Por Passa Palavra

Papo reto: nos últimos tempos aquilo que se chama de “autonomismo” no Brasil virou um saco de gatos. E é a este campo político que este ensaio é direcionado, com toda a sinceridade.

Não existe nenhum autonomômetro para dizer quem é “mais autônomo”, mas é estranho perceber a classificação como “autonomistas” de coisas muito diversas. São ditos “autônomos” tanto um grupo de ciclistas quanto a organização de rodoviários para a luta por melhores condições de trabalho, ultrapassando a pauta do sindicato e mantendo com ele relações tensas e, no máximo, instrumentais (ver aqui e aqui). São classificados como “autônomas” tanto a luta dos garis no Rio de Janeiro (ver aqui) quanto a prática da separação caseira de lixo para a reciclagem, a criação de composteiras domésticas etc. Compartilham o epíteto “autônomo” tanto as lutas dos trabalhadores da cultura quanto o Fora do Eixo (pasmem!).

Saraus, mochilagem, terapias alternativas, assembleias de rua, cursos de “ação direta”, trabalho de base em bairros, parkour, “coletivos”, pichações (políticas ou não), diferentes formas de expressão corporal, criptografia de dados, couchsurfing, sindicalismo (alternativo ou oficial), deliberação por consenso, dietas alimentares, black blocks, grafite, pequenas sabotagens individuais no trabalho (às vezes compartilhadas em rede social, para azar de quem as publica originalmente), yoga, hortas domésticas ou em praças públicas, acampadas, software livre, passeatas, abaixo-assinados, certo franciscanismo militante, tudo isso é “autônomo”. A coisa chega ao ponto de ter se tornado folclórica a afirmação de que “autonomista é anarquista que não tem culhão pra se dizer anarquista” – evidentemente, dita não por qualquer anarquista, mas por um tipo específico de anarquista.

Quando coisas tão diversas são agrupadas sob o mesmo nome, ou se está a confundir as coisas, ou o conceito está a perder sua força política.

É ainda mais sintomático da confusão no campo dito “autonomista” que ele seja formado por um sem-número de grupúsculos. Antes que venham as críticas: ninguém tem a fórmula do tamanho “certo” para uma organização política, porque isto não existe. É possível interpretar, com certa razão, que esta organização fragmentária seja característica do atual momento das lutas sociais, quando a confiança nas tradicionais organizações da esquerda vem sendo minada aos poucos pelas contradições próprias a qualquer organização burocratizada e, circunstancialmente, pela hegemonia gestorial dos últimos vinte anos. Com a chegada da esquerda ao governo e o consequente acirramento destas contradições, novas formas organizativas estariam sendo ensaiadas aos poucos, tateando, na base da tentativa e erro, como em outros momentos semelhantes da História. A tendência que se verifica, entretanto, não é apenas a proliferação de organizações novas, mas também sua fragmentação e seu isolamento recíproco. Poucos são os grupos, organizações e “coletivos” que conseguem se articular além dos limites da cidade em que vivem seus integrantes; quando o conseguem, não é raro que tal articulação se limite à publicação de “notas de solidariedade”, em geral inócuas, e “comunicados” conjuntos redigidos num jargão próprio, ininteligível para quem não participe da “cena”. Integrantes destes grupúsculos conhecem-se, frequentam-se mutuamente, uns vão aos eventos dos outros para “cheirar-se” e reforçar-se, mas são sempre as mesmas pessoas fazendo as mesmas coisas, como num clube fechado em que poucos podem entrar. É sua fragmentação e seu isolamento recíproco que justificam a qualificação destas organizações como grupúsculos, não seu tamanho.

Num contexto político de crescente polarização e acirramento de conflitos, o campo “autonomista” influi apenas episodicamente sobre as lutas do presente. As jornadas de junho de 2013, embora representem um momento mais espetacular de convergência entre as lutas ditas “autonomistas” e as lutas políticas mais amplas, foram um ponto fora da curva. Nelas, uma entre muitas táticas autonomistas mostrou enfim seu sucesso; as lutas de 2014 e 2015 demonstraram à saciedade que esta tática tinha limites severos. E não se trata de falta de “rumo” ou de “orientação política”; não há quem integre o campo dito “autônomo” sem afirmar frequentemente sua convicção revolucionária, e a sinceridade desta entrega, desta militância desinteressada e sincera, dos tantos sacrifícios pessoais vividos neste campo, estão fora de questão. Nem tampouco se trata de “falta de formação adequada de quadros”, pois no campo “autonomista” não faltam os debates, os círculos de leitura, os “textos”. Há, inclusive, muito mais formação neste campo que em outros setores da esquerda.

É hora de uma conversa séria. A burocratização das organizações da esquerda já foi bastante debatida (ver aqui, aqui e aqui), e este debate seguirá em pauta. A hora pede outro debate, centrado na constatação de que, hoje, à esquerda da esquerda todos os gatos são pardos, e nenhum deles assusta. É hora de lançar luzes sobre a questão.

Não se propõe debater aqui modelos de organização, como alguns certamente já esperavam. Acreditamos que as formas adequadas de organização são encontradas pelos lutadores sociais no calor das lutas e a partir da confrontação entre suas próprias experiências e aquelas acumuladas ao longo dos anos pelos setores que lhes são mais próximos. Adicionalmente, a história da luta dos trabalhadores contra o capitalismo indica que as formas de organização surgidas da cabeça de uns poucos iluminados são inúteis – ou, melhor dizendo, servem apenas para carrear a postos de poder estes poucos iluminados.

Não se propõe debater aqui sobre conjuntura, mais uma vez. As discussões conjunturais, conquanto sempre necessárias, têm sido sobrecarregadas pelo jargão, e se tornaram repetitivas em demasia. É como se a mesma conjuntura se repetisse ao longo do tempo em textos sucessivos, como num loop; como se às mesmas fórmulas surradas fossem acrescentados apenas os fatos e dados do momento para diferenciar os textos de agora dos textos de vinte, cinquenta, cem, cento e cinquenta anos atrás; como se o importante fosse reforçar no campo tático elementos cujo sentido só se percebe no campo estratégico, ao invés de fazer deste último um conjunto de objetivos capazes de orientar ações altamente flexíveis naquele primeiro campo.

Não. Nada disso. A conversa é outra. O debate proposto é mais denso que uma simples discussão conjuntural ou uma crítica circunstanciada; trata-se de investigar, compreender e debater as condições de eficácia política da luta autônoma. É uma conversa sobre o conteúdo da autonomia. O debate sobre os fins, sobre os objetivos da luta é pressuposto para o debate sobre os meios e instrumentos de luta; o debate público sobre a questão da autonomia pode contribuir para aprofundar outros debates mais sensíveis sobre tática, estratégia e organização no atual momento. Sem pretender estabelecer fórmulas prontas, algumas questões fundamentais serão apresentadas de modo incisivo e provocativo como pontapé inicial. E o que sair daí, é lucro.

As três últimas imagens que ilustram o artigo são obras e imagens aproximadas dos trabalhos de Andrew Myers.

A série Reflexões sobre a autonomia contém 6 partes, com previsão de publicação de uma parte a cada domingo.

21 COMENTÁRIOS

  1. É um tema importante para o momento e a iniciativa de chamar a atenção a essa questão da “autonomia” é oportuna.
    Primeiro apesar de tantas organizações se reivindicarem autônomas não quer dizer que o são. Por exemplo, a China, URSS ou Cuba se nomearem comunistas, não os torna realmente comunistas, nem o PT dizer que é de esquerda faz ele ser.
    Autonomia é importante, na minha opinião, na perspectiva do atrelamento ao Estado e suas instituições(partidos, sindicatos, ong’s, etc). Essa autonomia é importante porque quem se diz de esquerda para que não sejam feridos os princípios de tal orientação politica, a saber: solidariedade total aos trabalhadores e oprimidos, nunca trair a classe trabalhadora. E a historia nos mostra que através do Estado não dá para fazer nada sem “sujar as mãos” (de sangue é claro). Essas premissas unem organizações diferentes, com “princípios político” destintos, mas com “princípios humanos” iguais.
    Autonomia do Estado é importante, mas não podemos negar politicas publicas que favorecem as pessoas mais castigadas da nossa sociedade, como bossa família ou assistência a moradia, mas isso já é outra conversa, pois não resolve os problemas sociais.
    Aguardarei as próximas postagens.

  2. Conversava certa vez com um militante mexicano, e ele me perguntou: “o que há de experiências autônomas no Brasil hoje?”
    Engatilhei logo uma resposta automática para falar dos tais movimentos “autônomos” daqui, que assim chamamos genericamente por serem “horizontais” e independentes do Estado, ONGs e partidos. Mas a resposta frustrou o sujeito, que esperava outra coisa bem diferente.
    Quando se fala “autonomia” no México se está falando de experiências de autogoverno de comunidades (em sua maioria indígenas e camponesas) em seus territórios. O Zapatismo em Chiapas é um exemplo emblemático disso, mas hoje são centenas de municípios no México que exercem sua “autonomia” ao rejeitarem as eleições oficiais, os serviços do Estado, organizarem sua própria segurança e recursos naturais, tomarem decisões por assembleias comunitárias, etc (ver: http://passapalavra.info/2012/04/57142, http://passapalavra.info/2012/06/59889). Rejeitam inclusive – dialogando com o comentário anterior do Fabio Cristovam – as tais “políticas públicas”, mesmo se tratando de comunidades por vezes bastante pobres.
    O que há em comum entre essa concepção de “autonomia” e aquela que concebemos aqui, que é quando muito, uma movimentação popular que reivindica uma demanda ao Estado sem se submeter ao seu jogo?

  3. Belíssima introdução do que vamos ler. E o texto???
    Isso parece um trailer de filme a moda de hollywood. Provoca a assistir o que VAI SER, nada mais.

    O PP começou a publicar artigos tipo ‘orelha do livro’, pra manter maior constância nas visualizações do site?
    Uma pequena parte por semana… desse jeito a ultima vai ser apenas a bibliografia das últimas 5.

    camaradas, sinceramente…

  4. Já passou da hora de discutir isso… eu tô nessa espera faz só uns dez anos, ou talvez doze, sei lá…. Me afastei da militância, o sistema quase me engoliu e podia ter sido pior. Mas ainda tô aqui e tenho certeza que muitos devem hibernar num nível mais profundo que o meu. Tá todo mundo aí, uma vez nesse caminho, é difícil sair dele… A falta de perspectiva de organização e de ver os esforços renderem algo mais do que boas amizades já desarmou muitos de nós. Tá na hora de ir pro regaço, nossos inimigos estão cada vez mais perto e mais fortes. O trem da História vai passar bem antes das onze…

  5. auto-governo sem avançar contra o sistema capitalismo soa à comuna hippie. Mas certamente é muito mais do que ciclistas auto-organizados.
    A grande questão não seria justamente transformar o autogoverno em um movimento de vanguarda capaz de transbordar-se e contaminar setores alheios? Como fazer do autogoverno um movimento centrífugo e não centrípeto?

  6. Opa, então o PP já ganhou até Supervisor de Marketing nos comentários!
    Mas esse aí tá pouco ligeiro, porque faz uns anos que saem artigos divididos em parte por aqui. Mas de boa, vai ver o cara ficou tão na fissura do assunto que queria ler uma tese pronta pra já…

  7. O Supervisor de marketing pode ir se divertindo lendo os textos indicados nos links no decorrer do texto, e melhor ainda, pode mandar pro passapalavra algum artigo redondinho (e claro, em uma parte só), pra colaborar com o debate.
    A opção de publicação em partes tem defeitos, como esse de demorar e tal, mas acho que tem a parte boa de que os leitores leem de fato os textos menores. Eu mesmo sempre escrevo textos grandes e conto nos dedos quem lê eles até o fim. Além disso lançar em partes permite ao site incorporar nas partes seguintes algo massa que surja aqui nos debates, imagino. Se essa ojeriza a textos grandes é sinal dos tempos obscuros facebookianos em que estamos, ou de baixa qualidade na educação, não sei, mas não falta exemplo de gente que não lê textos grandes nem a pau. Imaginem só, o Carlos Nelson Coutinho, intelectual renomado e tal, dizia que era um crime lançar livros com mais de 500 páginas, e que ele não lia livros maiores que isso. Por isso não surpreende tanta gente que não lê nem o livro primeiro do Capital até o fim. E só gastei tantas linhas sobre o assunto porque acho que tem tudo a ver com autonomia das lutas: se nem grandes intelectuais estudam, imagina a base? E sem esse lastro de leituras e tal, acaba se dando uma tendência de a base aceitar a organização vertical da coisa, deixando os “intelectuais” e que “detem o saber” e talz dirigir a luta, também porque a base trabalhadora não sente de primeira nenhuma legitimidade em questionar os dotôres. Isso tem a ver com muitas outras coisas pra além da leitura, tipo, costume com a lógica de igreja e de padres e pastores indicando o caminho, mas acho que o lance da leitura é importante, porque ao desconhecer o legado de lutas da classe a tendência a repetir os erros se põe com mais força. Quantos trabalhadores sabem dos defeitos da forma bolchevique de organização das lutas? Quantos sabem que existem outras formas além do sindicato e tal? Daí o eterno aprender tudo quase desde o zero, ao lutar. Isso coloca no debate o papel da educação na formação da consciência crítica. E será que o aprender sem ser pela prática de luta é de fato um atalho?

  8. Com certeza não foi isso cara. Foi no celular, não dava pra clicar duas vezes. Na duvida, vou repetir a experiência pra ver o que acontece.

  9. Pra quem interessar um texto sobre o movimento da Autonomia na Itália entre 1973 e 1979. Uma genealogia do movimento autônomo. A Itália foi um dos primeiros paíse a criar um conjunto de leis anti-terroristas tendo como alvo os grupos políticos, logo após o crescimento do movimento autônomo em vários segmentos. Mulheres, gays, jovens, operários…

    http://pt.scribd.com/doc/143476298/Um-Piano-nas-Barricadas-Autonomia-Operaria-1973-1979-Marcello-Tari#scribd

    Um piano nas barricadas – por uma história da autonomia

    Lavorare con lentezza.

  10. Logo no início o texto diz: “A coisa chega ao ponto de ter se tornado folclórica a afirmação de que ‘autonomista é anarquista que não tem culhão pra se dizer anarquista’ – evidentemente, dita não por qualquer anarquista, mas por um tipo específico de anarquista.” Os autores do texto poderiam explicar de onde veio a tal afirmação, o contexto, etc? Da forma como está parece que os autores andam usando conversas de botequim como fonte para um texto que pretende “investigar, compreender e debater as condições de eficácia política da luta autônoma”.

  11. Meu comentário não é sobre o texto, que no caso é só uma apresentação sobre tema que será discutido nos seguintes.

    Por ser essa parte I uma parte que não está discutindo nada, me chama atenção a quantidade de comentários, enquanto em outros textos completos por este site, os comentários são poucos.

    Creio que o fenômeno se dá pelo tema levantado já despertar as paixões dessa coisa pequena que se chama “identidade”. Pelo jeito tem muita gente preocupada em discutir identidade política.

    Enquanto isso a direita avança, com uma massa anti-identitária, além de um genérico antipetismo ou anticomunismo.

  12. Leo,

    O principal problema dos movimentos conhecidos por “autônomos” atualmente é o fato de eles serem rasgados por disputas identitárias e desestabilizados por discussões identitárias, com a esquerda identitária colocando tais discussões (quando não tais disputas) como precondição para o avanço da luta. Com muita facilidade encontra-se na internet textos que demonstram o quanto certas pautas e certas discussões são consideradas condições primordiais para se começar a falar em luta. E o mesmo acontece na militância cotidiana. É natural, portanto, que aqui tenha lugar uma discussão em torno da identidade “autônoma” como condição primordial para se começar a falar em autonomia. E por aí a coisa vai.

  13. Acho que a grande força da autonomia no contexto brasuca que eu percebo é construir uma linha de continuidade e de coerência entre subjetivismos reprimidos e pulverizados individualmente pelo capital e a ação coletiva objetiva. Mas isso é bem limitado, principalmente se não houver um espaço de articulação dessas autonomias, capaz de orquestrar ações combinadas e golpes de misericórida contra as organizações de direita, pensar e praticar a própria subsistência e sobrevivência material dessas organizações ou pensar um programa de trabalho de base com o objetivo de formentar espaços de organização popular autônoma pautados pela autonomia como valor e princípio e orientação. Sobre o exemplo do zapatismo ser tratado como referência por vários autonomistas, acho importante lembrar o caráter hierarquizado do EZLN e o localismo isolacionista das comunidades autônomas. Não é possível negar o Estado e o Mercado sem pensar na negação prática de seus pilares (Lei, forças armadas, meios de produção). Para ser Autônomo politicamente é preciso estar “liberado” em algumas dessas frentes… Por isso que entre o trabalho local de base (que sempre pode dar resposta ao meu subjetivo reprimido) e o trabalho de base dentro de uma organização de massas (que tende a frustrar os subjetivismos fundados em uma teoria da rebelião), pendo para ficar no segundo…

  14. O textos deixa alguns nós convenientes, que pretendo aqui desatar. Não liguem pras conveniencias que vou deixando pelo caminho.

    Primeiro em relação aos usos da palavra Autonomia e Autonomista. É óbvio que ela vai ser usada pra designar várias coisas em vários contextos, assim como qualquer palavra. O texto mostra essa distinção de uma maneira deveras oportuna. Mostra que ‘autonomo’ é usado como ‘independente’ (no sentido histórico de independência de classe) e como ‘alternativo’ (hipsters, galerinha da militância cultural, dos saraus, etc). Provavelmente para mostrar o quanto está bagunçado e o tanto preferem a primeiro uso em relação ao segundo.
    O problema é. A luta dos trabalhadores independente do estado, de tudo e de todos sempre existiu. Seja feita por comunistas, anarquistas ou nenhum dos dois. Esse uso da palavra autônomo para designar uma greve independente dos aparelhos estatais e patronais não tem a ver com o Autonomismo (corrente política). Quando alguém falou que a greve dos garis foi autonoma, ele não quis dizer que foi autonomista, A NÃO SER QUE alguém queira fazer essa ligação conveniente.

    Segundo, em relação ao autonomista ‘da separação de lixo reciclável’. O texto, ao meu ver, coloca uma problemática em cima de certas atitudes dos ‘militantes’ meio hippies, mas não explora de fato porque elas são ridículas. Acho conveniente o retorno a discussão da Ideologia Alemã, pois Hegelianos de Esquerda adoram ficar apontando as atitudes dos seus coleguinhas Hegelianos de Esquerda por não serem ‘de esquerda’ da maneira exemplar. Será que é o caso com os Autonomistas?

    E por fim, o fim do texto. Debater o conteúdo da autonomia, os fins e objetivos da luta autônoma. Tão vago quando meu saldo bancário. Será que os Autonomistas vão debater um programa revolucionário? E não usaram a palavra programa porque não está na listinha de palavras autonomas do parágrafo 3?
    Pra que esse texto inicial afinal? Acho que eu acrescentaria na lista do parágrafo 3 que autonomistas são conhecidos em dividir textos em 6 partes, mesmo que talvez era melhor dividir em 3 ou 4.

  15. jura que em 2015 tem gente preocupada com a divisão por partes de textos publicados na internet?
    Devem ser os hipsters que só leem textos datilografados em máquinas de escrever.

  16. Nessa discussão me parece importante discutir algo pegando uma carona na afirmação do L.Fritura de que a luta dos trabalhadores independente do Estado, de tudo e de todos, sempre existiu. É verdade, escravizados, camponeses, artesãos, operários, associados/colaboradores, sempre lutaram, como também herdeiros, vizinhos, amantes, discípulos, etc.

    Haverá uma especificidade das lutas das classes trabalhadoras em relação ao Estado, de modo que sendo “independentes” (não servindo – ao menos diretamente – à sua sustentação, capilarização social e reprodução renovada de seus quadros), não possam ser alheias? “Alheio” aqui no sentido de ideologicamente indiferente ou “alternativo” mesmo, como ilustrado nos exemplos do texto.

    O que define o caráter autônomo das lutas, afinal, não será justamente essa centralidade do Estado no bojo dos enfrentamentos? Toda luta de classes não é sempre política, em sentido amplo? Não visa ao poder do Estado? (dentre as variáveis da “tomada do palácio”, instrumental, até a constituição de novos poderes e legitimidades). O autonomista não é, assim, uma espécie de sedicioso?

  17. Parabéns pela iniciativa de abrir a conversa, acredito ser mais que necessária. E sugiro que se amplie para outras denominações como autogestão e ação direta, que também viraram um saco de gato
    O que tem de experiência autogestionária financiada por edital… As palavras tem história e são forjadas na luta. E que não se confuda o apreço pelo rigor com elas com academicismo e/ou patrulha ideológica. Vou acompanhar.

  18. Para contribuir…um texto publicado em 2001 mas com surpreendente atualidade. Editorial da Revista nº 12, disponível em http://www.inventati.org/contraacorrente/

    EDITORIAL
    Crítica da ideologia da autonomia
    Pelo menos desde há cinco anos, os relatórios do Banco Mundial vêm apresentando uma série de recomendações aos Estados nacionais e poderes locais, recomendações que, à primeira vista, parecem encontrar-se com demandas históricas dos movimentos sociais. Trata-se de recomendações de ampliação da participação social nos orçamentos, de construção de mecanismos de controle sobre os gastos públicos e prioridades de investimentos por parte dos cidadãos (com prioridade ao combate à corrupção), de políticas públicas e projetos não-governamentais que estimulem a auto-organização em cooperativas de produção e consumo mercantil, de ações voluntárias de solidariedade comunitária, de formas autônomas de auto-sustentação e inclusão no mercado, de auto-administração em aspectos variados da vida social etc.
    Assim, todo tipo de iniciativas vem sendo encaminhado, seja pelos governos, as igrejas, os movimentos sociais ou associações independentes de cidadãos: hortas comunitárias, coletivos de reciclagem de lixo, preservação de lagoas e parques ecológicos, produção coletiva de alimentos não-prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, cursos de qualificação de mão-de-obra, produção alternativa e independente de meios locais de comunicação, projetos de educação nas periferias… A sociedade capitalista – seus governos, párocos, partidos, ONG’s, sindicatos – parece ter descoberto, de uma hora para outra, que as pessoas querem participar, querem controlar, querem decidir. Mais ainda: que essa é hoje uma necessidade para que a sociedade, imersa numa profunda crise econômica e social mundial, possa continuar existindo. Afinal, acompanhando essas recomendações vem todo um discurso ideológico sobre autonomia, cooperação, democratização, participação, solidariedade.
    Por outro lado, essas recomendações, saídas da esfera dos especialistas da economia, aparecem cada vez mais para um número crescente de pessoas como constitutivas de um projeto viável de gerenciamento da sociedade, projeto que assume sua forma acabada nos programas de governo das “esquerdas oficiais” em vários países do mundo (com destaque crescente para o “orçamento participativo”). Elas comporiam um caminho real de humanização do capitalismo “globalizado”, um elenco de reformas econômico-sociais e políticas que seria um contraponto sério a um mercado mundializado cada vez mais instável, que se apresenta para a maioria dos cidadãos como independente das instituições políticas democráticas de cada país e, mais ainda, causador de profundas desigualdades sociais. Estaria assim se constituindo um projeto de reforma social que teria a dupla vantagem: tanto de democratizar, ampliando a participação e o espírito de iniciativa e autonomia das pessoas em relação aos assuntos de sua vida social, quanto de minorar – e quem sabe solucionar – os problemas sociais. O chamado ao qual uma quantidade crescente de pessoas tem atendido parece conduzi-las, a partir de suas próprias experiências cotidianas de iniciativa e participação, a encontrar-se positivamente com esses projetos políticos nacionais, projetos cuja viabilidade parece ser demonstrada já por essas iniciativas autônomas das quais participam. A própria instituição do Fórum Social Mundial, como lugar do encontro dessas iniciativas da “sociedade civil” com os grandes organismos da esquerda oficial e do Estado, evento que teve e parece que continuará a ter grande repercussão, demonstra que é essa hoje uma perspectiva que “veio para ficar”, uma perspectiva de fôlego, que deve nos próximos anos adquirir uma crescente importância: trata-se da elaboração de um projeto de reforma social e administração do sistema com dimensões cada vez mais universais. Afinal, o que isso realmente significa, segundo a nossa reflexão?
    A derrota e a integração
    Como tudo no mundo, esse projeto ora em elaboração tem uma história; e essa história tem seu começo precisamente nos grandes movimentos contestatórios que, principalmente a partir de 68, iriam se desenvolver nos países industrializados, principalmente na Europa ocidental, mas também no Leste europeu.
    Estamos falando dos movimentos que, num primeiro momento, sob diversas formas, passaram a questionar os sistemas hierárquicos que se fortaleceram enormemente durante o grande desenvolvimento econômico que os países capitalistas conheceram nas duas décadas que se seguiram à Segunda Guerra; pouco a pouco, quase tudo passou a ser contestado: os costumes, a cultura, o “perder a vida para ganhá-la”, a moral dominante… uma série de novas questões passou a ser apresentada, em busca de um (novo) sentido para a vida.
    Em seguida, essa contestação assumiu o conteúdo de uma crítica ao próprio sistema, apresentando-se e desenvolvendo-se como contestação claramente proletária. Já em 1953, na Alemanha Oriental, os operários metalúrgicos de Berlim insurgem-se contra a ditadura stalinista exigindo um “governo dos metalúrgicos”. Em 56, na Hungria, Conselhos Operários autônomos são formados, exigindo a democratização da sociedade e o real poder dos trabalhadores, enfrentando tanto os “reformadores stalinistas”, quanto em seguida as tropas do Pacto de Varsóvia. Em 68, é a vez dos trabalhadores tchecos, que, também enfrentando uma divisão da cúpula totalitária dos stalinistas no poder, organizam-se de modo autônomo. A partir das greves com ocupação de fábrica em maio de 68, na França, movimento que pela sua força e repercussão teve profundo impacto sobre as forças iniciais de contestação, inclusive sobre as lutas operárias que desde a insurreição proletária húngara em 56 pipocaram em diversos momentos na Europa ocidental, abriu-se todo um novo período de lutas proletárias: nos EUA, na Alemanha ocidental, na Espanha franquista, em Portugal, na Grécia… mas, particularmente na Itália, se desenvolveu talvez a mais rica experiência de lutas autônomas em um país capitalista industrializado naquele momento (ver, a esse respeito, os artigos publicados em contraacorrente 11, set-dez/00).
    O que, fundamentalmente, durante toda a década dos 70, passou a ser posto pelas diversas formas de contestação d@s proletarizad@s desses países foi a recusa intransigente a continuar submetid@s ao mando, à passividade, à hierarquia, à falta de controle sobre a própria vida, à banalização da existência, ao racismo, ao patriarcado – enfim, a tudo isso que a sociedade de mercado e do trabalho assalariado necessariamente implica. Em suas diversas feições, aquel@s que fomos submetidos ao assalariamento e a mercantilização, insurgiram-se pelos mais diversos motivos e demandas contra a insuportável ordem de coisas estabelecida.
    As classes dominantes reagiram, por um lado, com uma feroz repressão às formas autônomas de luta e organização d@s operári@s; por outro, com medidas econômicas de reestruturação produtiva (fundamentalmente como forma de responder à recusa do trabalho que se estendera enormemente naqueles anos); e, ainda, com medidas de integração parcial das demandas dos movimentos contestatórios. Particularmente, sobre esse último aspecto, é notável como houve todo um giro no cinema e na publicidade das mercadorias oferecidas, cujas temáticas passaram a mobilizar os anseios de liberdade e independência e a buscar ultrapassar determinados tabus morais tradicionais; nesse momento também cresce e se afirma o chamado “cinema de arte”, como contraponto à contestação ao lixo cultural mercantil, e a contracultura surge como um novo nicho de mercado. A recém descoberta categoria sociológica da “juventude” passou a ser um conceito mercadológico central. A natureza aparece como novo cenário do turismo e do lazer, em resposta ao nascente movimento ecológico anticapitalista. A irresponsabilidade moral, o individualismo, o egoísmo argumentado são apresentados como resposta às demandas de autonomia individual. As artes das neovanguardas são levadas para os museus e exposições oficiais, para fazer companhia às obras do modernismo do início do século.
    Enfim, na medida em que, devido a repressão, o novo movimento contestatório não conseguiu subverter as relações sociais existentes, todo um elenco de questões levantadas pela crítica proletária ao sistema do trabalho assalariado e das hierarquias foi pervertido e encampado pela ordem. O sistema se esforça, desde então, a falar a voz d@s contestador@s, enquanto ex-contestadores falam agora a voz do sistema. A astúcia da ordem está exatamente em apresentar como intenção sua aquilo que, antes, fora apresentado contra ela; e ela agora, ao encampá-lo, apresenta-o – e com razão! – ao seu favor.

    A “inclusão” no mercado
    Quando hoje o sistema busca mobilizar para a administração da sociedade existente esses anseios históricos de participação e decisão, ele o faz a partir desse aprendizado adquirido com o enfrentamento ao movimento contestatório dos 60 e 70, que repercutiu ainda nos 80, e precisamente na medida em queas demandas daquele movimento marcam ainda hoje, e de modo aparentemente definitivo, a sensibilidade de grande parte das pessoas: querer participar e decidir não é mais um tabu, pelo contrário, virou realmente moeda corrente. Acontece que, ao assim fazer, o sistema retira desses anseios de participação e decisão todo caráter contestatório: eles se tornam, assim, apenas uma ideologia, umafalsa consciência que busca realizar-se num mundo em que, mais do que nunca, toda participação éfalsa e toda decisão impotente. Afinal, hoje mais do que nunca, a economia capitalista – e portanto toda a vida cotidiana que se encontra sob seu domínio – resiste a qualquer poder de decisão das mulheres e dos homens concretos;mesmo as corporações
    monopolistas mundiais e seus organismos internacionais de planejamento e controle (Banco Mundial, FMI etc) nada mais fazem do que buscar reagir de modo racional (racionalidade empresarial desde logo determinada pelos critérios de rentabilidade) aos desmantelos de um mercado mundial incontrolável. Agora, como antes, a ideologia da participação e da autonomia, que se torna por esses dias a ideologia dominante do mercado mundializado, só pode realizar-se contando para isso com a integração das iniciativas dos de baixo, capitalizando esse valor-de-uso produzido pelas experiências de resistência.
    E “capitalizar” é precisamente o objetivo central dessa ideologia; pois, como toda ideologia, embora sendo uma consciência falsa, responde a necessidades reais do sistema e tem influências reais sobre a vida. O que, antes de tudo, busca-se com a ideologia da autonomia e da participação é manter a universalização das relações mercantis e monetárias, através da inclusão no mercado de um maior número possível de pessoas. Expliquemo-nos.
    Embora sejam uma conseqüência direta e inevitável da atual configuração do capitalismo mundialmente monopolizado, os atuais níveis de marginalização da compra-e-venda (marginalização que atinge países e continentes inteiros, além de enormes parcelas da população nos próprios países capitalistas centrais) não são desejados pelos Senhores do mundo. Nos atuais níveis de integração da economia mundial, os seus diversos setores e ramificações estão todos entrelaçados e articulados numa hierarquia em cujo topo se situa um pequeno número de corporações; e, pelo peso e a influência reais dessas corporações sobre a produção e a venda totais, toda compra-e-venda é, direta ou indiretamente, compra-e-venda com elas. Todo comprador, todo vendedor “marginalizado”, ainda que não seja um comprador direto ou vendedor direto de alguma corporação capitalista, tem influência, na atual crise, sobre o próprio processo de valorização do capital.
    Sem dúvida, uma simples relação monetário-mercantil (por exemplo, a que determinadas cooperativas estabelecem internamente e entre elas) não é “em si mesma” uma relação capitalista, pois essa exige o assalariamento, mas uma “circulação mercantil simples”; apesar disso, do ponto de vista da economia total, do movimento inteiro do capital em busca de autovalorização, essa simples relação monetário-mercantil não lucrativa termina sendo necessária. Primeiro, porque é na esfera das simples compras-e-vendas das mercadorias que uma mercadoria, entre elas, pode ser comprada e vendida: a força de trabalho. Assim, manter a relação mercantil-monetária como forma de toda relação em que os homens busquem produzir sua existência material, é mantê-los incluídos no sistema universal da compra e venda da força de trabalho, do assalariamento, logo, do lucro.
    Mas essa necessidade mortal do capitalismo se estende ainda a um segundo aspecto: é que qualquer cooperativa de produção ou de consumo compra ou bens de produção ou bens de consumo dos grandes produtores; como qualquer experiência educativa forma mão-de-obra para o capital; como toda autonomia dos coletivos de trabalhadores no interior das grandes empresas, segundo as novas formas de organização da produção, continua inteiramente submetido ao disciplinamento e à hierarquia do trabalho assalariado… e assim por diante. Não por acaso todo o esforço dos organismos internacionais do capital de financiar projetos de “ocupação e renda” e de “economia solidária”, justamente buscando trazer e manter no interior da lógica mercantil as alternativas de sobrevivência d@s marginalizad@s do mercado.
    Muit@s falam em exclusão. Na verdade, ninguém, a rigor, está “excluíd@” do mercado, pois também @ desempregad@, aquel@ que nada possui senão sua força de trabalho e, portanto, tem que vendê-la para sobreviver, é um(a) proletarizad@. Também el@ só tem acesso ao que precisa através das relações de compra-e-venda. Mas, claro, estar impossibilitad@ de vender sua força de trabalho, de ter dinheiro para comprar os valores de uso de que necessita para viver, significa estar incluíd@ (isto é, submetid@) no mercado em condições de profunda marginalização. Essa é sempre uma possibilidade dada pela própria existência do assalariamento, da dependência ao salário, do domínio da mercadoria e do dinheiro sobre o conjunto da vida social.
    É precisamente a mesma a lógica que impõe o combate à corrupção como proposta central dos órgãos de gerenciamento internacional do capital, na qual se incluem medidas de “participação e transparência na administração da coisa pública”. Pelos cálculos de tais organismos e seus assessores estima-se que, no Brasil, por exemplo, o capital privado perca cerca de 200 milhões de dólares anualmente devido a corrupção (através de propinas das empresas aos governantes, legisladores e técnicos; desvio de dinheiro público que fragiliza a infra-estrutura produtiva a cargo do Estado e assim por diante…). Em reação ao caráter “antieconômico” da corrupção, segundo recente relatório do Banco Mundial, cerca de 40 a 50 bilhões de dólares deixaram de ser investidos nos últimos tempos. Ora, o combate à corrupção (que, na verdade, é congênita ao sistema, mas numa proporção “aceitável” à lógica de reprodução do capital) é de fundamental interesse para as corporações transnacionais; daí, exatamente, todo o chamado à criação de mecanismos institucionais de “controle cidadão” sobre o orçamento e os gastos públicos.

    A “dialética” do capital e a autonomia como ideologia
    Quando o sistema busca hoje, de todas as formas, integrar as formas de resistência e os anseios de participação, decisão e autonomia, ele nada mais faz do que aquilo que é mais próprio a esse sistema: transformar em mercadoria tudo aquilo que pode ter utilidade real ou ilusória, submeter a si tudo o que lhe é contrário, capitalizar todo valor de uso; essa astúcia lhe é essencial, é a sua malícia mais estruturante. O valor de uso de uma mercadoria, cujas qualidades se relacionam com a satisfação de nossos desejos e necessidades, é o oposto do valor de troca, que se relaciona apenas e exclusivamente com o dinheiro que lhe é equivalente; mas a mercadoria é sempre a unidade de valor de uso e valor, sob o domínio deste último. Assim, é próprio da dialética do capital – cuja célula elementar é a mercadoria – ter o que lhe nega como parte de sua própria estrutura.
    Mas as coisas que se tornam mercadorias (roupas, móveis, livros…) são apenas coisas: não têm vontade, nem ação. A sua transformação em mercadoria só acontece porque os homens nos relacionamos uns com os outros como produtores privados e independentes; enfim, as coisas só são mercadorias devido a forma das nossas relações sociais. Assim, as coisas, por elas mesmas, não podem resistir à forma mercadoria, não podem negá-la. Quando falamos que o valor de uso das coisas “nega” o seu valor de troca, estamos dizendo apenas de uma “negação” conceitual, uma contradição entre suas qualidades objetivas e o modo mercantil como nos relacionamos com elas. Só os homens podem de fato negar a forma mercadoria das coisas ao negarem as relações sociais que transformam tudo – inclusive e antes de tudo a si próprios – em mercadoria.
    Por isso, quando o sistema busca astuciosamente integrar a si o que lhe nega – as formas de resistência d@s proletarizad@s e seus anseios de participação e decisão – ele tem justamente que lhe retirar todo caráter negativo; ele tem que transformar em inclusão na lógica do sistema mercantil aquilo que, de início, busca negá-lo; ele tem que, enfim, transformar em positiva a nossa vontade de controlar as nossas vidas. Somente ao perder seu caráter negativo, subversivo, contestatório, as demandas d@s de baixo podem ser integradas. Ao não serem mais do que uma negação interior ao próprio sistema, uma negação que é parte do sistema, como o valor de uso é parte da mercadoria, as demandas de participação e decisão, de iniciativa e autonomia tornam-se uma mera ideologia.
    A autonomia não é o oposto do capitalismo; pelo contrário, o capitalismo necessita sempre de um certo grau de autonomia dos indivíduos. Antes de tudo, precisa da autonomia dos produtores de mercadorias, que se encontram no mercado como independentes uns dos outros; que, por não decidirem coletivamente a produção e a distribuição da riqueza social, mas sim às costas do diálogo e da comunicação realcom os outros, consideram-se autônomos. Claro, essa é uma autonomia ilusória, pois o produtor de mercadoria está sempre submetido às leis das trocas de mercadorias sobre as quais não têm nem podem ter qualquer poder; mas, ainda assim, é uma autonomia real: a autonomia do indivíduo solitário e egoísta da sociedade burguesa, uma autonomia frente aos outros.
    Não é à toa que este conceito foi pensado na filosofia burguesa da modernidade, com o filósofo alemão Immanuel Kant, mas tendo atrás de si toda uma trajetória do pensamento solitário, já em Descartes, e prolongando-se até o pensamento pós-hegeliano com Max Stirner e seu anarco-individualismo, com Proudhon e suas cooperativas produtoras de mercadorias: é que ele expressa as ilusões do indivíduo da sociedade de mercado de poder decidir suas próprias ações num mundo que, por todos os meios, demonstra-se impenetrável às suas pretensões subjetivas. A atual ideologia da autonomia tem sua raiz mais profunda naquilo que de fato ela sempre afirma, mesmo quando pretende negá-las: as relações mercantis.
    Chegamos assim, hoje, à caricatura das ilusões burguesas com a autonomia. O mundo da mercadoria se apresenta cada vez mais como o mundo da “diferença não negativa”, uma arca de Noé onde tod@s cabem: cada qual em seu lugar, após o ingresso devidamente pago e apresentado. Respira-se o espírito de autonomia em toda parte: autônomos se sentem os estudantes universitários do Brasil quando preferem fazer pic-nic ao invés de comprar um pacote turístico, autônomos se sentem os autonomistas italianos da Rede Ya Basta! e seus “tutti bianchi” antiglobalização; autônomos se sentem os especialistas do Direct Action Network (DAN) em seus treinamentos para “ação direta”, autônomos se sentem os que estiveram presentes no Acampamento Internacional da Juventude do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre; tão autônomos, enfim, como se sentem os coletivos ideológicos completamente apartados das lutas cotidianas e os grupos de ajuda mútua da Igreja e do Lions Club. Eles se sentem…
    Ao contrário, pensamos que a autonomia d@s proletarizad@s só pode ser a negação da autonomia do produtor de mercadorias e do trabalhador assalariado, pois esta é sempre a heteronomia do dinheiro e das leis cegas do mercado. A autonomia d@s proletarizad@s é, assim, uma autonomia que nasce não de uma qualquer idéia de homem e de razão, de um qualquer projeto de sociedade ideal, mas da luta cotidiana contra as alienações. Ela só pode ser o esforço de crítica e negação práticas do mundo coisificado, da hierarquia do trabalho assalariado e do poder separado do dinheiro e dos Estados.
    A luta d@s proletarizad@s e a negação como fundamento

    Na história das idéias, tanto quanto nas conversas cotidianas, a toda proposição sempre se opõe a pergunta pelo seu fundamento: “em que, afinal, você se fundamenta para dizer ou pensar isso?”, eis o que pensamos ou falamos quando ouvimos alguém falar alguma coisa sobre o mundo. Na filosofia, a resposta sempre foi buscada em uma espécie qualquer de absoluto – o logos, Deus, a Razão, a Natureza, o Homem da antropologia filosófica – enquanto fundamento positivo, a partir do qual todo o resto existe e é compreendido ou explicado. Os sistemas da tradição filosófica, como as ideologias totalitárias do século 20, sempre foram assim uma espécie de hipertrofia do fundamento, em que uma parte da realidade é elevada a princípio a partir do qual todo o restante é submetido.
    Nos nossos dias, o sistema dominante já recusa qualquer fundamentação: ele apenas se apresenta como é, e o modo como ele é parece ser o único possível. A atitude pós-moderna – na arte, na ideologia social, na filosofia, na publicidade e na política – levou essa experiência social ao extremo de seu positivismo acrítico: nela parece já não haver fundamento para nada e a realidade é apenas aquilo mesmo o que aparenta ser. Essa representação do mundo como sem-fundamento, sem-razão de ser, expressa sem dúvida o nível enlouquecido a que chegou em nossos dias a nossa experiência com uma vida que nos escapa quase inteiramente, com um mundo quase completamente coisificado, em que o movimento autônomo da economia mercantil – economia que só obedece às suas próprias leis – submeteu a si toda a nossa cotidianidade, a maior parte de nossas atividades e relações sociais. O que está indicado nessa sensação crescente de vida sem-sentido é que, de fato, a vida perdeu todo sentido para a sociedade de mercado, na qual nos sentimos e realmente estamos alienados, alheados, num mundo que nos é completamente estranho. Este é, de fato, um mundo impenetrável às nossas razões subjetivas, no qual nos sentimos na maior parte do tempo como peças de um joguete cujas regras ignoramos e sobre as quais não temos qualquer poder real. Este mundo que se tornou uma aparência sem fundamento tem, portanto, um fundamento; na verdade, ao recusar a apresentar seus motivos, o sistema único de alienações do mercado e dos Estados apenas reconhece que já não tem motivos para existir.
    Para nós, não se trata de negar que a realidade e a nossa ação modificadora sobre ela tenham algum fundamento, mas sim que esse fundamento é a negação mesma que somos. A experiência social cotidiana d@s proletarizad@s é a experiência de uma classe – em sua composição diversa e nunca permanentemente dada, pois histórica e em luta e submetida ela mesma a um conjunto de relações sociais em permanente modificação – que se define antes de tudo por suas condições negativas de existência: @ proletarizad@ é, antes de tudo, aquel@ que não é nem pode ser o que deseja e necessita, é quem foi submetid@ – e não sem resistências! – pela força, à condição de assalariad@, e uma vez assim, e ainda segundo as necessidades do capital, expropriad@ do conjunto da vida, de seus valores, de seus gestos, de seus desejos, de sua liberdade. É essa condição de assalariamento – num mundo completamente mercantilizado – que nos nega. E é à medida que assumimos essa negatividade que nos é constitutiva, prolongando-a na própria ação negadora deste mundo alienado, que nos capacitamos a ser sujeitos de nossa própria vida.
    Não nos movemos por idéias ou ideais, mas pela ação, princípio de tudo, e ação negativa, extensão de nossas próprias condições negativas de existência. É essa negação cotidiana, a resistência ao mundo alienado da mercadoria e do dinheiro, em suas múltiplas formas cotidianas de opressão, que fundamenta – e pode fundamentar – a constituição de um outro modo de viver socialmente. Assim, ao assumirmos na prática a negação que somos, não partimos de um fundamento positivo, de um ideal a realizar. Partimos, isto sim, da nossa própria experiência cotidiana de negação daquilo que nos nega.
    Pensamos que só tendo a negação como fundamento podemos fugir tanto às armadilhas das ideologias tradicionais, que desembocaram sempre em novas formas de mundo fechado, com suas hierarquias e opressões, quanto do movimento integrador que o sistema atual lança sobre toda negação parcial, fundada já de partida em proposições facilmente realizáveis e integráveis. Esse é um problema, antes de tudo, de consciência histórica: tanto no sentido de compreender as experiências históricas anteriores das lutas dos oprimidos, como também e principalmente no de saber se situar historicamente, isto é, de ter em vista os mecanismos com que os atuais dominadores contam para neutralizar e domesticar nossas lutas.
    E, precisamente porque se trata de um problema de consciência histórica, trata-se de um problema prático que implica também uma seríssima posição teórica. Temos dito reiteradas vezes que a teoria para o nosso coletivo não é senão a expressão das nossas experiências enquanto classe, pensadas num esforço de compreensão delas numa totalidade; experiências com o mundo alienado que são, do mesmo modo, experiências de luta contra ele.
    Ao pensarmos deste modo a teoria, nós a pensamos de um modo inverso do que sempre pensou a tradição filosófica, religiosa e científica do ocidente, inclusive as ideologias revolucionárias do movimento operário. Teoria é, para nós, o oposto de qualquer sistema, de qualquer explicação definitiva da realidade, de qualquer projeto de reforma ou modificação do mundo, de qualquer ideologia. É o oposto de qualquer derivação lógica de algum princípio racional; neste sentido, não pode ser nunca a fala (o logos) de alguma mente privilegiada – seja ela um grupo “teórico” ou científico, um líder, um partido – que deduza de uma primeira idéia um corpo coerente de outras idéias subordinadas, nem mesmo que explique para outros o que deriva da experiência em comum.
    Teoria só pode ser, insistimos, a autocompreensão que a classe em luta podemos ter de nós mesm@s e de nossas ações: o sujeito do conhecimento da ação só pode ser o sujeito mesmo da ação. Este sujeito som@s o múltiplo, o diverso, movemo-nos a partir de lutas diversas, e só poderemos nos compreender a nós mesm@s através do diálogo entre as diversas parcelas, os diferentes fragmentos, as múltiplas experiências que somos.
    Por que estamos falando isso? Porque pensamos que hoje, mais do que nunca, a crítica da ideologia dominante, que é cada vez mais a “ideologia da autonomia”, tem que ser também uma crítica dos próprios postulados das ideologias revolucionárias. Porque pensamos que é necessário, agora e daqui por diante, experimentar ainda mais as iniciativas de negação do mundo da mercadoria, que é necessário conversarmos sobre elas, pensando juntos o seu significado. Há que não abrir mão do caráter negativo de nossas iniciativas, reconhecendo que elas são experiências sempre provisórias, que devem elas mesmas ser negadas, ultrapassadas, superadas. Havemos de renunciar a movermos-nos por “ideais” ou “projetos” pré-concebidos. Havemos de recolher na reflexão comum o papel fundador da negação comum. Enfim, manter a negação e o diálogo práticos, capacitando-nos a fazer ir pelos ares a totalidade da sociedade de mercado que busca sempre integrar a si tudo o que pretende lhe negar. A essa sua dialética que sempre se conclui positivamente, como síntese, que busca recuperar as negações para o interior do sistema alienado (tal como ocorre com a socialdemocracia, os trotskismos, os novos e velhos bolchevismos, os maoismos, os proudhonismos…), só podemos contrapor a dialética da negação contínua, a dialética que dissolve as alienações; só podemos, enfim, opor, à dialética do capital, a irrenunciável ruptura.
    O nosso “princípio é a ação”, a ação que sempre nega, que se mantém no mundo e não sobe aos céus das ideologias.
    * * *
    Baltasar Gracián, em A arte da prudência, na máxima 13, diz: “Agir com intenções: seja segunda ou primeira. A vida do homem consiste numa milícia contra a malícia do homem. A astúcia luta com estratégias de intenção. Nunca faz o que indica. Aponta para enganar, golpeia indiferente no ar e desfere o golpe, atuando sobre a realidade imprevista com dissimulação atenta. A fim de conquistar a atenção e a confiança dos outros, deixa transparecer um intento. Logo em seguida, porém, muda de posição e vence pela surpresa. A inteligência perspicaz previne-se da astúcia observando-a detidamente, espreita-a com cuidado, entende o oposto do que a astúcia quis que compreendesse e percebe de imediato as falsas intenções. A inteligência ignora a primeira intenção, aguardando a segunda, e até a terceira. A simulação cresce mais ainda ao ver seu truque descoberto e tenta enganar contando a verdade. Muda de jogo, engana com a aparente falta de malícia, sua astúcia se baseia na maior franqueza. Mas a observação se adianta, discernindo através de tudo isso e percebendo as sombra envoltas em luz. Decifra a intenção, que parece mais singela”. E, na máxima 17, acrescenta novos conselhos de prudência à “inteligência perspicaz”, buscando ajudá-la na luta contra a malícia e a astúcia: “Variar no modo de agir. Isso vai confundir os outros, em especial seus rivais, depertando-lhes a curiosidade e a atenção. Se agir sempre de acordo com a primeira intenção, seu agir será previsível e frustrado. É fácil abater um pássaro que anda sempre em linha reta, mas não aquele que altera seu vôo. Não aja sempre conforme a segunda intenção, tampouco repita seu jogo, e os outros descobrirão a artimanha. A malícia fica à espreita, é preciso grande sutileza para enganá-la. O jogador perfeito nunca joga a peça que se espera, e muito menos a peça que seu adversário espera”.

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