O produtivismo expressou uma proposta ideológica e militante dentro do processo revolucionário russo, durante os anos quando este ainda estava aberto à criação de novas relações sociais. por Poeta em Buenos Aires

(Leia todos os textos da série clicando aqui)

Nicolai Tarabukin (1899–1956) foi um pensador das artes que esteve intimamente associado ao formalismo russo, especialmente nas artes plásticas. Foi funcionário acadêmico e professor em distintos órgãos e institutos soviéticos desde os primeiros anos da revolução até ser marginalizado com o ascenso do domínio stalinista. Em textos publicados pelo Proletkult, organização cultural de massas influenciada diretamente por Bogdanov e perseguida por Trotsky e Lenin, nosso pensador se dedicava a conceitualizar e refletir sobre o movimento construtivista. Esta linha de criação das artes plásticas começou a conceber as obras a partir de suas propriedades materiais e procedimentos construtivos, em crítica aberta às tradições e vanguardas que primavam pela composição e pelos efeitos ilusórios e realistas. Em outras palavras, os construtivistas criavam suas obras a partir do processo de construção física, da especificidade de cada material utilizado nesta construção, da materialidade de cada intervenção plástica – em oposição à obra de arte concebida apenas como resultado final, desfeitos os rastros dos atos que levaram à sua conclusão como um objetivo visual quase abstrato de enquadramento e efeito onde a materialidade da obra serve de mero apoio para a estética, seja ela realista, impressionista, abstrata, etc.

Torre de Tatlin (Monumento à III Internacional)
Torre de Tatlin (Monumento à III Internacional)

Já antes da revolução de 1917 os artistas construtivistas experimentavam com diferentes meios recusando a primazia canônica da pintura, e entre 1913 e 1915 Tatlin produz os contra-relevos que seriam uma das referências de Tarabukin para a nova tendência artística e a superação de paradigmas estéticos anteriores, o fim da obra de cavalete. Em toda Europa surgiam novas vanguardas artísticas e a intelligentzia russa acompanhava tais desenvolvimentos. Mas ao contrário das vanguardas futuristas e formalistas de outros países, como os fascistas na Itália, os artistas jovens que ansiavam pela inovação em território russo abraçaram os processos revolucionários da esquerda proletária e em sua maioria estiveram à esquerda no espectro político, fazendo oposição e crítica aos setores dos artistas populistas, vinculados ideologicamente ao campesinado e à pequena burguesia, e também aos artista da direita conservadora. Tais embates não se limitavam ao campo da estética e do debate sobre as artes, eram também travados entre agrupações de artistas, em comitês políticos e administrativos do novo Estado operário, onde se decidiam as políticas gerais sobre censura, editorialismo, orçamentos dos institutos de artes, repressão e controle sobre docentes liberais, etc, tudo isso num contexto de comunismo de guerra e posterior aplicação da NEP (Nova Política Econômica, com sigla em inglês), misturando questões de interesses de classe, crítica artística e luta política dentro das direções dos organismos soviéticos.

Frente a estes debates e à própria realidade social vivida nos primeiros anos da revolução, Tarabukin aprofunda o vínculo entre teoria e prática, herança do ambiente intelectual artístico e revolucionário, propõe o abandono do construtivismo como linha estética e se lança a uma reflexão mais ampla sobre o papel das artes:

“O mundo atual apresenta ao artista novas necessidades: já não se espera dele “quadros” ou “esculturas” de museu, mas sim objetos justificados socialmente por sua forma e utilidade. Os museus já estão tão cheios que não é de nenhuma utilidade insistir com variações sobre temas antigos. A vida já não justifica objetos artísticos que se desacreditam por sua forma e conteúdo. A nova arte democrática é essencialmente social, enquanto que a arte individualista é anárquica, justificando-se em pessoas e grupos isolados. Se a teleologia da arte do passado encontrava sentido no reconhecimento individual, a arte do futuro encontrará esse sentido no reconhecimento social. Na arte democrática, toda forma deverá estar socialmente justificada.” (p. 48 – todas as citações são do livro “El último cuadro”, referências no fim do texto)

O libelo publicado em 1923 “Do cavalete à máquina” não deixa de ser mais um dos anúncios sobre a morte da arte que povoaram o seu tempo, com a grande diferença de que Tarabukin viveu justamente em um momento de ruptura social e política que lhe permitiu uma resposta pela positiva, conclamando os artistas a misturarem-se com a nova vida produtiva social ao invés de derivar uma estética de jogos absurdos ou então o conceitualismo artístico irmanado do conceitualismo revolucionário. O que permitia ao nosso pensador tomar este passo era a sua concepção de artista como “mestre”, detentor de uma “maestria”, uma herança cara às artes plásticas e que só pode ter origem em um meio de experimentação material, artesanal e industrial, que aproximam o artista tanto do engenheiro quanto do operário, sendo ele projetista e realizador das transformação intencionais sobre os mais diversos tipos de materiais:

“O problema da maestria produtivista não pode ser resolvida através de uma ponte superficial entre arte e produção, senão unicamente por sua relação orgânica, pelos vínculos entre o próprio processo de trabalho e a criação. A arte é uma atividade que em primeiro lugar supõe maestria e habilidade. A maestria é, por natureza, imanente à arte. Nem a ideologia, que pode tomar aspectos muito diversos, nem a forma em si mesma ou o material, que variam infinitamente, permitem designar concretamente a arte como uma categoria de criação sui generis. É unicamente no próprio processo de trabalho, processo dirigido para a maior perfeição de execução, onde reside o sinal que desvela a essência da arte. A arte é a atividade a mais aperfeiçoada aplicada à conformação do material.” (p. 52)

Opyt teorii zhivopisi (Nikolai Tarabukin, 1923)
Opyt teorii zhivopisi (Nikolai Tarabukin, 1923)

Como outros intelectuais e artistas da esquerda, Tarabukin estava interessado e experimentava com os meios de agitação e propaganda que estavam às mãos, sendo a fotografia um deles. Num dos poucos textos de Tarabukin disponíveis hoje na internet em idioma ocidental, nosso pensador desenvolve o argumento a respeito da fotografia e suas possibilidades a partir da experimentação com as lentes. O raciocínio é exemplar da concepção produtivista: começa analisando o papel da gravura na reprodução e difusão das pinturas europeias dos primeiros séculos da modernidade, cada uma das inovações técnicas e materiais vai relegando a técnica de gravura anterior à categoria de “arte pura”, ao ver sua utilidade social já obsoleta. O processo se completa com a invenção da máquina fotográfica, reprodutor fiel das telas e novo instrumento de comunicação social de altíssima reprodutibilidade. Rodchenko se tornou um dos nomes mais famosos no campo da experimentação estética com finalidade agitativa, alterando a lógica focal e criando efeitos de superposição com as imagens obtidas pela câmera, como nas fotomontagens de Lenin falando às massas. Em busca de novos resultados, novas ferramentas com as quais o artista, e quem seja, pudessem comunicar e agitar, Tarabukin ensaia e especula sobre possibilidades a serem exploradas.

A consolidação do stalisnismo não teve um efeito negativo apenas na carreira de Tarabukin mas também impediram suas ideias de ganharem corpo, uma vez que a socialização dos meios de produção já parecia haver se esfumado como horizonte e o Estado tomava o controle ditatorial da economia. De fato, sua proposta não era a entrada dos artistas nas fábricas como artistas, mas sim a aplicação da maestria produtivista no contexto da produção. Isso quer dizer um todo organizado, longe de ser apenas a presença de um artista especializado na fábrica, aplicando ali a mesma perspectiva antiga do atelier ao produzir objetos úteis com pequenos adornos ou formatos estéticos (como alguns dos construtivistas chegaram a fazer). No período em que escreve, chamado por ele de “época de transição”, Tarabukin defende que os artistas devem dedicar-se a ser “propagandistas das ideias do construtivismo e representantes da ideia de maestria para que aqueles que trabalham na produção possam realizar suas ideias, encarná-las na vida”. Ou seja, o artista produtivista tem na produção apenas o papel de propagandista de seus ideais e ciência, enquanto segue elaborando outras atividades como a agitação, a organização dos artistas e dos trabalhadores, ou mesmo a experimentação de atelier, que Tarabukin reconhece como valiosa enquanto atividade de pesquisa. Esta “tragédia da época de transição” existe pois somente no futuro comunista os indivíduos deixarão de conceber suas especializações – engenheiro, médico, químico, etc – como algo separado da arte (concepção baseada nas ideologias burguesas da “arte pura”), quando então poderão aplicar em suas atividades cotidianas os ideais da maestria produtivista. Sua ideia estava intimamente vinculada à sociedade industrial como um todo:

“Nas condições atuais de uma grande industria muito desenvolvida, a ideia da maestria produtivista não toma a forma de bricolage artesanal, senão que está marcada pela mecanização. Na produção industrial massiva, a ideia de maestria do trabalho concretamente aplicável aos produtos acabados tende a expressar-se ao longo do complexo processo de fabricação. Reúne em uma comunidade criadora a todos aqueles que participam deste processo, desde o inventor das máquinas até o operário em seu posto de trabalho, estendendo seus efeitos às qualidades do material, a fim de que o produto acabado responda o melhor possível a seu destino utilitário, que ele resuma a perfeição da técnica de sua época, a fim de que se observe no processo de elaboração o princípio de economia de energia mecânica e de energia humana, a fim de que as condições de trabalho cumpram com as normais ideais para a conservação da saúde do trabalhador; em fim, para que todos os aspectos da produção – técnico, econômico, humano e social – manifestem o maior cuidado na organização racional da obra.”(p. 53)

Com efeito, o produtivismo expressou uma proposta ideológica e militante dentro do processo revolucionário russo, durante os anos quando este ainda estava aberto à criação de novas relações sociais. Muito mais do que uma teoria estética, coisa burguesa abominada, devemos entendê-lo como uma ousadia por meio da qual a arte busca intervir na atividade produtiva mesma a partir de uma leitura política da sociedade:

“O proletariado deve assimilar os valores da arte antiga naquilo que ela tem de maestria, este será o único contato frutífero que ele poderá ter com o espírito do cavalete. Na criação ativa, será um homem político, um inventor, um produtor de cultura industrial. Nas condições do estado socialista russo, considero que a ideia progressista não é a de ‘arte proletária’, senão a maestria produtivista, que parece ser a única capaz de organizar não somente nossas possibilidades de orientação atuais, senão também nossa atividade real.” (p. 72)

Aproveitar a experiência intelectual de Tarabukin hoje é um grande desafio, pelos muitos anos que se passaram mas também pelo contexto político e econômico no qual nos encontramos, longe de uma “transição socialista” na maior parte do globo. Também no texto-libelo do próprio autor se nota uma dificuldade em elaborar tais ideias aplicadas a outras artes. E no entanto, algumas das tendências atacadas pelos autor seguem firmes no horizonte artístico, com fôlego novo, especialmente a “arte proletária” que aparece na última citação. Esta pequena série de textos é um ensaio de aproveitamento desta experiência crítica e especulativa, apostando no valor de ter-se uma análise de conjuntura política como base para pensar a arte, e que tomará a poesia como objeto de reflexão.

Lilya Brik (fotografia de  Rodchenko)
Lilya Brik (fotografia de Rodchenko)

As referências para as citações e textos de Tarabukin são:

Tarabukin, Nicolai (1977) El último cuadro. Barcelona, Editorial Gustavo Gili
Tarabukin, Nicolai ([1925]) The Art of the Day. Translated by Rosamund Bartlett, Octuber Magazin. Summer 2000, pp. 57-77

Sobre a trajetória de Tarabukin e debates estéticos:

Martins, Luiz Renato (2003) O debate entre construtivismo e produtivismo, segundo Nikolay Tarabukin. Revista Ars, v.1 n.2, pp. 57-71

Sobre as relações entre arte, política e sociedade nos primeiros anos da revolução russa:

Rodriguez, R. L. y Sartelli, E. (2015) “Un largo y sinuoso surco rojo: Trotsky, la literatura y la revolución”, introdução de Literatura y Revolución, Trotsky, L.; Buenos Aires, Edicciones RyR
Lunatcharsky (1975) As Artes Plásticas e a Política na U.R.S.S.; Lisboa, Editorial Estampa

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