Condenadas, as mãos daquelas crianças reduziram-se a máquinas, mas pelo menos elas poderiam contemplar a estranha face do Filho de Deus: Teotônio. Por testemunha ocular Douglas Rodrigues Barros

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“Nesse mundo há aqueles para quem o sonho pueril tornou-se uma madrasta que eles insistem em chamar de mãe” – Sábio VL

– É tio… agora quero ver como vou voltar pra minha goma? Como vou conseguir levantar minha banca? É muito triste ser pobre… logo agora que eu ia noivar…

– Não turbe o vosso coração! Me receba em sua casa hoje que tudo o que quiseres será confirmado por Deus! – Embora nosso herói estivesse quebrado de porrada, continuava firme. No seu olhar havia uma ternura nada comum e exatamente por isso captou a afeição do rapaz que foi aumentando conforme o silêncio compunha o triste quadro de pessoas subindo e descendo as ruas da rodoviária. Quando o rapaz, enfim, ia dizer alguma coisa, foi de repente interrompido por Alexandra, que ofegante disse:

– Vamos, mestre, vamos nos afastar daqui!

– Por onde esteve? Sabia que quase fui morto pelos soldados romanos… eles queriam que eu confessasse algo que nem sei do que se trata? – Redarguiu Teotônio.

– Estive arrumando uma forma de ir pro deserto! – Finalizou Alexandra olhando para todos os lados.

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A notícia deu grande alegria a Teotônio, que se levantou do meio fio e, com a discípula agarrada no seu braço, subiu as ruas próximas ao metrô Tiradentes. O rapaz sem eira nem beira, sem sentido e sem mercadoria, resolveu acompanhar os dois. Cruzavam, desse modo, ruas e avenidas, passavam entre multidões e vazios. Começava já a anoitecer quando o rapaz pressentiu que ambos não andavam para lugar algum; estremeceu de confusão e pôs-se a acreditar que eram loucos. Mas, seguindo ambos por uma espécie de atração irresistível, prosseguiu contrariando o seu bom senso. E foi nesse exato instante que, numa dessas ruas silenciosas, Teotônio avistou a igreja de Frei Galvão.

O recente e curioso fato, sobre essa sobrevivente igreja do tempo da Colônia, foi uma boataria inventada pela imprensa. Os boatos que satisfazem os editoriais e declinam nossa inteligência é, a bem dizer, um poder exercido em nossa falta de imaginação. A estória de tão abobalhada serve, por isso mesmo, para ser aqui mencionada: pesquisadores, desses muito dedicados, encontraram corpos de monjas enterradas nas paredes do mosteiro que hoje é popularmente conhecido como Mosteiro da Luz. Devido aos excrementos que eram utilizados à época para erguer as paredes de barro apiloado, os corpos permaneceram intocáveis. Foi o que bastou para no outro dia a imprensa dedicar grande pedaço de seu valioso jornal com o título: “Múmias no mosteiro da Luz!”. Em pouco tempo a quizila estava formada: jornais mais audaciosos, na busca de aumentar suas vendas, sugeriram que havia algo sensual em tudo, pois algumas monjas haviam sido enterradas juntas e, numa cena idílica, descansavam a cabeça defunta sobre o seio da outra. Isso bastou para a coisa ganhar um tom alegremente maldoso na cabeça de milhares de leitores. Em breve todos discutiam a sexualidade das monjas Concepcionistas da Luz [1]: seriam lésbicas ou não? O assunto ficou tão esculhambado que mesmo o padre A—-, capelão daquela igreja, deixou, de repente, de receber as quentinhas enviadas pelas carolas.

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Foi muito afastado desses torpes pensamentos, todavia, que Teotônio avistou a igreja de Frei Galvão e, numa espécie de torpor divino, quis ir até ela, ao que o rapaz finalmente interferiu dizendo:

– Ei tio, posso saber para onde estão indo?

– Estamos indo para o deserto! – Redarguiu Teotônio com ar de tranquilidade.

– Ih! Ah! Lá!? E tem deserto no Brasil!? – Fez coçando a cabeça.

– O mestre diz que sim, não posso duvidar! Sempre me foi ensinado que não tinha deserto por aqui, mas tudo muda, né… tanta coisa me ensinaram que era errada, então pode ser que tenha algum deserto por aí! Tudo muda! Vai mudando, mudando, mudando! Rica ontem, pobre hoje, mesmo o que é sólido transforma-se em líquido, e o que é líquido, no gasoso! O gasoso é fumaça e a gente manda direto pro pulmão! – Redarguiu Alexandra.

– Tudo bem! Mas e hoje, onde irão dormir? – Perguntou confuso o rapaz.

– Você até que é bonito, viu, rapaz, mas para sua idade é muito preocupado e eu detesto homem preocupado, ainda mais sendo jovem, preocupação é o contrário de paixão, por isso veja só… povo chato, tudo preocupado! – Disse Alexandra com ar de sedução.

– Por enquanto não sabemos onde passaremos a noite – interferiu Teotônio – Se quiser nos dar abrigo, tenho certeza que Deus o recompensará… Havia na estrada um moribundo e passou por ele um rico comerciante…

– Tá! Tá! Vocês são loucos mesmo! – Disse o rapaz com certa tristeza no olhar – Mas, já que estou lascado, então… se quiserem podem vir comigo… moro com uma turma de bolivianos que vivem ali perto do batalhão da Rota…

– E como é teu nome, hein?! – Perguntou Alexandra.

– Meu nome é Juliandro! – Redarguiu o rapaz, corando.

O que dizer de Juliandro? Rapaz alegre, aberto como um livro infantil, trabalhador como a engrenagem da fotossíntese e que nunca ouviu falar de fenomenologia. Livros, nunca leu um inteiro, idiomas, só o das ruas, de modo que seu saber se traduzia no imediato reino da necessidade e, por isso, sempre soube do essencial: trabalhar continuava sendo o pior castigo que Deus tinha dado ao homem.

– O importante é que nosso amado irmão Juliandro nos dará guarida e, como está escrito: quem dá guarida aos humildes, dá guarida a Deus!

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Assim, dobraram as horrendas esquinas das ruas militarizadas pelas Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, aqueles prédios estranhos e excludentes sustentavam ares de uma aristocracia que jamais existira. As janelas frias mais pareciam escudos da tropa de Choque. Os três perdedores ignoravam esses detalhes e seguiam animados pelas ruas de péssimo gosto neoclássico, até atingirem o lado obscuro da cidade onde caem as máscaras do esclarecimento.

Chegaram a um prédio dos anos 70 que se erguia ao céu, sua estrutura carcomida e mofos numa parede cinzenta reduziam o horizonte de qualquer cidadão, se assemelhando a uma falange demoníaca. Na frente desse prédio, ao invés de uma porta de vidro, como era comum a todos os outros, havia um portão de ferro que impedia observar o que havia lá dentro. Juliandro tocou uma campainha e ouviu-se um dialeto espanhol que confirmou sua entrada:

–Aqui é onde me escondo, vamos entrar! – Fez um sinal com as mãos indicando para que o seguissem.

Quando a porta de ferro fechou atrás de si, Teotônio observou centenas de milhares de calças jeans e camisetas embaladas em grandes sacolas plásticas. Subiram pelas escadas, os corredores eram malcheirosos e o mofo tomava conta de tudo. Por entre vidraças quebradas, poças se formavam no chão indicando chuvas passadas. Em meio às escadas que se contorciam indicando as dores daquele prédio, um ou outro transeunte passava pelos três com olhares de desconfiança. Rostos carrancudos, que lembravam as réguas erguidas da tirânica professora do primário, surgiam marcados mais pelas dores da indiferença do que por alguma ameaça real. Ao chegarem no segundo andar, bateram na porta descascada e bolorenta do apartamento 121. Surgiu uma moça com vivo olhar de preocupação.

– Mas o que aconteceu?! – Exclamou ao ver o estado lastimável de Juliandro. Pareciam discutir e ninguém soube dizer o que ela conversava com ele.

– Podem entrar! – Disse finalmente Juliandro, que ao se pôr para dentro do apartamento foi recebido com um abraço caloroso de uma menina. Uma menininha de sorriso doce que enfeita com sua luz qualquer lugar triste. Ele a colocou no colo e, em seguida, apresentou todos os ocupantes do apertado apartamento que surgiam como formigas. Eram treze bolivianos, dos quais oito eram menores de idade. Diante das visitas, como por respeito, aquelas crianças pararam por alguns segundos o trabalho. Cem botões pregados rendiam o valor de 2,50 pagos pelas grandes marcas italianas e francesas. Se conseguissem chegar a duzentos botões o valor então dobrava. Esse motivo fazia com que o horário de trabalho se estendesse nas costas pequenas e mãos delicadas daquelas crianças. Trabalho! Trabalho! Trabalho! Depois de passada a desconfiança geral, os sorrisos e as curiosidades infantis começaram a brotar, cercando Teotônio e Alexandra. Ter algo novo, diante daquela vida sisífica, era para os pobres diabos uma felicidade sem tamanho. Mas, condenadas, as mãos tornaram-se opacas e sólidas, cinzentas e metálicas, os movimentos maquinais gastavam-se na abstração daquilo que chamam por aí de Capital Fixo. Pelo menos, ainda que reduzidas a máquinas, elas poderiam contemplar a estranha face do Filho de Deus: Teotônio… que sentiu ali a presença do demônio [2]. Todavia, enquanto nesse momento Teotônio, num olhar de tristeza, procura um lugar para se sentar e sorri ao fazer careta para as crianças, vamos nos ocupar, como bons modernos, em saber o que fez Alexandra em sua fuga rápida da rodoviária.

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* * *

Lá para as bandas da Luz, há em meio à cidade a rua da cracolândia. Ela é tomada por uma multidão com almas enlameadas e corações despedaçados que, seguindo a ditadura da felicidade, descontam suas frustrações no gozo de um trago. Esta rua da verdade é habitada por diversos personagens de molde detestável para a maioria. Um deles, Gideão, um comerciante de pedras, sedento por dinheiro e bugiganga barata. A nossa heroína Alexandra, grande conhecedora da alma das ruas, logo que escapou da rodoviária sabia a quem interessaria a bugiganga e os cartões de crédito. E sabia disso não porque fosse viciada, pois, segundo dizem, o vício é monopólio dos normais; sabia disso porque as contrariedades que sofria para sobreviver lhe impunha o conhecimento com os vagabundos da cidade. Num celular de última geração e dois cartões de crédito conseguiu 300 reais e, como já havia retirado 200 reais da carteira, tinha agora uma soma de 500, o que viabilizaria a ida para o deserto junto a seu mestre.

* * *

Voltemos e encontraremos Teotônio sentado em profundo silêncio, admirando o trabalho das crianças.

– Esta é Sami! – Disse Juliandro, apresentando sua noiva para nosso herói.

– Deus a abençoe por nos receber em sua casa! – Disse Teotônio inclinando a cabeça e sendo seguido por Alexandra.

– Amém! Mas saibam que terão de ir embora logo! Aqui é muito pequeno e trabalhamos muito, não dá para receber mais ninguém! Hoje dormem, amanhã fora!

– Fique calma, mulher! – Interferiu Juliandro – Eles ficarão só até o horário do nosso noivado e depois irão para o deserto! Não fique triste, eu já não falei que fui pego pelos coxinhas!?

– Redarguiu com ar tristonho Juliandro, ao que Sami ergueu as mãos para o alto e, saindo, desapareceu no interior do apartamento.

– Xiii! Eu hein! Nervosinha sua noiva! – Disse Alexandra.

– Tudo isso é por causa dos perrecos que ela tem que pagar!

– Como assim? – Perguntou Teotônio.

– Eles já chegam endividados aqui… a dívida, todo dia sobe… temos que pagar, fico triste… – Explicou Juliandro com ar infeliz e indicou um colchão ensebado como cama de Teotônio e Alexandra.

– Acredite em Deus e tudo dará certo! – Disse Teotônio.

– E se não der, não tem problema! Pode ficar comigo! – Encerrou Alexandra.

– Aí lascou de vez!

Douglas Rodrigues Barros
Escutando os ecos do “Sem violência!”
30 de junho 2013.

Notas

[1] Monjas Concepcionistas referem-se a mulheres cujo carisma é dedicado à Nossa Senhora da Conceição. O Voto consiste em se livrar da sociedade e da família, dedicando-se em tempo integral a orar e labutar. Uma vez entrando nesse mosteiro a mulher perde todo contato com o mundo externo. Hoje existem cerca de doze monjas concepcionistas na luz, dentre as quais, todas estão lá voluntariamente. Tive o prazer de colocar as vistas numa que tinha apenas 22 anos. Ela me viu e logo saiu correndo para se esconder do pecado – dizem, porém, que na época colonial o mosteiro era muito requisitado para prender mulheres desvirtuadas na vida, isto é, mulheres que se apaixonavam por negros ou que não queriam ir à igreja, ou mesmo demonstravam curiosidades para além do decoro, como por exemplo, adquirir o hábito da leitura (N. do A.).
[2] Então o Senhor disse a Satanás: donde vens? E Satanás respondeu: tava dando um rolezinho na terra!
– Viu nela meu filho Jó? O bicho é firmeza!
– Também, quem não seria firmeza tendo a vida de Jó? Difícil mesmo é te servir tendo a vida de Teotônio ou dos Bolivianos no Brasil! Atualmente, no final da Zona Leste, se conta assim o começo da história de Jó.

7 COMENTÁRIOS

  1. Na boa está novela é um tapa bem dado na cara de todos aqueles que querem um mundo diferente deste…

  2. Cara Melissa
    Não apenas daqueles que querem um mundo diferente, mas também daqueles que querem mantê-lo tal como está!

  3. …ultradelirante, hipersurreal e fantaspoética – posto que fidedigna – descrição do fardo da sobrevivência que carregam os párias (exército de reserva e carne de mais-valia) do capital…

  4. O que mais me impressiona é a capacidade do autor em tocar em temas complexos e complicados sem se deixar naufragar pelo tom panfletário. Isso é muito bom!

  5. Nos leva para uma viagem a cada palavra escrita. Muito bom o desenvolver dos temas em si abordados.

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