles. Não queremos afinal um mundo livre de catracas? Mas a partir do momento que nós mesmos gerenciamos a catraca e cobramos a passagem, estamos indo de rumo ou contra esse ideal?

    Em relação a ser as próprias cooperativas uma forma de luta contra o capital, elas existem aos milhares e cada vez mais, só que nas mãos dos patrões, que descobriram nela uma forma de burlar as já frágeis leis trabalhistas (sempre ela, a lei…). A grande maioria dos que trabalham nelas sabem o quanto são espoliados em todos os sentidos. O mero fato de se operar de forma cooperada dentro do sistema capitalista não é, ao meu ver, uma forma de resistência e que mina as forças daquele de quem delas se alimenta, o capital…

    Abraços fraternais,
    Beto.

  11. Experiência riquíssima, inspiradora mesmo. Inegável o poder que o êxito de trabalhadores organizados proporciona. Mas apesar do sucesso não acho desejável que desta luta se faça referência para a condução das demais lutas por transporte. Me parece que a qualidade e a validade dela tenham um recorte no tempo e no espaço e que ela não dá conta das questões ampliadas sobre transporte. O Beto colocou coisas importantes e acho que poderíamos seguir levantando outras questões, transcendendo esta experiência específica e pensando globalmente.

    Por exemplo, um sistema de autogestão dentro do capitalismo supera as relações capitalistas ou apenas tira de cena a antiga e encarnada figura do capitalista? Isso ajuda ou atrapalha a clareza sobre onde reside o conflito?

    Do ponto de vista da relação entre trabalhadores e usuários (supondo que um sistema de autogestão seja formado também pelos usuários), os dois não passam de igualmente interessados a rivais? Os trabalhadores perderão o direito de se organizar como categoria e exigir aumentos salariais que compensem ou superem as perdas inflacionárias? Terão de aceitar a condição em que estão para não mais sair dela? Perderão, assim, sua forma privilegiada de tomada de consciência sobre as relações capitalistas ou lutarão contra os antigos companheiros de cooperativa e de classe caso estes considerem que o aumento não deve ser concedido pois encareceria o sistema? Isso amplia ou reduz a capacidade de unidade dela, da classe?

    Como ficariam os direitos trabalhistas anteriormente conquistados? Seguro desemprego, aposentadoria, férias etc? A quem os trabalhadores iriam se dirigir para conquistar novos direitos e ampliar os antigos? Aos demais cooperados?
    Neste sentido, me pergunto como fica nosso debate sobre o transporte como direito inalienável, irrestrito. No ABC eu sei, mas do ponto de vista de um projeto utópico esse sistema será tarifado? Ou o Estado repassará recursos? Há autogestão sem independência financeira? É preferível hoje um sistema autogestionado tarifado ou um sistema público com controle popular em alguma medida, mas ofertado a tarifa zero? Penso que a tarifa e a catraca não têm formação política, nem cor, não importa se vierem das empresas capitalistas ou dos anarquistas organizados que operam a empresa melhor do que os capitalistas ineficientes.

    Se o estado não repassar recursos e o sistema for tarifado não estamos mantendo a perversão central operada no transporte, que é o trabalhador pagar para se deslocar e vender a força de trabalho e não ter acesso ampliado ao território urbano?
    Como a cooperativa de transporte iria recolher recursos da classe beneficiada pelo transporte para custear o sistema, oferta-lo a tarifa zero, ampliar a frota e dar conta das demandas trabalhistas? Há força para isso? É desejável escolher esta via de luta e dispender o tamanho de energia que ela demandará? A mim parece não ser possível abrir mão da mediação do poder público estatal, neste momento histórico em que a revolução parece estar longe da ordem do dia, para garantirmos a existência e permanência de um transporte como direito, público de verdade, com tarifa zero, abundante e que seja custeado pelos setores que dele se beneficiam.

    Em nota, penso nas experiências de autogestão dentro do capitalismo que vi de perto, as fábricas ocupadas em Santa Catarina e a cooperativa dos trabalhadores da comuna urbana em Jandira. De um lado, se formou rapidamente uma burocracia de já ex-trabalhadores (já que o Estado não assumia a fábrica e eles assim a tocaram) em quem residia a responsabilidade de operar uma fábrica de plásticos competitiva no mercado. Não fosse competitiva, a fábrica fecharia, se perderiam as centenas de postos de trabalho. Poucos trabalhadores desejavam assumir a direção do processo (não superestimem o desejo natural de cada pessoa se tornar sujeito ativo nas relações sociais, há muitas catracas inconscientes no meio do caminho) e esta nova classe dirigente fez parecer daquela fábrica uma fábrica não tão diferente dos dias anteriores, exceto pela pressão de maior eficiência, enquanto não recebiam apoio desejado do BNDES. Em Jandira, em pouco tempo os cooperados passaram a contratar trabalhadores ainda mais precarizados para ocupar seus postos, também se transformando em patrões, por mais parecidos com trabalhadores que fossem.

    Me parece que estas não são questões morais, mas da própria dinâmica, das leis de relação trabalhistas dentro do capitalismo. Elas nos atravessam sem percebermos. Espero que não atravessem o pequeno grande salto qualitativo na vida e na consciência da classe que seria um sistema de transporte voltado para os interesses da população no presente. Esta luta por si já abre perspectivas utópicas nada insignificantes.

  12. Os ideólogos autogestionários – marxistas, anarquistas, conselhistas, autonomistas… – criticam o capitalismo em termos de gestão. Mas o capitalismo é, antes de tudo e sobretudo, um modo de produção. A crítica revolucionária do capitalismo minimiza a questão de quem gere o capital.
    Os gestores não “conduzem” a economia; são conduzidos por ela. E a economia obedece às leis objetivas da acumulação capitalista. Ou seja: quem gere está à serviço de relações de produção definidas; é um funcionário do capital.
    O capitalismo não é um modo de GESTÃO, mas um modo de PRODUÇÃO baseado em RELAÇÕES DE PRODUÇÃO. A crítica revolucionária do capitalismo focaliza o papel do capital, cujas leis objetivas são obedecidas pelo(s) gestor(es) – qualquer que seja sua ideologia – da economia.

  13. Gosto do texto como descrição de uma experiência de luta, mesmo que pequena. É necessário para expandir o horizonte das possibilidades de luta dos trabalhadores, em determinadas condições.
    Os limites, do ponto de vista dos trabalhadores, dessas formas autogestionárias dentro do capitalismo já é bastante sabido.

    Mas o que queria comentar são alguns comentários, que me deixam de queixo caído. Não vai demorar para o dia que aparecerá um revolucionário comentando por aqui que os trabalhadores não devem fazer greve ou outras formas de luta que melhorem suas condições de vida uma vez que elas não destroem o capitalismo.
    Acho que esse tipo de visão serem justamente para justificar aquele preguiçoso que fica senado esperando a revolução, que vai surgir evidentemente do nada, sem anteriores experiências de luta e de militância.

    Sobre a relação desses trabalhadores uruguaios com a tarifa: feliz que foi assim, de eles barrarem o aumento da tarifa em benefício da população. Mas é claro que nada garantiria que numa empresa gerida pelos trabalhadores, uma ilha num mundo capitalista, eles agissem dessa forma.

  14. O balance dos comentários parece indicar os dois gumes da faca: por um lado o risco de se romantizar a auto-gestão de unidades produtivas como a panaceia geral, a fórmula faltante para o destino final.
    Do outro lado, o pessimismo analítico de quem só aceita as práticas puras como expressão do avanço.

    Oras, ambas visões parecem sofrer do mesmo mal: pulam todas as etapas.
    Ou melhor, são cegas para as etapas de luta que ocorrem no processo mesmo de ocupação e auto-gestão. Claro, pois a ocupação e auto-gestão das fábricas não é algo que ocorre apenas porque alguém leu Marx. Muitas vezes esse tipo de luta pode ser impulsada por trabalhadores sem nenhum viés ideológico, que espontaneamente desejam lutar por seu posto de trabalho que lhe está sendo retirado [e isso não é uma luta “capitalista”, é a luta de alguém que precisa comer]. É justamente nesse movimento, nessa dinâmica criada, que a luta ideológica e organizativa deve ser travada, e não achando que tudo acabou no dia em que se ocupou, mesmo porque a própria auto-gestão trás inúmeras contradições, como d. bem indicou em seu comentário. Assim como do capitalismo mesmo surge a possibilidade de uma nova organização produtiva e social, das práticas produtivas e sociais capitalistas podem surgir as novas modalidades emancipatórias.

    Sobre o processo e as inúmeras contradições das fábricas auto-geridas na Argentina pós 2001:
    http://tintalimon.com.ar/descargar.php?libro=978-987-25185-8-5

    Exemplo de fábrica ocupada recentemente na Argentina e a questão “Cooperativa vs Estatização”:
    http://izquierdadiario.com.ar/Donnelley-tras-las-movilizaciones-el-juez-otorgo-la-locacion-a-la-cooperativa

  15. Autogestão ou o etapismo survivalista como enésimo&sesquiúltimo vagido do realismo político.
    Caósmico, íon xucro prolifera eclâmpsias.

  16. Seria necessário ler o projeto de “Tarifa Zero” lançado pelo MPL de São Paulo para se compreender claramente a idéia conservadora da cúpula teórica do movimento paulistano.
    De saída preservam a iniciativa privada e criam um “funtrans” abastecido de recursos vindos não se sabe de onde. Com a lacuna na definição do abastecimento deste funtrans, evidentemente que o bolso do trabalhador será atingido através de alguma engenharia financeira (evidentemente, pois o Brasil não é para amadores). O golpe provavelmente se dará através do orçamento municipal, de forma menos transparente que a passagem paga na roleta, o que significará grande perda na luta pois a informação e a transparência são vitais para o sucesso de uma mobilização – saber em quanto se está sendo explorado é fundamental.
    Aqui em Curitiba, chamamos este tipo de receita pronta de gratuísmo.
    Gostaria de entender o que a cúpula do MPL-São Paulo ganha com tanta colaboração estratégica ao cartel dos transportes. Acho que são ingênuos. A única alternativa a essa suspeita é tratar-se de um grupo limitado à promoção de eventos de protesto muito hexitosos, porém incapaz de desenvolver ou mesmo permitir uma discussão plural na seara técnico-administrativa, com alternativas convincentes que possam fazer frente à produção capitalista no setor de transporte.

  17. A questão é menos pessimismo analítico e mais de uma tentativa (grava-se bem: tentativa!) de análise da totalidade que, por mais que tentemos, foge à apreensão e compreensão individual. Somente o raciocínio e a aprendizagem coletiva é que mais próximo chega e este objetivo de apreender o total, mas, ainda assim, passível de insucesso.

    É nesse sentido que entendo que as lutas devam se dar num conjunto o maior possível. Por isso, conforme eu disse num comentário anterior, movimentos como de luta pela terra e pela moradia que vão lá e se reapossam (há uma diferença fundamental entre reapossar e reapropriar sob a ótica socialista…) daquilo que é seu, não por uma anuência do estado ou do particular, mas à reboque destes, é que a prática, que ainda não podemos qualificar como “pura” (se é que existe) se encontra ou se coloca mais em rumo à emancipação da classe trabalhadora. Saímos deste rumo à medida que vamos nos institucionalizando em conformidade com as normas e exigências do sistema. Deixamos de nos reconhecer como possuidores do mundo de fato, para nos tornarmos apenas formalmente possuidores…

    A greve é um outro fundamental e imprescindível recurso, mas para ter um efeito mais “efetivo” precisaria ser feita em conjunto, e não por segmentos da classe trabalhadora que aparentemente parecem estanques, mas só aparentemente. Muitas das vezes em que um dos seguimentos da classe trabalhadora ganha, a conta é repassada, de um jeito ou de outro, ainda que de forma diluída e imperceptível, à toda classe trabalhadora. O patrão nunca abre mão de sua razão de existir, a ampliação constante e eterna do seu capital, sem o que ele perde esta sua razão de existência.

    Abraços fraternais,

    Beto

  18. Leo Vinícius, Beto, quanto à greve, na Índia existe o Kamunist Kranti, que defende algo assim:

    “Na visão de Kamunist Kranti, os trabalhadores na Índia (e não apenas na Índia) enfrentam um conjunto de máfias/gangsteres interdependentes: a gerência da empresa, sindicatos, partidos políticos de esquerda, o estado em todos os níveis, comissões laborais e tribunais trabalhistas […]. Segundo eles, em Faridabad, milhares de trabalhadores veem todos os sindicatos, inclusive as correntes de oposição neles, e todos os partidos políticos, inclusive de esquerda, como partes de um continuum uniforme de todos aqueles gangsteres interdependentes, contra os quais eles têm de se defender, recusando-se a ser provocados em confrontos que são manipulados com antecedência. É isto que Kamunist Kranti quer dizer quando afirma que, ao contrário de há 100 anos, as greves são hoje a arma da gerência. […]. Para Kamunist Kranti, a estratégia dos sindicatos, cooperando com a direção das empresas em esquemas de redução de custos, consiste em convocar greves e confrontos, as vezes violentos, a fim de pôr em marcha um “teatro de luta”, em que o resultado é sistematicamente a derrota dos trabalhadores.” (http://home.earthlink.net/~lrgoldner/kk.html)

    “O Kamunist Kranti contrapõem à greves e às manifestações massivas a difusão de pequenas ações capazes de paralisar os ataques da direção sem que seus autores se tornem alvos vulneráveis. Como exemplo deste tipo de luta, o grupo menciona um incidente em que a gerência tinha restringido o número de idas do banheiro, e, como resposta, os trabalhadores passaram a urinar no chão até que a decisão fosse revertida. Outro exemplo é o de quando trabalhadores receberam ordens para operar máquinas perigosas sem o treinamento necessário para sua operação segura; durante a operação do maquinário, eles “acidentalmente” quebraram as máquinas, demonstrando assim que eles precisavam do treinamento adequado.”
    (http://home.earthlink.net/~lrgoldner/kk.html)

    Não acho que essa condenação da greve seja generalizável para todas as situações no mundo (porém, a condenação dos sindicatos, não há dúvidas). No entanto, parece difícil negar que, há tempos, as greves são cada vez mais impotentes (os ganhos, quando há, são quase que instantaneamente revertidos, por ex. pela inflação), e que inclusive elas podem facilmente ser tomadas por um viés fascista (por exemplo, defender empregos dos “nacionais” contra os migrantes, contra os “chineses”, “bolivianos”, ou até mesmo defender o corporatismo…). Afinal, a defesa do capital variável é ainda defesa do capital. Ademais, a maioria das greves que afetam os serviços geralmente colocam o resto do proletariado em mais apuros do que os próprios patrões. Parece acrítico falar em greve sem considerar esses contextos, que são os que predominam hoje no mundo inteiro talvez.

  19. Tomemos emprestado do Passa Palavra ( André Barata, o que falta ainda responder )o seguinte ensinamento:

    “Por isso não reconhecemos no Estado Social um «obstáculo concreto à hegemonia mercadorizadora da vida das sociedades» nem «a escolha colectiva da sociedade por organizar certos sectores da vida social, caracterizados por uma maior sensibilidade à equidade, de forma independente da lógica de oferta e procura no mercado». Um sistema de saúde público, gratuito e de qualidade não contradiz a lógica mercantil capitalista. Pelo contrário, destina-se a preservar as despesas de formação feitas pelos capitalistas na mais importante de todas as mercadorias — a força de trabalho. E o mesmo raciocínio se aplica a qualquer dos outros elementos do Estado Social” ( http://passapalavra.info/2014/10/100045 )

    “E o mesmo raciocínio se aplica aplica a qualquer dos outros elementos do Estado Social”, portanto, “um sistema de transporte público, gratuito e de qualidade (ainda que produzido e gerido pelos próprios trabalhadores*) não contradiz a lógica mercantil capitalista. Pelo contrário, destina-se a preservar as despesas de formação (e, também, de circulação*) feitas pelos capitalistas na mais importante das mercadorias – a força do trabalho. *Grifos nossos.

    Importante lembrar também Anton Pannekoek:

    “O desenvolvimento do poder dos sindicatos permite uma normalização do capitalismo, uma certa norma de exploração é universalmente aceite e estabelecida. Uma norma para os salários, que corresponda às exigências vitais mais modestas e tal que os trabalhadores, empurrados pela fome, não sejam conduzidos à revolta, é necessária para que a produção não se faça aos solavancos. Uma norma para os horários de trabalho, não esgotando de todo a vitalidade da classe operária – ainda que as reduções de horários sejam largamente compensadas pela aceleração da cadência e pela intensidade do esforço – é necessária ao capitalismo em si mesmo; é preciso ter em reserva uma classe operária utilizável pela explorarão futura. Foi a classe operária que, com as suas lutas contra a mesquinhez e estreiteza de espírito da capacidade capitalista, contribuiu para estabelecer as condições de um capitalismo normal. Sem parar, deve bater-se para preservar este precário equilíbrio. Os sindicatos são os instrumentos destas lutas, por isso preenchem uma função indispensável no capitalismo. Alguns patrões menos espertos não compreendem isto, mas os seus chefes políticos, mais avisados, sabem muito bem que os sindicatos são um elemento essencial ao capitalismo, e que, sem esta força reguladora que são os sindicatos operários, o poder capitalista não seria completo. Finalmente, se bem que produzidos pelas lutas dos operários e mantidos vivos pelos seus esforços e sacrifícios, os sindicatos tornaram-se órgãos da sociedade capitalista” ( http://guy-debord.blogspot.com.br/2009/06/anton-pannekoek-o-sindicalismo.html )

    É nesta toada que compreendo as limitações, e mesmo um distanciamento, de significativa parte das lutas dos trabalhadores. Superar estas condições passa justamente pelo reconhecimento destas limitações, concomitantemente a ações anticapitalistas, dentre as quais, por exemplo, as que humaesfera apontou. Mas ainda acredito, também, na greve geral como uma forma de boicote à produção de mercadorias e da própria mão de obra, obviamente com as devidas ressalvas feitas pelos teóricos e companheiros aqui neste debate.

    Abraços fraternais,

    Beto.

  20. Para quem quiser ler o projeto de lei elaborado pelo coletivo do MPL-SP ele está aqui: http://www.tarifazerosp.net/o-projeto-de-lei/texto/
    Me parece claro que a proposição de projetos de lei não tem como objetivo o fim do capitalismo, isso será conquistado pelo acumulo de forças obtidos pelos movimentos nas lutas sociais. Por isso fico incomodado quando se exige que o projeto “possa fazer frente perante a produção capitalista no transporte”. Um vez que acredito que ElCabong situe-se em um campo autonomista, exigir isso passa a ser ainda mais absurdo, um anarquista a acreditar que a situação juíridica dos meios de produção será alterada por meio de lei…
    Além disso, o referido comentário – apesar de pretender discutir tecnicamente – demonstra uma ignorância sobre o assunto. Não é possível a proposição, via pode legislativo municipal, da vinculação de verbas para financiamento. Se isso fosse posto no projeto ele teria um vício formal que impediria sua proposição.
    Me parece claro que o proposto pelo MPL-SP foi construir a pauta da Tarifa Zero desde abaixo, discutindo a importância da circulação pela cidade como uma forma de redistruibuição da mais-valia retirada cotidianamente no processo de trabalho e materializada nas estruturas urbanas. O projeto de lei servia, ou serve, para apontar uma ação concreta para uma outra forma de utilizar e pensar a cidade.

  21. humanaesfera,
    os dois exemplos apresentados no segundo link me parecem muito ruins: para quem combate a lógica do auto-sacrifício, mijar no próprio local de trabalho e operar maquinaria perigosa sem treinamento soa estranho. Talvez em seu contexto tenha tido lá sua efetividade, mas me pergunto se isso é mais digno ou menos digno do que parar a produção. Mas entendo que existem formas muito interessantes de se fazer uma ação que não seja a greve clássica, sendo a catraca livre um dos melhores exemplos que conheço.
    Mas como você bem disse, há que se contextualizar bem as greves e as lutas dos trabalhadores. No caso recente dos garis no Rio e em outras cidades do Brasil, por exemplo, vimos uma greve selvagem, que supostamente deixava os demais trabalhadores em apuros, mas que teve um conteúdo extremamente potente e teve apoio de praticamente toda a população.

    Agora, com relação à greve geral, eu me pergunto, Beto, o que ocorre no dia seguinte? Ou se trata basicamente de uma preparação para a tomada de poder guerrilheira?

  22. Caro Lucas, boa pergunta!

    Mas não sei te dizer qual a resposta. O João Bernardo diz “Os trabalhadores hoje lutam de uma dada maneira contra o perfil actual do capitalismo e, consoante o resultado desta luta, o capitalismo apresentará amanhã um perfil diferente, contra o qual os trabalhadores hão-de lutar de outra forma, e assim sucessivamente. Portanto, o comunismo que pudéssemos construir hoje seria forçosamente diferente daquele que poderíamos construir amanhã, e este do que poderíamos construir no dia seguinte” ( http://passapalavra.info/2014/05/93844#comments ), o que concordo em número, gênero e grau. O dia seguinte será, inexoravelmente, uma consequência do dia anterior e assim por diante, como já o é hoje, dialética.

    Hoje, acredito eu, estamos sob perspectivas de lutas que embora tenham um potencial para conscientização de classe, pouco ou nada nos encaminham para nossa emancipação. Noutras palavras, dá-se um boi, para se ganhar uma galinha… Também posso estar enganado, mas a greve geral seria dar esse boi para ganhar não sabemos exatamente o quê, muito embora saibamos o que queremos.

    Mas confesso que, talvez ingênua ou utopicamente, eu esperaria sim, que o dia seguinte fosse “basicamente uma preparação para a tomada de poder guerrilheira”…

    Abraços fraternais,
    Beto

  23. Lucas, os exemplos não são meus. A crítica ao ativismo é que a militância simplesmente não pode senão se colocar por cima da classe, só podendo desaguar nas piores coisas. Até mesmo o suposto realismo “sem objetivos” da militância, pretensamente autonomista, mostra essa exterioridade, esse jacobinismo. A pseudo-praxis do militante, a solicitação incessante a um “árduo trabalho de base”, é completamente oca e, com a repetição da solicitação, insuportável. Contra o ativismo, a única coisa a fazer hoje é, primeiro, falar tranquilamente como proletário de igual para igual com os outros proletários, e, se houver oportunidade, apresentar e debater com clareza nossas finalidades e os meios de alcancá-las e melhorá-las. Simplesmente de igual para igual, nos ônibus, no trabalho, no trem, na internet, na rua. Abertamente, como tendência comunista do proletariado contra outras tendências dele. Práticas, como greves, ou mijar no chão como no exemplo do Kamunist Kranti, ou manifestações etc (ou, o que defendemos que é superar a greve pela produção livre) etc., são as práticas da classe que são por si mesmas nossa prática. E as práticas da classe, só podemos influenciá-las debatendo-as e apresentando claramente nossas críticas, idéias, e finalidades, que podem ser mais ou menos adotadas ou não, ser difundidas pelos outros ou não. Se o chato do militante ou do ativista aparece, ele se coloca imediatamente fora do plano material, de classe, e enxerga tudo de um plano platônico, espetacular, ideológico, jacobino, missionário, auto-sacrificial, pretensamente realista. A militância se organiza, e a medida que sua organização se perpetua, pelo simples fato de se formar sobre uma base não-material (acima da classe), ela vai desembocar inevitavelmente (por razões materiais) na gangue, no bando, na máfia, no sacerdócio, quando não numa nova classe dominante.

  24. Beto
    O mesmo sítio, além do “DOSSIÊ: COMUNISMO DE CONSELHOS”, tem outros dossiês e textos avulsos interessantíssimos – inclusive, sobre autonomia operária…

  25. Creio que d. tocou em algumas questões concretas cruciais do ponto de vista econômico e trabalhista, mas, sobretudo, do ponto de vista do usuário de transportes. Como apontou Leo Vinícius, existe larga discussão sobre os limites das cooperativas e da autogestão dentro do capitalismo. A tarefa da crítica é mesmo apontar as contradições das lutas anticapitalistas, embora a própria crítica se engesse quando busca apresentar um receituário ou um regimento das “práticas puras” aos trabalhadores. Aliás, existem práticas puras?

    Já a discussão de uma cooperativa de ônibus da perspectiva dos usuários, que abarque as questões políticas e econômicas específicas do transporte urbano, é algo novo e interessante. Gostaria de contribuir com mais questões.

    Extrapolar a experiência descrita pelo artigo para um sistema “utópico” de transportes sem nenhuma mediação é mera retórica. Mas ela com certeza guarda lições úteis para um projeto mais amplo de transporte.

    Será que essa experiência Uruguai não aponta para a possibilidade de estabelecimento uma consciência de classe comum aos trabalhadores empregados no transporte e aos trabalhadores que o utilizam? Aí não seria tão fortuita a obstrução de qualquer aumento na tarifa pela ABC. Alguma coisa nesse mesmo sentido talvez tenha despontado na última greve dos metroviários de São Paulo e aparece sempre que essa categoria, em cidades como Buenos Aires, libera as catracas como forma de mobilização (seja esta uma mobilização da categoria ou outra mais ampla, como já ocorreu na Grécia).

    Uma linha autogestionada tarifada, como a que existe em Colônia do Sacramento, talvez avance pouco em direção a um transporte visto como direito ou (como prefiro sair do discurso jurídico, que tem um pé – ou os dois – na ideologia), um transporte que não seja orientado pela acumulação e que promova a reapropriação da cidade por aqueles que a constroem. Por outro lado, o quanto pode avançar nisso um sistema de transporte sem tarifa que ainda seja gerido pelo Estado?

    É preciso pensar também nos limites e contradições dessa reivindicação. Sabemos que a tarifa não é a única catraca do deslocamento urbano, mas toda estrutura do sistema de transportes, intimamente associada à organização espacial e temporal da cidade controla e reduz o movimento dos trabalhadores. Assim, sem alterações na racionalidade (capitalista) que ordena os deslocamentos na cidade (e aqui não estou falando simplesmente da organização das linhas de ônibus), será que os trabalhadores teriam mais poder sobre seus movimentos? Ou será que apenas circulariam como objetos-mercadorias (força de trabalho) de forma mais eficiente?

    Mudar a forma de remuneração das empresas ou estatizar a frota são caminhos que transferem mais poder para o Estado, mas, mais do que as empresas, hoje é o Estado o grande representante da racionalidade capitalista e segregadora que orienta o planejamento do transporte. Como garantir que essa transferência se converta em “controle público”? Rendendo-se à cooptação da gestão participativa e seus conselhos?

    Se reivindicar a tarifa zero é reivindicar uma política pública, isso não significa mais controle e racionalização da vida social? Não seria justamente quem já tem mais liberdade de movimento – ou seja, aqueles que já moram no centro e cujo tempo vale muito mais – que ganhariam ainda mais liberdade? Será que um aumento da mobilidade dos trabalhadores não conduziria diretamente a um aumento das distâncias que já o separam da “mais-valia retirada cotidianamente no processo de trabalho e materializada nas estruturas urbanas” (como disse o Legume)? Ou seja, será que com um sistema de transportes extremamente acessível e eficiente não ampliaria as margens da cidade, expulsando moradores da periferia para ainda mais longe e disponibilizando como reserva de mão-de-obra para esse centro urbano cidades satélites cada vez mais distantes?

    Por fim, será que hipermobilidade é sinônimo de apropriação da cidade? E de poder sobre sua própria vida? E, ainda, será que a “perversão central” do transporte é a tarifa ou será que ela é apenas o dispositivo monetário de uma estrutura mais complexa?

    Para mim, todas essas dúvidas colocam em evidência a centralidade do problema da gestão no debate anticapitalista sobre um outro transporte, um transporte fora da lógica da mercadoria, como o defendido pelo Movimento Passe Livre.

  26. Perguntar não ofende: daria certo no Brasil? Porque são duas realidades diferentes, carga de impostos completamente diferentes, valores completamente diferentes.
    E usam uns ônibus cuja produção foi encerrada há VINTE ANOS. Aqui vejo gente dizer que ônibus com 5 anos já esta velho, essa gente andaria em museus como esses aí?
    E se cobram dos empresários que os onibus sejam limpos modernos e seguros essas cooperativas tem que oferecer este mesmo serviço, os sindicatos e as esquerdas tem que oferecer isso. Certamente não vão oferecer e vão dar um monte de desculpas para tal. Num país como nosso cheio de encargos e com tudo caro, quem não souber trabalhar com transportes vai a falência, quem ficar com linha de pouca demanda e retorno vai quebrar a cara. Moro em santos que já teve governo de esquerda e eles conseguiram falir a empresa de transportes. A esquerda é boa para apontar os erros dos outros mas péssima para gerenciar as coisas.

  27. Abaixo, o resultado de algumas reflexões/proposições sobre o assunto greve e produção livre discutido nos comentários:

    http://humanaesfera.blogspot.com.br/2014/11/greve-e-producao-livre.html

    “Dado que:

    a) as greves nos serviços deixam mais em apuros o resto do proletariado do que os próprios patrões. Por exemplo, na saúde, nos transportes (de cargas e passageiros), supermercados, etc.

    b) isso acarreta que o resto do proletariado tende a considerar estas greves não como afirmações de sua classe, mas de interesses corporativos, pequeno-burgueses, mesquinhos. (Apenas muito indiretamente, por uma longa e tortuosa cadeia de raciocínios, alguns proletários chegam à conclusão de que os apuros são efeito colateral de uma luta que pode beneficiar a todos.)

    c) a greve, além disso, é, há cem anos, um método de luta mais do que domesticado pelos patrões e pelo Estado, através dos sindicatos. E mesmo contra os sindicatos (greves selvagens), as reivindicações das greves, se atendidas, são logo ultrapassadas, por exemplo pela inflação, e por incessantes e permanentes represálias patronais, etc.

    Frente a tudo isso, defendemos:

    1) a superação da greve pela tática da produção livre, gratuita;

    2) a abertura dos meios de produção para a população da cidade, chamando-a para decidir o que fazer e participar da produção (tornando sem significado as palavras “emprego”, “desemprego” e “empresa”). Isso, num único ato, reduz a jornada de trabalho e alivia o resto do proletariado dos apuros impostos pelos proprietários (desemprego, necessidades insatisfeitas e o terror empreendedorista);

    3) produções que se revelarem escassas serão submetidas à decisão democrática da população. Porque a escassez causa conflitos (mesquinhez, propriedade privada) que precisam ser resolvidos – por exemplo, é preciso decidir se é justo que uma produção deva atender primeiro os necessitados, ou se ela deve atender a população mediante outros critérios considerado justos (por ex., vouchers pela proporção do trabalho feito, esforço…);

    4) produções que se revelarem abundantes, serão desfrutadas à maneira comunista: “Ninguém vota; nunca a maioria e nem a minoria fazem a lei. Se esta ou aquela proposta reúne um número suficiente para executá-la, quer seja a maioria ou a minoria, então a proposta será executada, se for esta a vontade daqueles que aderem a ela.” (A Humanisfera, 1857). Com isso, supera-se, juntamente com o consumo espetacular, o próprio trabalho enquanto tal.

    Dinâmica:

    Estes pontos podem ser compreendidos como etapas condicionadas à difusão exponencial da luta. Se, ao efetuar o ponto 1, se perceber uma adesão crescente do resto proletariado à mesma tática de produção livre contra os patrões, passa-se ao 2º, 3º e 4º pontos. Simultaneamente, há a necessidade de espalhar (quebrando o “segredo industrial”) o conhecimento do modo como a produção e os fluxos materiais são interligados e interdependentes mundialmente. Com base nisso, mostra-se a necessidade de que o resto do proletariado de outras cidades e outros continentes passe a adotar a mesma tática. O proletariado se constitui como classe quando ultrapassa todas as fronteiras (nacionais e empresariais) inventadas como “fatos naturais” pelos patrões e privilegiados, numa luta internacionalista contra eles (capaz, ademais, de acabar com todas as guerras).

    Objetivo:

    A finalidade da produção livre é a solidariedade imediata do resto do proletariado, favorecendo que se adote a mesma tática por toda parte. O proletariado, ao constituir-se como classe autônoma, força, por si só, que a classe dominante e os políticos (de esquerda ou direita, é indiferente) concedam muito mais do que se pode imaginar agora. Além disso, se se tornar uma situação sem retorno, permanente e generalizada, é, por si mesmo, um novo modo de produção no qual os desejos, as necessidades e as capacidades humanas determinam, em livre associação, a produção. Um modo de produção que consiste na auto-realização e auto-satisfação dos indivíduos livremente associados sem fronteiras torna completamente obsoleto o mercado de trabalho (e, consequentemente, torna obsoleto o capitalismo, seja particular, como dos EUA, ou estatal, como Cuba). Ou seja, desaparecem as condições materiais que forçavam a população a aceitar se arrastar por salários em troca da alienação de suas capacidades – de pensar, sentir e agir – ao comando e arbítrio dos donos do dinheiro (os capitalistas: burocratas, empresários, políticos…).

    Humanaesfera, novembro de 2014″

  28. humanaesfera,
    teu pensamento tem lá sua beleza estruturalista; mas o curso da história não corrobora as teses.
    Exemplo recente foi a greve dos garis, que ganhou amplo apoio social e inspirou muitos setores da classe trabalhadora.

    Outro problema é que esse bonito contágio da alegria produtiva proletária não demora muito em ser confrontada pelos donos dos capitais, que sangram na carne para não perder o braço. Isso pudemos ver no Chile, quando os trabalhadores organizados e autogestionados buscavam aumentar ao máximo a produtividade e impedir uma crise econômica dirigida pela direita que teria por objetivo deter a marcha da organização proletária. Ou seja, essa livre-produção não se torna exponencial apenas por livre contágio, principalmente em épocas de capitais tão móveis: de fato, não devemos esquecer que os capitais são coisas, podem ser manuseadas e utilizadas. Podem ser usadas contra os trabalhadores e também a favor.
    https://www.youtube.com/watch?v=l9lmgGflBnY

  29. Capitais não são coisas, mas relações sociais (trabalho assalariado e capital). Aliás, o Chile de Allende foi a prova cabal de que os capitais não são coisas, assim como o Estado não é coisa. O capital não pode ser utilizado pelo proletariado sem que este entregue as armas que só seus inimigos podem manejar. No caso do Chile, armas até no sentido literal da palavra. A disputa entre burocratas e proprietários particulares, entre esquerda e direita, não é luta de classes, mas sua destruição pelo enquadramento na competição inter-capitalista.

    Mas concordo contigo que o mais preocupante seria a repressão. Isso só poderia ser evitado se o movimento for tão rápido e generalizado que os poderosos não terão por onde começar e nem como seus subordinados verem sentido em continuar obedecendo. Antes de tudo, deve-se aplicar a lição do Chile: não acumular o capital “de esquerda” e nem armar o Estado “de esquerda”. Capital e estado não são coisas, não são instrumentos.

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