Não fosse a resistência do Movimento Ocupe Estelita, a atuação do grupo Direitos Urbanos e de organizações parceiras, o Cais José Estelita já estaria ocupado pelo capital imobiliário. Por Caio Fabrício e Maria Luiza Vieira

“Quando vi a morte de King Kong, soube que era a mim
a quem a indústria estava matando.
Não se pode ser tão grande, feia, e viver no centro da cidade.”

Claudia Rodriguez, poeta chilena.

levantamento-de-indicaes-de-diretrizes-urbansticas-espacializadas-38-638O primeiro passo para entender a luta do Movimento Ocupe Estelita (MOE) é visualizar onde está localizado o próprio cais que é defendido pelo movimento. Para quem não conhece o Recife, há algumas ilhas dentro da cidade, e o Cais José Estelita fica na Ilha de Antônio Vaz, bem no Centro, entre a Zona Norte e a Zona Sul. Ninguém chama a região de “ilha”, embora ela tenha ficado nitidamente insulada durante décadas e mais décadas, contornada, além de água, por um descaso assustador do poder público que ignorou projetos destinados à revitalização da região e, na primeira oportunidade, entregou-a sem demora a um consórcio de empreiteiras. Se você não mora em Recife, fique atento, este processo sujo que nós expomos há três anos também está acontecendo na sua cidade. Ocupe-a!

***

O terreno do Cais José Estelita fica a alguns metros da frente d’água da Bacia do Pina. Na outra margem do Rio Capibaribe, o qual corta os quatro cantos da cidade, vê-se um shopping de luxo construído a mesma ótica e com os mesmos fins do Projeto Novo Recife: o RioMar. Para a construção do empreendimento, fruto de uma parceria entre o poder econômico e o governo municipal e estadual feita durante campanhas eleitorais, foi realizada a remoção de diversas famílias que moravam na região e o aterramento de uma parte significativa do mangue recifense, ambos intensificados, posteriormente, com a construção da Via Mangue, via expressa que nem sequer possui calçada para pedestres. Como é demonstrado no documentário “Recife, Cidade Roubada”, produzido pelo coletivo audiovisual do MOE, o Projeto Novo Recife, em seu sentido mais amplo, vai muito além do cais: trata-se de um projeto de segregação social e apagamento da história e da memória da cidade, possibilitado pela união desastrosa entre o poder público e o capital imobiliário. Esse planejamento urbano, feito para atender exclusivamente a interesses particulares, é marcado por diversas obras que não foram discutidas com a população e que representam um investimento milionário para atender a uma pequena elite. A mencionada Via Mangue, maior obra viária realizada no Recife, é um caso emblemático do investimento de verba pública para o benefício do setor privado. Com a finalidade de conectar pontos estratégicos do “Novo Recife”, como o shopping RioMar, o Polo Jurídico, o Cais Estelita, o Porto do Recife e a Vila Naval, a obra custou quase meio bilhão de reais e passa por cima do maior manguezal urbano do mundo. Enquanto isso, as ruas das periferias seguem sem asfalto, e as casas, sem saneamento básico.

bacia_do_pina_e_cais_josc3a9_estelitaMas não só a periferia é desprezada pelo poder público no Recife. Há décadas, as gestões municipais tem virado as costas para o Cais José Estelita, no coração da capital pernambucana, com seus dois galpões onde até a primeira metade do século passado funcionavam armazéns de produção de açúcar, dois silos onde a cana era queimada, e atravessado pela segunda malha ferroviária mais antiga do país. Contudo, o terreno, de dez hectares, tem recebido uma atenção fora do comum da Prefeitura nas últimas três gestões – comandadas por João Paulo (PT), João da Costa (PT) e, atualmente, por Geraldo Júlio (PSB). No lugar de procurar preservar a história do local e possibilitar um uso democrático do espaço, os últimos prefeitos do Recife decidiram, em conluio com seus maiores financiadores de campanha, transformar aquela região tão cara às pessoas do Recife – enquanto um potencial espaço para suprir o déficit habitacional, por exemplo – num enorme condomínio de luxo.

Em 2008, o então prefeito João Paulo (PT) viabilizou o leilão do terreno do Cais José Estelita, o qual foi arrematado por 55 milhões de reais em lance único da construtora Moura Dubeux – dez vezes abaixo do valor da área. Isso significa que a empresa pagou apenas 550 reais pelo metro quadrado do terreno, quando a média do valor estipulado para o mesmo espaço, no Projeto Novo Recife, chega a cerca de R$4.000 por metro quadrado. Desde então, o Ministério Público Federal age judicialmente a fim da nulidade do leilão por considerá-lo ilegal. O fato é que havia interesse expresso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o qual tinha prioridade na compra do terreno, que o cais permanecesse sob o domínio da União para estudo arqueológico.

Já no fim da desastrosa administração de João da Costa (PT), no apagar das luzes de 2012, o Projeto Novo Recife foi aprovado de forma completamente arbitrária. Sem Estudos de Impacto Ambiental e de Vizinhança, sem aprovação do Iphan ou pareceres do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e da Agência Nacional de Transporte sobre Trilhos (ANTT), o Novo Recife foi apresentado para a sociedade através da mídia, sem ter havido sequer uma audiência pública para que a população propusesse diretrizes para o uso do espaço. Há algumas ações civis públicas tramitando no Judiciário tanto por parte da sociedade civil quanto por parte do Ministério Público de Pernambuco, que questionam irregularidades em diversas fases do projeto.

O Consórcio Novo Recife, formado pela Moura Dubeux, Queiroz Galvão, Ara e GL Empreendimentos, atualmente defende o projeto através daquilo que eles chamam de “repovoamento da área”. Em 2008, quando foram construídas as “torres gêmeas” da Moura Dubeux, no Cais de Santa Rita, próximo ao Estelita, o discurso era o mesmo. No entanto, o que se observa hoje, no centro da cidade, são dois espigões que destoam por completo da paisagem do centro do Recife e que, com seus muros altíssimos, isolam mais ainda as pessoas que circulam pela região. Construídas sob ordem de demolição, as torres da Moura Dubeux, pelas quais o sítio histórico da cidade do Recife não foi reconhecido enquanto Patrimônio Histórico da Humanidade pela UNESCO, são um ícone daquilo que o capital imobiliário tem denominado “revitalização”, “modernização”, “repovoamento”, e que o MOE prefere chamar de gentrificação e marginalização da população pobre e negra, cada vez mais afastada das áreas mais nobres da cidade. Numa cidade com um déficit habitacional de 60 mil famílias, destinar uma área como a do Cais José Estelita para mais um condomínio da elite é inadmissível.

5d92c2bdd6fd_ghione01_foto_estelita_keila_vieiraO Projeto Novo Recife é um projeto natimorto. Ele nasceu morto porque foi concebido para poucas pessoas, e justamente para aquelas que menos precisam dele. Enxergar o privilégio de viver nos centros é impossível se a gente centraliza a discussão nos agentes urbanos de sempre, os ricos e os políticos, e é isso que eles tem feito no curso da defesa dessas torres. No entanto, o Movimento Ocupe Estelita concorda com as empreiteiras em um ponto nevrálgico da discussão, que elas insistem em distorcer: não queremos que o Cais permaneça abandonado. Felizmente, não fomos nós, da sociedade civil, que o deixamos desamparado, tampouco a academia – há mais de 50 projetos de revitalização do Estelita propostos pela Universidade Federal de Pernambuco e pela Universidade Católica de Pernambuco. Em 2005, a gestão municipal apresentou o Projeto Recife-Olinda, que abarcava aquela região e muitas outras em situações semelhantes. Ainda que o projeto não contemplasse amplamente as demandas da sociedade e não tenha sido elaborado a partir da participação popular, ele é a prova de que há alternativas responsáveis para o cais, e que a Prefeitura sabe disso.

O fato de o atual prefeito Geraldo Júlio (PSB) ignorar esses acontecimentos e se recusar a ceder à pressão popular que denuncia os malefícios de um projeto como o Novo Recife – a parte dos fatores sociais já mencionados aqui, as treze torres de até 37 andares iriam, ainda, piorar consideravelmente o calor no centro do Recife, e as cinco mil vagas de carros iriam intensificar bastante o trânsito na região –, esse fato, torna-se ainda mais problemático quando se sabe que o seu partido recebeu doações ocultas da Moura Dubeux na campanha de 2012, e que a empresa foi responsável por mais de 50% do financiamento que promoveu a eleição do atual prefeito. A cidade do Recife testemunha, perplexa, uma gestão voltada exclusivamente para aqueles que financiaram a sua campanha eleitoral, e não a população recifense.

Embora a legislação e decisões judiciais sejam atropeladas com uma frequência assustadora nos centros urbanos e rurais brasileiros, a população recifense ficou impressionada quando, sabendo que a obra no Cais José Estelita seguia congelada pela Justiça Federal, que determinou a escuta da DNIT e ANTT antes do início das obras, máquinas da Moura Dubeux iniciaram, na calada da noite de 21 de Maio de 2014, a demolição de um dos galpões que mais caracterizam a propriedade. O assombro das pessoas foi aumentado quando se tomou conhecimento de que um militante do grupo Direitos Urbanos, após pedir para ver o alvará de demolição, foi espancado por sete seguranças da referida construtora e teve seu celular, com o qual estava registrando o acontecido, destruído por esses mesmos funcionários. Naquela noite, a demolição do cais se iniciou com um alvará irregular emitido pela prefeitura e sangue humano. Ao saber da notícia, algumas pessoas da cidade se dirigiram imediatamente para o Cais José Estelita, dando início a uma ocupação que terminou numa reintegração de posse violenta e ilegal promovida pelo governador João Lyra (PSB), no dia 17 de Junho de 2014. No dia seguinte ao primeiro dia da ocupação – a qual ainda resistiu por um mês na área externa do Cais – o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional embargou a obra, a qual segue impedida até hoje.

Desde reuniões com o Conselho das Cidades e representantes de diversos órgãos até audiências públicas, as demandas por moradia, a responsabilidade e o comprometimento com a história e a memória da cidade não foi escutada pela atual gestão municipal. O redesenho que o Consórcio apresentou à população é meramente cosmético, e só beneficia quem irá usufruir dele; a negociação é uma farsa, e o projeto mantém sua essência elitista e segregadora. Se dependesse do prefeito Geraldo Júlio, que chegou a dizer, sobre o Projeto Novo Recife, que “não tem boquinha, não, vai subir”, e cujo slogan de campanha ironicamente dizia “um novo prefeito para um novo Recife”, as torres já teriam sido erguidas. Não fosse a resistência do Movimento Ocupe Estelita, a atuação do grupo Direitos Urbanos e de organizações parceiras, o Cais José Estelita já estaria ocupado pelo capital imobiliário. O movimento resiste e hoje luta contra a aprovação inconstitucional, questionada pelo Ministério Público de Pernambuco, de uma lei sem quorum no Conselho das Cidades e sem discussão na Câmara dos Vereadores, aprovada em menos de cinco minutos e sancionada pelo prefeito às pressas. O movimento segue vigiando o Recife.

jcr20150505008

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here