É a maneira como a universidade produz conhecimento, a sua absorção por ferramentas de estatística e econometria, a ditadura dos medidores de impacto, a destruição da crítica nas ciências sociais enquanto atitude de distanciamento e questionamento perante os constrangimentos epistemológicos, que é questionada pelos estudantes. Por João Nunes Almeida

Há um ano atrás[1], a contestação ao reforço securitário das universidades no Reino Unido evidenciava uma relação entre o crescente policiamento dos campus e a racionalização das actividades académicas. Por meio da intensiva medição e quantificação do trabalho na universidade[2], as universidades públicas continuaram a lucrar: só em Lancaster, a universidade, de pequenas dimensões (12.000 estudantes), lucrou 18 milhões de libras este ano.

Perante o retrocesso dos protestos estudantis em Dezembro de 2013, devido em parte à incapacidade estratégica dos envolvidos em fazer frente à repressão – suspensões de alunos, violência policial dentro dos campus ou assédio a alunos para colaborarem com a polícia – o ensino público universitário continuou a sofrer alterações que seguem a política de transfusão dos custos de produção da universidade para os estudantes e trabalhadores. Esta questão central não deve ser vista, no entanto, como uma queda nos recursos disponíveis: na verdade, a extinção do financiamento (grants) Estatal às ciências sociais e belas artes[3], por exemplo, continuou a ser compensada e aumentada com o aumento de propinas (aumento da taxa de ingresso em 6.000 libras por ano nas licenciaturas para estudantes UK e UE em 2012). A extinção e substituição de postos de trabalho administrativo por trabalho na área do marketing [4]e o aumento de exploração do staff académico por via de zero-hours contracts (contractos de trabalho sem horas fixas) permitiram também assegurar uma elevada mais-valia. A estratégia de David Willetts, ministro da Ciência e Universidades, é clara: a universidade é uma empresa de serviços que vende pacotes educativos a consumidores. No entanto, apesar do consumidor ser muito mais do que uma simples metáfora para estudante – guiões de conduta ética do staff usam explicitamente esta palavra – ela encerra um conflito que, não por acaso, impulsionou novas contestações este ano. Por outras palavras, o estudante não é só um consumidor mas é ele próprio produtor do seu investimento no mercado universitário – uma licenciatura em linguística, um workshop em empreendedorismo. Ora, sendo a universidade uma instituição que gera capital, mecanismos disciplinares e securitários são evidentemente postos em prática quando os estudantes se revoltam contra a exploração a que estão sujeitos.

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Mas antes de analisar os eventos de 19 de Novembro e das ocupações de 3 de Dezembro, creio ser interessante contextualizar historicamente, ainda que sem grandes detalhes, as instituições de ensino universitário em Inglaterra, de modo a diluir a oposição entre o passado nostálgico do welfare-state e a política de privatizações dos thatcheristas.

A primeira impressão que se poderia ter relativamente à massificação do ensino em Inglaterra é que ela se daria nas linhas do estado-providência e que, com o advento do thatcherismo, a privatização do ensino teria posto fim à gratuitidade do sistema. Mas, em rigor, a massificação do ensino dá-se com as políticas de Kenneth Baker, secretário de estado da Educação no governo de Thatcher[5]. E quando falo de massificação, refiro-me a um aumento de estudantes a frequentar a universidade na ordem dos 45% entre 1988 e 1994 [6]. Dito de outro modo, se o governo de Thatcher lançou as bases para o futuro mercado universitário na base do ensino gratuito (através da expansão do recrutamento de estudantes), o Labour Party de Tony Blair deu um passo fundamental para a neoliberalização do ensino universitário aquando da introdução de propinas em 1998. Aproximadamente quinze anos depois, uma licenciatura passaria a custar 27.000 libras para estudantes RU/EU, mantendo-se o mercado a funcionar somente através de um plano Estatal de empréstimos que investe 10 biliões de libras ao ano, criando hoje uma bomba-relógio com cancelamentos de dívida que chegaram a 45% dessa quantia anual [7]. Estimativas apontam que, em 2042, dos 200 biliões de libras em dívida, 90 biliões não serão cobrados[8]. As propinas em Inglaterra, País de Gales e Irlanda do Norte poderão bem ter os seus dias contados em grande parte porque já não será viável as cobrar.

19 de Novembro – Marcha pela Educação Gratuita

Respondendo a uma convocatória lançada pela NCAFC (National Campaign Against Fees and Cuts/ Campanha Nacional contra taxas e cortes), estudantes de todo o RU concentraram-se em Londres para uma marcha até ao parlamento. Importa sublinhar que este protesto surge depois da forte repressão policial sentida tanto nos protestos de 2011 como nos do #copsoffcampus. Partiu-se então do princípio que iria haver detenções e violência policial em larga escala, o que levou a uma preparação antecipada tanto ao nível de apoio legal como ao nível da resposta às possíveis agressões policiais. Os famosos bookshields que surgiram nestes anos são antes de mais o espelho desta realidade um pouco sombria de se carregar com cavalos para cima de estudantes de 18 anos e de se enfrentar penas de prisão de 6 meses.

19 de Novembro acabou então por ser uma surpresa porque, depois da retirada do apoio do NUS (sindicato nacional dos estudantes) à manifestação[9], invocando razões de segurança, tanto associações de estudantes, as que se demarcaram dessa posição do NUS, como colectivos organizados autonomamente decidiram partir os telhados de vidro da burocracia sindical e partidária, tendo recusado a gestão da miséria de uma vida sem futuro, atolada em 27.000 libras de dívida ao Estado, e de um mercado de trabalho que colonizou a vida muito para lá do local de trabalho quando, a título de exemplo, o desempregado jovem é hoje obrigado a realizar sucessivos actos de fala performativos passíveis de serem interpretados como procura genuína de trabalho pelos serviços nos centros de emprego.

10404118_1495285290732308_7287075501165535003_nAssim, mais do que a presença de 10.000 estudantes, foi determinante a rebeldia de aproximadamente 2000 pessoas para não se fazer a típica marcha, de se ter percebido que a MET (Metropolitan Police) estava a fazer uma operação de relações públicas para lavar a imagem de perseguir estudantes pelas ruas, dos manifestantes terem também brincado com isso através de inúmeras provocações à polícia, e de terem esboçado planos B em potência numa atitude que se traduziu na invasão da Parliament Square e do Department for Business, Innovation and Skills.

A retirada do NUS e a ausência de um discurso punitivo e controleiro por parte da NCAFC e das restantes plataformas permitiu, então, a abertura e o entrecruzamento de reivindicações que transcenderam a educação gratuita e romperam com os limites da luta anti-propinas. Estabeleceu-se uma relação importante com o anti-nacionalismo da abolição das fronteiras, num momento em que o populismo racista do UKIP (Partida da Independência do Reino Unido) subverte, sem entraves maiores, o discurso da luta de classes no purismo da nação dos pequenos empresários britânicos contra os estrangeiros. No borders / no nations / free education foi felizmente um grito frequente. A inclusão espontânea de um protesto contra o desaparecimento dos 43 estudantes mexicanos na manifestação ajudou igualmente a clarificar um dos seus subtextos: era a violência do Estado que estava também em causa e a tensão que nela se desenvolveu foi decerto calculada pela MET: talvez não valesse a pena reprimir aquela larga franja radicalizada às três da tarde no centro de Londres.

Também a heterogeneidade dos estudantes ali encontrada não nos permite falar mais de um sujeito produzido dominantemente por instituições de ensino independentes de discursos vindos de multinacionais, empresas de marketing ou da indústria de guerra. Esse sujeito que se pretende como consumidor, como que alheado do mundo laboral dentro da universidade, encontra-se hoje explorado por via de uma conduta social ditada pelo empréstimo dos seus estudos[10]. É por isso consensual que a educação gratuita não pode significar apenas universidades sem propinas onde os custos de produção serão suportados pelo Estado. É a maneira como a universidade produz conhecimento, a sua absorção por ferramentas de estatística e econometria, a ditadura dos medidores de impacto[11], a destruição da crítica nas ciências sociais enquanto atitude de distanciamento e questionamento perante os constrangimentos epistemológicos, que é questionada pelos estudantes. A massificação do ensino não deve, pois, ser nostálgica pelos tempos em que um elemento da classe operária conseguia estudar em Oxford ou Cambridge, mas sim emancipar-se ao ponto de se tornar comum, isto é, deixando aos estudantes, professores e outros profissionais a tarefa de se reapropriarem da produção do conhecimento e do contexto em que ele é produzido, em oposição ao ensino privado ou público “gratuito”. Creio ter sido esta a tensão principal que atravessou muitos dos que ali se encontravam, embora no panfleto da NCAFC se propusesse como solução para a educação gratuita o recurso ao Estado, enquanto cobrador de impostos às multinacionais. Estudantes que gritaram “paguem os impostos” à porta de um Starbucks, fechado por um cordão policial, ilustraram esta limitação.

3 de Dezembro – Ocupações dos campus

Confirmada a revolta em potência na marcha pela educação gratuita, fez-se um apelo para um dia de ocupações nos campus das universidades. Propunha-se agora o passo arriscado de interferir com o policiamento interno dos campus. Conforme descrevi há um ano atrás, os campus universitários no Reino Unido são atravessados por um discurso securitário que se materializa no policiamento entrecruzado de forças policiais, empresas privadas de segurança e segurança interna das universidades. A paranóia securitária do health and safety diário ou o direito de não interromper a “expressão democrática” de conferencistas a soldo de multinacionais[12], permite a suspensão temporária de aulas, reuniões, expulsão de alunos e criminalização de protestos. É ainda neste contexto que a presidente da associação de estudantes da minha universidade viu o seu escritório ser fotografado por polícias, devido ao crime potencial de ofensa à ordem pública ao ter afixado cartazes contra o fracking e o bloqueio de Gaza. O seu historial de activista ambiental foi-lhe relembrado[13]. Prepara-se assim o terreno para um projecto de lei anti-terrorismo da coligação que tem como um dos objectivos identificar potenciais extremismos nas universidades e, sobretudo, introduzir uma maior arbitrariedade no uso da força policial.

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Não obstante este cenário, ocorreram ocupações pelo menos em Warwick, Manchester, Lancaster, Kings College, Sheffield, Sussex e Birmingham. Em Lancaster foi ocupado o edifício central da administração da universidade, tendo ocorrido a suspensão de todas as actividades ligadas à sua gestão. O contacto espontâneo entre os estudantes que entravam pelos escritórios adentro e os trabalhadores deu lugar a um cenário triste: verificou-se a total ausência de solidariedade, tendo inclusive alguns dos trabalhadores feito o trabalho de seguranças, usando os seus próprios corpos para impedir, sem sucesso, a ocupação. Por fim, o staff foi obrigado a interromper o dia de trabalho. Foram erigidas barricadas com material de escritório em todas as entradas.

Durante o desenrolar da ocupação, creio que a UMAG (órgão de gestão da universidade) adoptou uma estratégia de diálogo com os ocupantes, muito provavelmente para se distanciar da criminalização e violência policial dos últimos protestos no campus e, sobretudo, porque a ocupação ocorreu no dia aberto, isto é, o dia em que futuros estudantes visitam a universidade. É ainda na noite de 3 de Dezembro que sai um comunicado do UCU (sindicato dos trabalhadores do ensino universitário) onde se informava que o sindicato estava a tentar obter garantias junto do reitor para que os ocupantes não fossem agredidos ou perseguidos judicialmente pela universidade. Para a manutenção da via do diálogo, também terão contribuído as agressões policiais na ocupação de Warwick: polícias apontaram tasers à cara dos alunos e foi utilizado gás pimenta num espaço fechado[14]. Desta ocupação resultaram feridos e detenções mas também a reocupação massiva da Senate House. Os custos da operação policial poderão ter sido elevados no marketing da universidade: Warwick teve uma visibilidade mediática que mais nenhuma ocupação teve o que contribuiu decerto para a sua reocupação nos dias seguintes já sem a interferência de elementos policiais.

Foi também durante a ocupação de Lancaster que se ficou a saber que há um gestor de crises que opera segundo uma escala de ameaças ao normal funcionamento da instituição. A “ameaça prateada”, assim chamada na escala, activou uma série de procedimentos securitários que transformaram a universidade num espaço cercado durante e depois da ocupação: aumento das patrulhas de segurança à volta do campus, envio de mensagens para as mailing lists dos serviços onde se informava sobre a aplicação de medidas excepcionais de segurança ou o controlo de entradas e saídas de alunos no edifício muito depois da ocupação já ter terminado. Durante a noite de 3 de Dezembro, estudantes foram aleatoriamente mandados parar por seguranças enquanto circulavam pelo campus, dando origem a uma espécie de interrogatório à margem da lei. A ocupação termina quando o reitor se compromete a renegociar os aumentos das propinas a estudantes pós-graduados e estrangeiros e das rendas dos quartos.

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Pese embora a ocupação ter durado apenas um dia, foi aberto um processo descentralizado e horizontal de decisão e debate entre indivíduos sobre o que se quer ou não se quer da universidade. A heterogeneidade das reivindicações destas ocupações exemplifica bem essa impossibilidade momentânea de não haver uma concentração de lutas num só problema baseado na questão das propinas ou da dívida: entre outras reivindicações, a redução do preço da comida, bolsas de estudo para care leavers[15] e o aumento de serviços de ajuda psicológica não devem, creio eu, ser consideradas questões superficiais. Elas nascem dos problemas sentidos pelos indivíduos que ocuparam aqueles espaços.

Apesar da estratégia de intimidação e controlo delineada pela gestão destas universidades, há que salientar o novo ímpeto da resposta dos alunos à mercantilização da educação universitária. Se há um ano atrás este movimento mostrava não ter ainda capacidade de manter em aberto o confronto com os mecanismos disciplinares da universidade, seguindo-se então um período de retracção (#copsffcampus foi disso exemplo), a concentração em Londres e posteriores ocupações começaram a dar sinais claros de que a dívida estudantil, em vez de disciplinar e arregimentar para o trabalho assalariado, acabou por gerar um cepticismo generalizado e uma recusa vital da própria mercantilização exaustiva de todas as actividades humanas. Some-se a isto a fragilidade da construção ideológica do pacificador welfare-state (estado-providência) uma vez que ela não oferece garantias que, sem propinas, a polícia e as câmaras de vigilância desapareçam dos campus. Não existe futuro outra vez ou, como se lia num cartaz a 19 de Novembro, if you want a vision of the future, imagine a boot stamping on a human face – forever.

Referências:

[1] Os motins, os estudantes e a vigilância intensiva: o ressurgimento dos protestos no Reino Unido, Passa Palavra (online)

[2] De Angelis, Massimo and David Harvie (2009) “Cognitive Capitalism” and the Rat-Race: How Capital Measures Immaterial Labour in British Universities’, Historical Materialism, 17(3): 3–30 (online)

[3] Mcgettigan, A. (2013). The great university gamble: Money, markets and the future of higher education. London: Pluto Press, p.27.

[4] Idem, p.30.

[5] Idem, p.17.

[6] Idem.p.18.

[7] “Student fees policy likely to cost more than the system it replaced”, Guardian (online)

[8] Idem.

[9] “NUS withdraws support for national student demo over safety concerns”, Guardian (online)

[10] Os motins, os estudantes e a vigilância intensiva: o ressurgimento dos protestos no Reino Unido, Passa Palavra (online)

[11] De Angelis, Massimo and David Harvie (2009) “Cognitive Capitalism” and the Rat-Race: How Capital Measures Immaterial Labour in British Universities’, Historical Materialism, 17(3): 24 (online)

[12] “George Fox 6′ could be jailed over protest”, Times Higher Education (online)

[13] “Anti-terror bill: making radical ideas a crime on campus”, Guardian (online)

[14] “Police Brutality on Warwick Campus”, Warwick for Free Education (online)

[15] Indivíduos sob tutela de instituições de acolhimento.

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