Não existe fórmula pronta contra a burocracia. Podemos propor o modelo organizativo mais avançado e democrático que pudermos imaginar: se ele não se erguer com base numa mobilização popular real, poderá resultar em uma forma ainda mais burocrática. Por Caio e Simone

Há alguns dias, militantes de um coletivo estudantil anarquista publicaram no Centro de Mídia Independente (CMI) um texto entitulado Comentários a respeito da organização da luta contra o aumento de 2015, no qual problematizam a forma como vem sendo construída a mobilização em São Paulo, bem como o papel assumido pelo Movimento Passe Livre (MPL), e defendem um modelo federativo de assembleias para a condução da luta.

Ao colocar abertamente uma reflexão crítica sobre os rumos de uma luta em curso, o texto lança para além do interior das organizações um debate importante aos lutadores em geral. As discussões sobre estratégia devem ser públicas, e fazer esse tipo de debate abertamente já é, por si só, uma ação antiburocrática.

É por reconhecer a importância do debate político que está sendo feito, ao contrário das habituais calúnias e intrigas que permeiam nosso meio, que seguimos aqui com a polêmica.

O problema da direção da luta

Em boa parte, as mesmas questões colocadas pelos Comentários no CMI já haviam aparecido antes noutro artigo, publicado pouco após junho de 2013 por militantes de uma organização trotskista: “Os limites do Movimento Passe Livre. Apesar de bastante doutrinária, aquela foi uma das poucas análises escritas à época que se debruçou sobre o problema da direção da mobilização.

De fato, não deve ser encarado como natural que na maior mobilização de massas da história do país tenha havido um pequeno grupo que, “sem ter sido eleito por ninguém, sentou para “conversar” (…) com o Ministério Público, com a Prefeitura de Haddad e deu entrevistas na imprensa falando (…) em nome de um movimento que ganhou proporções que o próprio MPL tinha clareza que não representava e nem poderia representar, sem nenhuma consulta aos (…) que participavam do movimento”. No entanto, não se pode perder de vista que se não houvesse esse pequeno grupo construindo, planejando, convocando, analisando, fazendo declarações públicas – em suma, realizando um papel diretivo – aquele processo não teria acontecido como aconteceu. E que, num aparente paradoxo, o processo assim conduzido tenha sido permeado por uma explosão de autonomia popular e vitorioso em sua reivindicação imediata.

Do mesmo modo, não se deve perder de vista que esse grupo só pôde ter o papel que teve porque era tacitamente reconhecido pela maioria dos que então se mobilizavam. Aí chegamos no ponto central: a burocratização, como observara Marat já na Revolução Francesa [1], começa nas bases. Se não partimos daí, reduzimos os processos sociais aos dirigentes e suas escolhas, desprezando que só a partir das bases existem as cúpulas. Nas lutas contra o aumento, o MPL ocupa o lugar que ocupa porque, no limite, assim permitem os manifestantes.

Seguindo aquele artigo, a organização trotskista criticava a atuação do MPL por dirigir a mobilização mesmo sem ser uma “direção democrática conformada a partir das bases, com delegados eleitos nas universidades, escolas, bairros e locais de trabalho e mandatos revogáveis”. Em linhas gerais, é a mesma questão que os camaradas anarquistas colocam agora ao propor um modelo federativo entre as assembleias nos bairros e uma assembleia central. São propostas que, sem dúvidas, retomam as formas mais avançadas de democracia de base desenvolvidas nas lutas dos trabalhadores. Mas como aplicar o modelo soviético se não existem os soviets? Não vai ser por decreto, com o MPL anunciando um certo modelo organizativo definitivo, que vão aparecer as bases do poder popular, se elas hoje não estão construídas.

Não existe fórmula pronta contra a burocracia. Podemos propor o modelo organizativo mais avançado e democrático que pudermos imaginar: se ele não se erguer com base numa mobilização popular real, poderá resultar em uma forma ainda mais burocrática, pois será uma estrutura complexa e vazia. E se a luta não se desenvolve de fato, não é possível sequer ter a ampliação da participação no horizonte. Uma forma organizativa que não desse conta de tocar a luta poderia terminar por virar até um entrave ao seu avanço [2].

Dessa forma que, em junho de 2013, o lugar contraditório do MPL como uma “direção que se nega a si mesma” e “tem como fim perder completamente o controle”, colando-se à pauta única a ponto de se misturar aos 20 centavos, foi ao mesmo tempo fundamental para a ignição e limitação daquele processo. Tal foi analisado com mais fôlego em outro artigo (Revolta popular: o limite da tática”): a mobilização encontrou seu limite ao existir necessariamente “na tensão entre uma minoria organizada e uma maioria não organizada”. Mas tratava-se de uma limitação imposta, antes de tudo, pelo momento histórico: momento em que a classe trabalhadora se encontra desorganizada – ou, mais precisamente, em que as ferramentas de organização construídas pelos trabalhadores ao longo das últimas décadas converteram-se em instrumentos de contenção da sua luta [3]. E nesse cenário, “para os pequenos grupos que se mantinham na esquerda à margem do governo, disparar o desgoverno da revolta era a possibilidade de fazer frente àquela gigantesca estrutura de gestão da luta de classes”; a massificação, porém, trouxe à tona a carência de estruturas enraizadas no dia a dia dos trabalhadores.

Como propor uma luta dirigida pela articulação das organizações de trabalhadores em seus locais de base, se essas organizações hoje quase não existem? Devemos, então, trabalhar para construí-las. Essa é uma tarefa urgente dos anticapitalistas em geral, e que pode ser posta em prática por qualquer um, sem pedir licença a nenhum fórum diretivo. Ora, se essas organizações existirem, já não será necessário pedir ao MPL que saia do lugar que está, pois se haverá superado as condições que reiteram o MPL na posição que ocupa hoje. A burocratização não é um problema moral, sobre ser autoritário ou não, mas uma situação que corresponde a uma certa base social.

O que dá a parecer é que as críticas e propostas feitas por aqueles artigos se encontram alheias aos problemas práticos da organização popular. Mas o fato é que não existe teoria descolada da prática e mesmo esses textos refletem uma certa prática, que veremos a seguir.

Luta contra a tarifa nos bairros: dificuldades e avanços

Não cabe agora uma análise de mais fôlego sobre a atual luta contra o aumento, que se aproxima de completar um mês. Mas se a sequência de Grandes Atos convocados pelo MPL que vem reunindo milhares de pessoas no centro e grandes vias da cidade parece remeter ao roteiro das mobilizações de anos anteriores, ao mesmo tempo acompanhamos o desenvolvimento de experiências inéditas, que constroem um novo horizonte de possibilidades de luta.

É visível que, se o MPL ainda exerce um papel diretivo, já se trata de uma direção bem diferente daquela que realizou em 2013. Isso já se constata, por exemplo, nas assembleias das manifestações, mesmo que sejam limitadas a discutir o trajeto. O trajeto das marchas, antes “taticamente secreto” – “informado a algumas organizações próximas, mas nunca revelado à imensa maioria dos manifestantes”, tinha no seu mistério um importante instrumento de pressão do MPL [4] –, agora é definido abertamente nas assembleias [5]. Pode-se falar, ao menos, de uma direção não tão hermeticamente fechada, o que corresponde também às condições da própria luta: se o MPL ocupou o lugar que ocupou em 2013 na medida em que se misturava à pauta única dos 20 centavos, o mesmo não é possível frente a um aumento que se apresenta fragmentado [6].

Ainda assim, pode-se arriscar que a mais significativa das novidades da luta de 2015 seja o aparecimento de processos organizativos em dezenas de bairros e municípios da metrópole paulista. Paralelamente aos grandes atos das últimas semanas, ocorreram reuniões abertas para construir a luta contra o aumento no Grajaú, Parelheiros, M’Boi Mirim, Jd. São Luís, Campo Limpo, Butantã, Pirituba, Lapa, Tatuapé, Itaquera, Jd. Novo Horizonte, São Miguel; e fora da capital, em Guarulhos, Osasco, Cotia, todos os municípios do ABC, Ferraz de Vasconcelos, Mogi das Cruzes, Francisco Morato, Carapicuíba, Barueri, etc. A realização e a possibilidade de permanência dessas atividades só pode ser explicada à luz do trabalho militante dos movimentos de transporte na cidade no último período, cuja construção agora é embalada pelo ascenso de indignação contra o aumento, que pode levar ao fortalecimento posterior desses espaços de base, ainda que hoje incipientes.

Para além das ações locais surgidas desses fóruns, vale observar como a existência de organizações nos bairros tem efeitos práticos nos atos do centro. Pela primeira vez, as convocatórias dos grande ato pelo MPL vem sendo seguidas pela convocatória de concentrações e caravanas regionais pela militância desses lugares, que começa a se apresentar coletivamente nas mobilizações, com fileiras e materiais próprios.

Os autores dos Comentários do CMI afirmam, porém, que “não há nenhuma articulação real entre as assembleias de bairro e a assembleia central, passando longe de qualquer tentativa mais próxima de um federalismo ou algo do tipo”. Mas é possível pensar em uma articulação de fato entre espaços tão incipientes, que por vezes não garantem sequer marcar uma segunda reunião? Em seguida, dizem que “as assembleias de bairro levantam questões que são levadas novamente à direção do movimento (MPL) e esta define o que das propostas é válido ou não para pensar a ampla luta contra o aumento”. Aí cometem simplesmente um engano, visto que provavelmente nem mesmo há militantes do MPL participando de todos esses processos.

Para tratar da dificuldade organizativa desses espaços, tomamos como exemplo aqui um episódio ocorrido no dia 22 de Janeiro, quinta-feira, numa reunião que deveria ter sido uma Assembleia, na praça Elis Regina, chamada por um grupo novo que está querendo iniciar a luta pelo transporte na região da Zona Oeste, com participação de militantes do MPL, mas não só. Foi feita panfletagem no dia anterior, no Terminal Butantã, chamando as pessoas para uma reunião cuja finalidade era identificar e discutir os problemas do transporte da região.

A reunião contou com cerca de 40 pessoas, dentre elas militantes das organizações dos autores dos dois textos que aqui analisamos. A discussão caminhava bem, até tais militantes colocarem sua análise sobre a condução dos grandes atos no centro e das lutas, insistindo na ideia de fazer passar a proposta de se tirar um representante para “dar um informe” durante a assembleia do 4º Grande Ato. Metade dos presentes achou estranha tamanha insistência, afinal haviam sido convidados para uma conversa que, a princípio, se propunha a dar um pontapé em experiências organizativas locais. Quando a discussão chegou aos termos do panfleto, a estranheza aumentou e os ânimos se exaltaram ainda mais: tais militantes propunham que se abordasse a unidade da luta, assembleia geral, apoio aos grevistas do ABC e readmissão dos metroviários etc.; alguns inclusive queriam que fossem retiradas as menções à tarifa zero. A reunião acabou implodida.

Como já dissemos, as críticas desses grupos são, em si, legítimas. É importante questionar se a nova dinâmica das assembleias, limitada à decisão sobre o trajeto no início dos grandes atos nos centro, constitui uma forma suficiente para promover uma maior participação e maior poder de decisão de todos os envolvidos na mobilização. Mas a crítica só tem peso se considerarmos que a jornada contra a tarifa se restringe aos espetaculosos protestos na Avenida Paulista e arredores. E é aqui que o incitamento que o MPL-SP tem feito a que a população em geral tome parte nas iniciativas organizativas locais – gerando oportunidades como a dessa reunião, inclusive – deve ser encarado mais seriamente.

No entanto, admira-nos que organizações preocupadas com o acúmulo mais amplo de experiências de luta direta da classe desperdicem a oportunidade de ensaiar um processo mais enraizado, porém lento, de articulação no bairro em que se iniciara a luta, para incluírem pautas justas, entretanto ainda distantes e abstratas para o cotidiano local, repetindo alguns dos velhos vícios do movimentos estudantil e sindical burocratizados.

Da mesma forma, de um ponto de vista meramente teórico ou formal, a exigência para que os Grandes Atos no centro sejam conduzidos de forma federativa, ou seja, permitindo que os núcleos de bairro elejam representantes para coordená-los, também nos parece perfeitamente cabível. Mas a dimensão prática coloca algumas questões: de que vale eleger representantes de núcleos locais quando estes núcleos mal foram constituídos? Com base em qual experiência concreta e amadurecida se legitimaria aí a figura do representante? Foi nesse sentido que falamos, anteriormente, no risco de uma burocratização ainda maior do processo. Não valeria mais a pena atuar em favor de uma forma de ação mais discreta e diuturna (tal como a da velha toupeira!) de modo a aproximar os trabalhadores e moradores do bairro da experiência organizativa para que nos próximos combates, quem sabe, o modelo federativo proposto sustente-se sobre algum lastro social efetivo?

Se transformada em instrumento de disputa dos grandes atos, a organização local perde o sentido enquanto ferramenta de democracia e ação direta. E é seu esvaziamento que pode constituir a base de uma burocratização. Contra essa tendência sempre latente em qualquer forma de mobilização, o que podemos fazer é atuar em favor do erguimento de estruturas decisórias enraizadas no dia a dia dos trabalhadores. São tarefas que exigirão de todos nós compromissos de longo prazo, serenidade e discrição, e nenhuma traz garantia de glória, algo bem diferente do imediatismo, da visibilidade e dos breves momentos de heroísmo que as grandes manifestações no centro nos proporcionam.

Se defendemos “todo poder às assembleias dos bairros”, devemos construir esse poder.

Notas
[1] Confira “Dilemas da liberdade”, série de João Bernardo, aqui.
[2] Para uma boa reflexão sobre o problema da burocratização em relação ao problema da desmobilização, lembramos da discussão do artigo ”O fetiche antiburocrático e a falta de participação” de Ricardo Rugai, aqui.
[3] Para alguns bons apontamentos sobre essa conjuntura, veja a “Carta dos 51”, “Estado e movimentos sociais e, mais recente, “A saída de Gilberto Carvalho do governo”, aqui
[4] A citação é ainda de Revolta popular: o limite da tática, de Caio Martins e Leonardo Cordeiro.
[5] Sob o risco, inclusive, de que grupos com outros objetivos políticos – por exemplo, focados mais em blindar a gestão de certo partido do que em derrubar o aumento –, apresentem trajetos que podem ser aprovados.
[6] Para uma análise sobre os aumentos de 2015, ver Uma nova onda de lutas contra o aumento da tarifa, do Passa Palavra, aqui.

13 COMENTÁRIOS

  1. Achei mais uma vez excelente o artigo, e vejo que de fato diz muito sobre problemas apontados aqui e também pelo MPL de Sampa, mas diz ainda mais sobre o ensaio de organização da jornada de lutas contra o aumento, através dos encontros, no Rio.
    De fato vejo no Rio bem claro, em Sampa de forma timida, uma ampla contestação da ” legitimidade” informal, desestruturada ( num termo bastante restrito), porém extremamente pensada e organizada do MPL.
    Vulgarmente penso muito no Murici Ramalho: ” Aqui é trabalho” como o fundo disso tudo; ou seja como discutir a organização certamente necessária mais ampla, mais horizontal, classista também em sua composição quando não há organização tampouco grupos marxistas ou anarquistas dispostos a iniciar o trabalho.
    Mas isto está melhor discutido no texto, todavia penso como dialogar tal projeto com grupos extremamente sectários e ou miopes politicamente!
    Como formar e inovar quem se recusa e quer reapresentar a velha peça….

    Deixo ainda a contribuição dos especifistas da FARJ, que por mais que não tenha acordo com tal doutrina dentro do anarquismo, vejo que fizeram uma otima critica quanto a situação no Rio e o declínio cantado da luta contra o aumento!
    Assim como também fizeram o movimento social de seu campo proximo o MOB:

    https://organizacaodebase.wordpress.com/2015/01/26/nota-do-mob-rj-referente-a-luta-contra-o-aumento-das-passagens/

    https://anarquismorj.wordpress.com/2015/01/17/sectarismo-e-vanguardismo-debatendo-um-problema-na-esquerda/

  2. Muito bom ver um debate se iniciando publicamente assim, diferentemente de calúnias, provocações e táticas policiais de desmobilização de grupos. Os dois textos sugeridos por Anarcogenese pegam muito bem isso: os ciúmes políticos, o vanguardismo, o sectarismo, as vaidades e a arrogância. Também alguns fetichismos (como o miliciano da “auto-defesa”) e os puritanismos ideológicos.

    Uma questão que devemos sempre estar atentos é o da passividade de alguns lutadores. Por um lado cobra-se muito do MPL, por outro acusam-nos de dirigistas. Em algumas cidades o MPL era tido como pequeno e irrisório quando tudo estava “dando certo”, e aí quando tudo “dava errado” a culpa era do poder totalitário do coletivo. Assim como em algumas frentes ou blocos o MPL era acionado como “especialista em transportes”, depois acusado de ter pauta única. Também grupos de esquerda faziam coro com a direita em 2013 ao acusar o MPL de São Paulo de ter “abandonado” o povo e as ruas.
    De fora, vejo que no Rio de Janeiro há grupos que atropelam a frente de atos contra o aumento com outras pautas e disputam um espaço nas lentes fotográficas: é totalmente justa a luta pela libertação dos presos políticos (mesmo que só um seja nomeado por certo grupo de esquerda, enquanto os outros são anônimos), mas em uma manifestação contra o aumento, a disputa de gritos prejudica as duas pautas. E os trabalhadores não se preocupam em ter um emblema, herói ou mártir, mas em ter melhores condições de vida e liberdade de lutar por isso.

    É necessário não se criar dependência em relação ao MPL e depois criticá-lo de não atender a tudo. Também de não confundir trabalho de base com visitas às quebradas a fins de autopropaganda e difamação de outros coletivos. Enquanto se criam valas entre os trabalhadores, não vamos conseguir expor e abrir as fissuras dos capitalistas.

  3. Compas,

    Hugo e eu responderemos ao texto em breve, mas desde já gostaríamos de deixar claro que muito nos agrada a continuidade do debate e a publicação deste texto.

    Seguimos em luta e em debate,

    Saudações,
    Amanda e Hugo

  4. Muito bom o texto.

    Me lembrou algo que aconteceu no Encontra Nacional do MPL em 2006.
    Coletivos que não possuíam praticamente militância efetiva nenhuma entraram no MPL como se se tratasse de um aparelho para ser disputado. Começaram a atacar aqueles que tinham mais legitimidade pelo trabalho feito, como se fossem dirigentes.

    Parece que a história se repete: um bando de pseudo-militantes preguiçosos que querem ficar no lugar daqueles que possuem uma autoridade moral pelo trabalho reconhecido pelas pessoas.
    São capazes de criar organizações fantasmas pelo jeito (como assembléias de bairro) para se dizerem representantes. Esses sim seriam os verdadeiros burocratas, pois não representariam nada e nem sequer teriam reconhecimento das pessoas. Seria um passo para a total desmobilização.

    Em suma, gente que fantasia ser dirigente de algo e que acha que movimento social é aparelho a ser disputado e não consequencia de uma construção cotidiana.

  5. Excelente debate.

    O questionamento sobre a legitimidade da direção do MPL me lembrou uma passagem de Rosa Luxemburgo, em seu texto “Crítica à Revolução russa”:

    “O partido de Lênin foi o único que compreendeu as exigências e os deveres de um partido verdadeiramente revolucionário ao assegurar o desenvolvimento contínuo da revolução com a consigna “todo o poder às mãos do proletariado e do campesinato”. Os bolcheviques resolveram assim o célebre problema de “ganhar a maioria do povo”, esse pesadelo que sempre atormentou os socialdemocratas alemães. Estes, em sua condição de discípulos de carne e osso do cretinismo parlamentar, nada mais fazem a não ser transpor para a revolução a sabedoria caseira do jardim de infância parlamentar: para fazer alguma coisa, é preciso ter antes a maioria. Portanto, também na revolução, devemos conquistar primeiro a “maioria”. Mas a dialética real das revoluções inverte essa sabedoria de toupeira parlamentar: o caminho não conduz à tática revolucionária pela maioria, ele leva à maioria pela tática revolucionária.”

    Em outras palavras, a maioria se conquista durante o processo (no caso, durante a revolução), quando a alternativa à ordem vai sendo posta em prática e a classe trabalhadora passa a ter maior confiança e clareza da sua posição frente ao mundo burguês. Nesse sentido, querer conquistar a maioria antes da revolução deve ser visto como um infantilismo que subestima o poder dos aparatos ideológicos burgueses e se auto-condena a um eterno “somar forças”, um permanente “acúmulo de forças” (algo soa familiar ao brasileiro, e qualquer semelhança não é mera coincidência).
    Do mesmo modo, a tática do acúmulo de forças e conquista da maioria subestima o poder de inércia inerente ao modo de enraizamento material do sistema do capital, tendente à autoperpetuação, entre outras coisas, porque cada indivíduo interioriza as determinações da lei do valor. O combate a tal interiorização é não apenas ideológico, mas material; daí a necessidade da revolução estar acontecendo, dos novos órgãos revolucionários já estarem atuando e criando a dualidade de poderes, para que então a “maioria” seja conquistada à alternativa socialista de controle do sistema. Portanto, a maioria não se conquista antes, e sim durante a revolução. Quando se conquista a maioria antes da Revolução, não se tem uma comprovação do erro de Rosa, e sim o rebaixamento do programa e o abandono da perspectiva revolucionária. A conquista da maioria deixa então de ser uma tática e se converte em estratégia, idêntica à chegada ao poder “a qualquer custo”, mas o custo é justamente a autonomia da classe e a diluição do programa: a perda de sua radicalidade, de modo a possibilitar a política de alianças com extratos cada vez mais amplos do espectro social, descaracterizando sua prática social enquanto uma prática anticapitalista, ou mesmo enquanto uma prática social de esquerda.(Mais uma vez, soa familiar ao brasileiro…)
    Voltando ao tema da direção do MPL, este logrou ocupar a posição que ocupa até hoje, de principal movimento mais ou menos dirigente do processo, graças não a algum oportunismo, e sim porque sua tática está adequada, até o momento, ao que as massas querem e precisam: “o caminho não conduz à tática revolucionária pela maioria, ele leva à maioria pela tática revolucionária”.

  6. Muito bom o artigo. Essa é uma discussão muito importante tanto para o prosseguimento do movimento quanto para outras tentativas de enraizamento e organização popular.

    Gostaria de colocar uma reflexão sobre a ferramenta assembléia. Em ‘comentários”, os autores colocam a assembléia como mecanismo de excelência para efetivar a democracia direta. Coloca-se também uma proposta de “federalizar as assembleias locais na assembleia geral”. Isso possibilitaria que os envolvidos na luta tomassem decisões sobre os rumos do movimento.

    Enxergo de forma muito diferente as assembleias. Muitas vezes podem ser adotadas para ampliar a participação na luta e resolver disputas políticas, mas não são o caminho para a adoção da democracia direta e de base. A assembléia favorece a direção política. No geral, aqueles que colocam posições na assembléia são quadros já formados na luta. A grande maioria dos lutadores não consegue se envolver, de fato, com a elaboração dos caminhos para a luta a partir da assembleia. Além disso a assembléia não consegue aprofundar a discussão política e pode se tornar muito extensa e maçante, afastando novos lutadores.

    O caminho a se seguir, como diz o texto, seria o de ampliação do trabalho de base, aumentando a organização popular e envolvendo mais pessoas diretamente com a luta. Foi acertada a tática do movimento de contribuir com a formação desses espaços nas periferias da cidade. Com esses grupos consolidados, federalizá-los com a eleição de delegados e conselhos federativos, seria a melhor forma de garantir a democracia de base. Isso, entretanto, deve ser construído sem atropelar a própria formação de base.

    Toda essa discussão coloca o planejamento do movimento no longo prazo e a partir daí se colocam algumas questões. Como o MPL se comportará a partir de agora? Será ele a instância de articulação desses espaços de base? Ou esses espaços devem se articular entre si? Nesse último caso, o movimento assume quase a posição de organização política que funciona como fermento.

  7. Penso que se trata de uma situação bastante ambígua e perigosa para o movimento.

    Por um lado, a construção de vários anos e a legitimidade alcançada a partir dessa construção permite a convocação dos atos de forma unilateral, sem a participação de outras organizações, sem precisar de ok de governo nenhum. Essa legitimidade inclusive também é conquistada internamente a partir desse trabalho feito constantemente. Os membros do movimento se sentem legítimos em chamar e puxar o rolê com os métodos que consensuam serem os mais adequados — e isso é um elemento importante para a forte autonomia que o movimento conquistou e vem demonstrando.

    Por outro lado, existe uma dificuldade gigante de um enraizamento maior dos bairros e locais de trabalho — e não digo só do MPL, mas de qualquer tentativa de construção de um movimento pela mobilidade urbana ou que questione as questões do transporte. Existem pequenas coisas, ainda incipientes, mas que não se comparam nem de longe ao nível de organização e legitimidade alcançado pelo “mpl central”. Concordo com os autores de que não existem soviets ou poderes populares, eles necessitam de ser construídos — trata-se da tarefa mais urgente e necessária. Mas o MPL (e as grandes manifestações no centro) também foi uma construção de poder popular – que o diga o decreto popular da redução da tarifa de 2013. As condições políticas que geraram essa instância de poder geraram um poder que é incontrolável pelo Estado, mas que também é incontrolável por qualquer base social constituída.

    Ficamos, então, na dependência quase absoluta de um coletivo cujos debates táticos tem que ser fechados por questão de segurança, em que só se pode debater estratégia se formos convidado pelos atuais componentes. Isso é culpa do coletivo? De forma alguma. É um produto das condições políticas de São Paulo, da ausência (quase) absoluta de trabalho de base das organizações de esquerda e da mentalidade aparelhista/hegemonista que parece predominar nas mobilizações de esquerda. Mas: e se o coletivo implodir por tensões internas? E se o coletivo for cooptado? E se o coletivo estive errado? Quem vai corrigir? E por aí vai. A confiança nos companheiros é fundamental e justificada. Mas a dependência não se justifica e é bastante perigosa. Aliás, não seria melhor se fosse uma outra organização de esquerda ou uma coalizão de organizações de esquerda/sindicatos/etc. Seriam os mesmos problemas com uma maior composição numérica e diversidade ideológica: sem organização na base, tudo depende da direção e não há correção possível.

    Isso só mostra o quanto é urgente a construção de espaços enraizados no cotidiano (coletivos, organizações de local de trabalho, jornais, assembleias que sejam) e uma maior frequência de debates públicos desse tipo colocando em cheque de maneira clara os direcionamentos da luta.

  8. Grouxo,

    As dificuldades dos movimentos relativas a um maior enraizamento em bairros e locais de trabalho têm duas dimensões. Em primeiro lugar, é praticamente impossível simplesmente chegar num bairro que não é o seu, propondo a construção de um coletivo que lute por qualquer demanda. Na verdade, a dificuldade também existe, mesmo que se trate de moradores isolados no próprio bairro. É preciso que haja, no mínimo, algum laço de confiança e alguma convivência entre militantes e moradores. Da mesma forma, não fazendo parte de um determinado local de trabalho, é praticamente impossível simplesmente chegar e dizer: “olá, queremos formar aqui um núcleo do nosso movimento para lutar por isto ou aquilo”. E, igualmente, mesmo fazendo parte do local de trabalho, a dificuldade é imensa. Mesmo que as pessoas sejam receptivas, e muitas vezes o são, permanece uma desconfiança. E essa desconfiança geralmente é confirmada na baixa participação em atividades organizadas pelo movimento, a não ser que a situação seja tão grave que qualquer pessoa, levantando determinada bandeira, seja bem-vinda. Não costuma ser assim. No local de trabalho, a desconfiança é muito grande, por exemplo, se se trata de um trabalhador novato. Segundo: os próprios trabalhadores, em seus locais de trabalho e moradia, são eles mesmos bastante ambíguos. Por vezes, têm acordo com a luta, mas não estão dispostos a iniciá-la ou a assumir a sua condução, preferindo deixar que outros tomem o seu protagonismo e esperando que venham os resultados. Esses outros a assumir a empreitada, podem ser pessoas mais próximas ou mais distantes, de dentro ou de fora do bairro: não importa. Se a desconfiança constitui um obstáculo, a confiança muitas vezes gera acomodação. Os trabalhadores precisam ter um certo grau de iniciativa, caso contrário a autonomia da classe jamais será conquistada. Essa iniciativa às vezes surge, às vezes não, e a questão é o porquê. Por que em certos casos verifica-se uma iniciativa? Seja como for, os problemas existem por toda parte e é simplesmente impraticável que militantes de qualquer organização se enraízem em toda parte. É comum que, no decorrer da luta, nos deparemos com pessoas que vêm nos dizer: “vocês deveriam estar atuando no bairro tal onde moro, lá tem muitos problemas”. Parece, então, que somos o exército da salvação e que o dever nos chama em toda parte. Por que é que a mesma pessoa, que reconhece os problemas do seu bairro e que sabe que a solução é a luta, não se põe em movimento e não soma forças com quem atua fora dali? Por último, imagino que as coisas se deem dessa forma porque os trabalhadores da nossa época não estão acostumados ou se desacostumaram em assumir iniciativas, em grande parte devido à transformação de seus órgãos de luta em órgãos de recuperação das lutas. Por tudo isso, acho que texto acertou em cheio na análise.

  9. Concordo com os argumentos do texto, só não concordei muito com o tom, porque se por um lado é uma discussao importante e tal pra luta, como as outras pessoas estão comentando aí, por outro lado o caso em questão é de ativistas que se dizem teoricamente autonomistas (e outros trotskistas tambem) e conseguiram destruir o único espaço auto-gestionário da luta contra o aumento que eles “participaram”. Então é um problema direto da luta, que foi comprometida pelas fantasias políticas idealistas de algumas pessoas… é triste

  10. Achei o artigo muito bom, justamente porque toca na questão central: “Como propor uma luta dirigida pela articulação das organizações de trabalhadores em seus locais de base, se essas organizações hoje quase não existem?”. No entanto, creio que essa crítica se aplique à própria forma como o MPL tem conduzido a jornada contra o aumento esse ano. Apesar de desde 2013 ter havido um trabalho de base nas periferias, é fato incontestável que esses espaços criados não têm ainda a força suficiente para dirigir a atual luta. E, no entanto, é justamente sobre esses espaços que o MPL tem apostado o sucesso da luta. É como se fossem destros e tentassem derrubar o adversário com um soco da canhota.
    A construção de espaços de luta nas periferias é um trabalho que leva tempo, e o próprio MPL sabe disso. Justamente por isso ainda não são capazes de travar uma jornada de lutas com a intensidade requerida para vencer o combate. Assim, ao escolher esse caminho, o MPL como que aceita a derrota de antemão, pois joga em ritmo de treino quando o jogo já está rolando.
    A tática da revolta de 2013 não foi capaz de ir além de derrubar o aumento, sem criar espaços de organização popular? Ainda assim, não há nada que possa substituí-la completamente no momento.
    É preciso aproveitar essa jornada de lutas para exercitar e fortalecer os incipientes espaços construídos até agora? Certamente, mas não vejo de que forma isso pode ser possível sem travar o combate pra valer, apostando suas melhores fichas e jogando todo seu potencial. Porque o que tenho ouvido nas ruas, ao panfletar, é que “esse ano está muito devagar”.
    Espero estar errado, mas não consigo ver acúmulo organizativo com esse sentimento no meio do povo.

  11. Companheiros,

    soltamos tanto uma resposta, quanto continuamos as criticas aos equivocos cometidos pela direção do MPL em 2015.

    O texto está no seguinte linque: https://debatelutacontraoaumento2015.wordpress.com/2015/02/13/as-catracas-da-luta-contra-o-aumento-balanco-da-luta-contra-o-aumento-de-2015-na-cidade-de-sao-paulo/#more-14

    “Para alguns, arquibancadas vazias, para outros a certeza cada vez mais iminente que conseguiremos (e necessitaremos) dar respostas às investidas capitalistas e estatais. Da senhora dona de casa que bloqueia o caminhão pipa às greves massivas: organizemos o poder popular, fortaleçamos a democracia direta e a militância de base em nossos respectivos lugares de trabalho e estudo. A batalha está dada. Ousemos vencer.”

  12. aqui o comentário que coloquei no texto de resposta dos companheiros:

    “não entendo.
    A direção de um sindicato se dissolver para dar espaço para um comando de greve é uma coisa; afinal, os delegados foram eleitos, houve uma votação e tudo o mais.
    Agora, ninguém elegeu o MPL para nada. Vejo um erro completo de interpretação no que diz respeito à “falsa opção”. Primeiro porque não existe nenhum motivo para “submissão completa” à direção do MPL [ao ir às manifestações centrais estavam proibidos de fazer qualquer outra ação?], segundo porque a noção que os autores trazem de “unidade na ação” parte de um princípio meramente geográfico: se o próprio MPL estava encorajando e difundindo isso que os autores chamam de “ações paralelas”. Oras, não é essa a unidade de ação que estava sendo proposta pelo MPL justamente, a de multiplicar os atos pela cidade? Ou para os autores unidade de ação significa unidade física e geográfica?
    Porque aí a questão vira outra, que é a discussão tática a respeito dos grandes atos centrais versus os atos periféricos, já não tem nada a ver com construção democrática de bases.

    Por fim, parabenizo os autores e o debate, faz tempo que estamos precisando disso. Só acho que a linha aqui continua sendo a de muitos grupos que reclamam do MPL por ele não cumprir um papel que ele mesmo não se coloca, como se o MPL fosse um “sindicato da luta pelo transporte”, e não uma organização autônoma em pé de igualdade com as demais que constroem a luta. O que impede as demais agrupações de tomarem para sí um papel parecido com o que o MPL toma ao convocar os atos, como o MTST por exemplo o fez? Será o fato de que elas não tem poder quase que nenhum de convocação? E por que será que não o tem…?”

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