Ao Ilmo.Sr.

IGOR SANT’ANNA TAMASAUSKAS

Paris, 12 de março de 2015.

Prezado e eminente colega :

Atendendo à sua solicitação, envio-lhe minha Opinião Jurídica a respeito da Ação Civil proposta pelo Ministério Público Federal perante a 21a. Vara da Justiça Federal da 1a Região, pretendendo a anulação de decisões do Supremo Tribunal Federal, do Presidente da República e do Conselho Nacional de Imigração, proferidas em processos de interesse de Cesare Battisti. Com objetividade e dispensando a abordagem teórica das questões envolvidas na referida ação, procurarei ressaltar os aspectos jurídicos que me parecem de maior relevância, tendo em conta as disposições constitucionais e legais que disciplinam aspectos básicos da pretensão do Ministério Público e da decisão proferida pela MMa. Juíza titular da 21a . Vara da Justiça Federal da 1a. Região. A par da consideração de aspectos especîficos da ação, trarei à colação os precedentes, inclusive alguns aspectos particulares de extrema relevância, dos quais tive conhecimento seguro e pormenorizado há vários anos, quando solicitado a manifestar minha Opinião Jurídica sobre a reação indignada de algumas personalidades da Justiça italiana, de evidente orientação política, inconformadas com o tratamento rigorosamente jurídico que estava sendo dado pelo Judiciário e por altas autoridades do Brasil, ao italiano Cesare Battisti, outorgando-lhe a possibilidade de viver em liberdade no território brasileiro, aqui desenvolvendo atividades profissionais absolutamente regulares, de proferir palestras e de publicar livros, no exercício de seus direitos fundamentais garantidos pela Constituição brasileira. Para maior clareza e objetividade, farei em seguida o destaque de pontos específicos de minha Opinião Jurídica.

1) Absoluta inexistência de fatos novos, posteriores às decisões, há muito definitivas e não passíveis de recurso ou reexame, do egrégio Supremo Tribunal Federal, do Exmo. Sr. Presidente da República e do preclaro Conselho Nacional de Imigração, relativas à permanência no Brasil, em liberdade, de Cesare Battisti. Não há, no pedido do Ministério Público e na decisão da ilustre Magistrada, qualquer referência a fatos novos, que poderiam, eventualmente, justificar o reexame da situação jurídica de Battisti no Brasil.

A leitura do pedido formulado pelo Ministério Público e da decisão proferida pela MMa. Juíza revela que não foi tomado por base e nem mesmo foi referido qualquer fato que pudesse afetar a situação jurídica de Cesare Battisti no Brasil, em decorrência das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, pelo Presidente da República e pelo Conselho Nacional de Imigração. Todos os fatos e todas as situações que poderiam afetar essas decisões e que são mencionados no pedido do Ministério Público e na decisão da ilustre Magistrada foram minuciosamente analisados pelo Supremo Tribunal Federal, assim como pelo Presidente da República e pelos órgãos do Executivo que proferiram decisões no caso Battisti.

Basta esse aspecto para que se configurem como juridicamente falhos e inconsistentes o pedido e a decisão que o acolheu. Com efeito, basta lembrar aqui uma norma fundamental expressa, consignada com grande ênfase no artigo 5°, inciso XXXVI, da Constituição Federal : « a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada ». Ora, se nem mesmo a lei poderá produzir esse prejuízo, evidentemente não pode existir, e não existe, lei que autorize o Poder Judiciário, o Ministério Público a produzi-los.

Quando o caso Cesare Battisti chegou ao Supremo Tribunal Federal, em decorrência de pedido de extradição formulado pelo governo italiano,  todas as circunstâncias da trajetória de Cesare Battisti, inclusive as acusações da prática de homicídios, as peculiaridades do julgamento por um Tribunal Italiano que nomeou um defensor dativo que não fez qualquer defesa, e a condenação final à pena de prisão perpétua, que é expressamente proibida pela Constituição brasileira, por disposição do artigo 5°, inciso XLVII, letra « b », tudo isso foi considerado. Por ocasião do julgamento, o egrégio Supremo Tribunal Federal analisou também as circunstâncias da  prisão de Battisti na Itália, sua fuga para a França, onde também acabou sendo preso a pedido do governo italiano. E, afinal, sua fuga da França e suas peripécias para ingressar no Brasil, apesar de estar sendo perseguido por agentes policiais ligados ao governo italiano e de, em tais circunstâncias, não ter condições de atender a todas as minúcias burocráticas para entrar no Brasil por via normal.

Todos esses fatos foram considerados com bastante atenção pelos eminentes Ministros do Supremo Tribunal Federal que participaram do julgamento do pedido de extradição. Ao final, a egrégia Corte Suprema proferiu julgamento, concluindo que, em tese, caberia a extradição, mas que, por disposição constitucional, a decisão final sobre a entrega de Cesare Battisti ao governo italiano era da competência do Presidente da República, a quem foi, então, dirigido o caso, para que procedesse ao seu exame, tendo em conta os elementos concretos e específicos, decidindo, afinal, pelo atendimento ou pela negativa do pedido de extradição. Antes de proferir sua decisão, o Chefe do Executivo, obviamente, analisou com extrema atenção todas as circunstâncias da trajetória de Battisti, inclusive as acusações da prática de homicídio que foram usadas como fundamento para sua condenação. E pelo conjunto das informações obtidas e analisadas pelo colendo Supremo Tribunal Federal e, depois, pelo eminente Senhor Presidente da República, alguns pontos fundamentais foram esclarecidos e ressaltados, deixando evidente que o julgamento pelo Tribunal italiano não havia passado de uma farsa, promovida por autoridades ligadas ao fascismo. Com efeito, a única base para sustentar a acusação da prática de homicídios foi o depoimento de um « arrependido », o que corresponde na Itália a uma delação premiada. E entre as acusações do delator havia a afirmação de que Cesare Battisti havia participado de dois homicídios que tinham sido praticados no mesmo dia, 16 de Fevereiro de 1979, um na cidade de Milão e outro em Mestre, localidade próxima de Veneza, havendo um intervalo de cerca de uma hora entre a prática de cada um desses homicídios. A distância dos locais e os horários das práticas daqueles crimes acabaram deixando evidente a falsidade da acusação, pois a distância entre Milão e Mestre é de mais de quinhentos quilômetros, não havendo a mínima possibilidade de que Cesare Battisti praticasse um homicídio em Milão e daí a pouco, em menos de uma hora, estivesse em Mestre, mais de quinhentos quilômetros distante, praticando outro homicídio. Evidentemente, a denúncia do « arrependido » e o julgamento pela Corte italiana não tinham qualquer consistência jurídica e eram desmascarados pelos fatos, ficando comprovado que não havia e não haveria qualquer respeito aos preceitos legais e aos direitos dos acusados. E a condenação daquela farsa de julgamento foi o único fundamento invocado pelo Ministério Público e acolhido na decisão da Meritíssima Juiza.

A análise cuidadosa de todos os elementos aqui referidos levou o Presidente da República a proferir decisão negando a extradição de Cesare Battisti, o que, obviamente, implicava a concessão de seu direito de continuar vivendo em liberdade no Brasil, onde não havia contra ele qualquer acusação da prática de ilegalidade. Um fato expressivo, que merece ser lembrado, é que houve reação absurdamente violenta de autoridades italianas, contariadas pela decisão brasileira, tendo sido registrados pela imprensa pronunciamentos extremamente grosseiros de Ministros do governo italiano, menosprezando o Brasil, ofendendo o povo brasileiro e negando, com grande ênfase, qualquer valor aos juristas brasileiros, inclusive magistrados. Eis o que foi dito pelos Ministros italianos e publicado pela imprensa da Itália: « O Brasil só é conhecido no mundo por ser uma república bananeira e por suas dançarinas e não por suas produções e atividades jurídicas ».

Depois de tomada a decisão presidencial, negando a extradição e concedendo a Cesare Battisti o direito de permanecer em liberdade no território brasileiro, passou-se a cuidar da regularização formal de sua permanência, pelos meios legalmente previstos. Esse ponto foi resolvido e regularizado por meio estritamente legal, pelo órgão federal competente, o Conselho Nacional de Imigração, que, obviamente, verificou e analisou todas as circunstâncias da entrada de Battisti no Brasil sem cumprimento das formalidades legais, assim como as atividades que ele vinha exercendo em nosso País. A conclusão, formal e absolutamente legal, do Conselho, foi que, pelo conjunto de todos os elementos que deveriam ser considerados e pelas regras jurídicas que regulamentam as mais diversas hipóteses de ingresso no País, considerando, inclusive, situações excepcionais que devem ser reconhecidas e acolhidas, deveria ser concedido a Cesare Battisti o visto de permanência, o que foi formalizado por decisão de 22 de Agosto de 2011. É importante observar que na própria legislação existe a distinção entre o visto de entrada, para quem ainda não está no território brasileiro, e a regularização da permanência, para quem já se encontra no território brasileiro mas depende de formalizar essa situação, obtendo o documento de reconhecimento da regularidade.

A Resolução Normativa n° 27/ 1998, do Conselho Nacional de Imigração, estabelece, no artigo 1°, que « serão submetidas ao Conselho Nacional de Imigração as situações especiais e os casos omissos, a partir de análise individual ». A esse dispositivo foi acrescido um parágrafo 1°, esclarecendo que « serão consideradas como situações especiais aquelas que, embora não estejam expressamente definidas nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerá-las satisfatórias para a obtenção do visto ou permanência. Foi precisamente essa via legal que levou à concessão da formalização da permanência de Cesare Battisti no Brasil, em liberdade e tendo garantidos os seus direitos, como previsto na Constituição. Não há, portanto, situação ilegal que dê fundamento à pretensão absolutamente injustificada de expulsá-lo do território brasileiro.

Aliás, é ainda oportuno lembrar que esse procedimento especial previsto na Resolução Normativa n° 27/ 1998 foi resultante, em grande parte, da ocorrência de muitos casos de pessoas que, perseguidas por motivação política em Países vizinhos do Brasil, conseguiram, pelos mais diversos meios, ultrapassar a linha de fronteira e ingressar no território brasileiro, onde buscaram condições de sobrevivência, com seus direitos fundamentais protegidos.

2) A Ação Civil proposta pelo Ministério Público Federal, pedindo a deportação de Cesare Battisti, e a decisão proferida pela mma. Juíza acolhendo o pedido, são juridicamente absurdas, pois, disfarçadamente, falando em « deportação » para dar a impressão de que não se trata de reiteração do pedido de extradição, ofendem preceitos jurídicos fundamentais, consagrados na Constituição brasileira.

Com efeito, diz a Constituição, expressa e claramente, no artigo 5°, inciso XXXVI, que « a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada ». Ora, se a lei não pode causar esses prejuízos é mais do que óbvio que ela não pode dar, e efetivamente não dá, competências ao Ministério Público e a instâncias do Poder Judiciário para que causem tais prejuízos. E é isso que se pretende através da Ação Civil aqui referida, que, aliás, não tem qualquer cabimento em casos como o que dá embasamento ao pedido e à consequente decisão. É importante ressaltar que a decisão da Meritíssima Juíza pretende anular ou reformar a decisão proferida pelo egrégio Supremo Tribunal Federal no caso Cesare Battisti, em 18 de Novembro de 2009. O que se tem aí é uma decisão da mais alta Corte de Justiça do Brasil, decisão transitada em julgada. Aliás, em vista desse absurdo cabe a propositura de Reclamação junto ao egrégio Supremo Tribunal Federal, como previsto no artigo 102, inciso I, letra « l », segundo o qual « Cabe ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua competência e a garantia da autoridade de suas decisões ».

A par disso, as decisões do eminente Senhor Presidente da República, de 31 de Dezembro de 2010, negando a extradição de Cesare Battisti e outorgando-lhe o direito de continuar vivendo em liberdade no Brasil, constitui ato jurídico perfeito, o mesmo podendo dizer quanto à decisão do preclaro Conselho Nacional de Imigração, concedendo a Cesare Battisti o visto de permanência. Assim, pois, também sob esses aspectos a Ação Civil Pública, aqui mencionada, é descabida, afrontando preceitos jurídico-constitucionais. Ocorre, ainda, que a Ação Civil Pública, que foi o caminho jurídico adotado pelo Ministério Público neste caso, não contém qualquer dispositivo que permita utilizá-la para  o fim de obter a extradição, expulsão ou deportação de uma pessoa. Assim, a Ação Civil Pública por meio da qual se pretende a expulsão de Cesare Battisti do Brasil é absolutamente infundada e nunca poderia ter sido acolhida como procedimento regular.

3) Em conclusão, tanto o pedido do Ministério Público quanto a decisão que o acolheu afrontam a ordem jurídica brasileira, não tendo fundamento legal e pretendendo atingir objetivos contrários a disposições expressas da Constituição. Assim, pois, cabem recurso e reclamação para que seja preservada a Ordem Jurídico-Constitucional brasileira. Essa é a minha Opinião Jurídica quanto aos aspectos jurídicos do caso Cesare Battisti, considerados os antecedentes jurídicos e a pretensão, a meu ver sem qualquer consistência jurídica, de reabrir o caso, anulando as decisões das autoridades máximas dos Poderes Judiciário e Executivo brasileiros, para tentar atender à intolerância e ao inconformismo das facções políticas extremadas que não têm qualquer respeito pelos preceitos éticos e jurídicos que regulam a convivência humana no âmbito internacional e na ordem constitucional dos Estados.

Essa é a minha Opinião Jurídica quanto à Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público perante a 1a. Vara da Justiça Federal da 1a. Região, pretendendo a expulsão ou deportação, absolutamente injustificadas, de Cesare Battisti, cujo direito de permanência em liberdade no território brasileiro decorre de decisões conjugadas do Supremo Tribunal Federal, do Presidente da República e do Conselho Nacional de Imigração, decisões rigorosamente legais e definitivas, que, como tais, devem ser respeitadas e cumpridas.

Paris, 12 de Março de 2015

Dalmo de Abreu Dallari

Advogado e Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Cesare Battisti

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