Fracassei miseravelmente porque perdi a fé no programa. Por Douglas Rodrigues Barros

Uma questão de etos

Narciso ao morrer não sabia que o que via na sua frente era tão somente o seu reflexo. Ele via no reflexo o Outro. O inefável e fantasmagórico outro que não era senão o si próprio de uma identidade real, por isso, fantasmagórica e evanescente. Assim, também pode acontecer com o autor. Para que escrever? Pergunta central sartriana, mas também de uma constelação de autores: Thomas Mann, Dickens, Balzac, Dostoiévski, só para citar alguns. E assim respondo ao meu reflexo o que foi a experiência de escrever as Cartas Estudantis.

Por que escrever?

Vi esses dias um texto bacana de um famoso escritor, ganhador do Jabuti, (risos) que dizia o seguinte: se você não sente a necessidade de escrever como algo hormonal, então, você não precisa fazer essa pergunta. A meu ver, a questão toda está em algo visceral. Algo que está ligado a um tipo de castração existente entre aquele abismo da consciência e o mundo. Ambos ligados àquela vontade de entender que é esse abismo.

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E como esse abismo só pode ser denotado na medida em que ele é ofuscado e minha consciência aparece como uma propriedade minha como ser, como algo verdadeiro e concreto, os seus desenganos e ilusões fornecem, por isso – aliás, mais que as análises “cientificas” – condições de tornar esse abismo palpável. Balzac dizia que queria fazer com a pena o que Napoleão fez com a espada. Isso revela muito sobre a percepção que o escritor tem do mundo.

Por exemplo, as personagens demonstram muito bem as situações em que a impotência do Eu é exposta. Naturalmente, impotência frente um mundo indiferente. Um mundo cujo Processo kafkiano se torna norma e o indivíduo um joguete nas mãos de forças que se desenvolvem atrás de si. É por isso que a literatura se torna tão poderosa, pois permite testemunhar a manifestação clara da impotência frente um mundo autonomizado.

Esses momentos de elucidação, ou de iluminação, que são perturbadores, propiciados pela literatura, são as experiências que fazem com que o abismo entre a realidade miserável e a consciência que aí está lançada se torne palpável e não possa mais ser ignorado. Nesse sentido, há uma experiência, que eu diria, de superação castrada. E essa superação castrada, acredito, é o tesouro do escritor ou autor. Superação castrada no sentido do demoníaco kierkegaardiano, no sentido de que sabemos tudo e nada podemos fazer. Tal como demônios que, expulsos do paraíso, não podem expressar o que é o divino.

Das Cartas estudantis

As cartas são agora meu maior fracasso. Fracassei miseravelmente porque perdi a fé no programa. Do ponto de vista estético é um horror, falha miseravelmente. Ela não se realizou nem no plano literário, nem no plano conceitual. Essa posição intermediária é seu próprio abandono do vir-a-ser de algo, digamos que ela parou preguiçosamente a meio caminho e não resolveu essa contradição dengosa. Embora eu tivesse trabucado com afinco, tentado dar vida às personagens, fiquei tristonho pela perda de interesse na plêiade de neuróticos – Heloísa, Arthur, Fernanda, Carol, Alice… – , era algo maior que euzinho. A vida é burra também, fracassei. Mas aqui também tendo a me perguntar, junto com Badiou, o que é fracassar?

Peço desculpas aos que gostaram desses doidos que ficaram comigo macunaimando durante meses a fio. Talvez não seja eu o mais recomendado a pensar sobre as Cartas. E isso não é uma renegação da obra à la Wittgenstein. É um reconhecimento de meu fracasso. As cartas agora têm vida própria. Citei Badiou acima para demonstrar que as Cartas eram minha hipótese estética. Ela teve valor nas minhas mãos no sentido do teste para o desenvolvimento de estilo literário.

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Nunca fracassar é fracassar mesmo, ou melhor, nunca fracassar é o fim. Talvez, haja aí uma supressão de nossas limitações intersubjetivas compreendidas objetivamente. O fracasso seria, nesse sentido, o ultrapassar de uma experiência limítrofe que estenderia os limites de nossa ação para algo mais além. Uma superação das relações e condições imediatamente dadas. Uma abertura para novas experiências a partir da, como diz Karl Marx, “tradição de todas as gerações mortas [que] pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”.

Considero meu fracasso nas Cartas da seguinte maneira: primeiro, uma tentativa direta de diálogo com o existencialismo francês, o que demonstrou, pelo menos para mim, que esta forma está com data vencida. Segundo, o próprio gênero epistolar não ecoa, pode servir como pedagogia, mas não como forma literária. Rousseau foi o pai e Goethe o coveiro. Isso não significa que o gênero não possa ser reapropriado, mas a sua função social talvez esteja morta. Ora, como disse um excêntrico sublime:

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Deixo aqui novamente meus mais sinceros agradecimentos matutos, aos batutas camaradas do Passa Palavra que tiveram paciência comigo não só pelas cartas, mas por peripécias amalucadas minhas. Agradeço de coração, sem medo de ser brega!

Douglas Barros
04 de setembro de 2016
Ao som de Marisa Monte: Verdade, uma ilusão!

As imagens que ilustram o texto são de Igor Morski.

Leia aqui a 1ª Carta Estudantil.

7 COMENTÁRIOS

  1. “Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus”. João 3:3″

    Viver mais não é sinônimo de viver bem nem de viver melhor, assim como, morrer mais não é sinônimo de morrer mal ou de morrer pior… trocando alhos por bugalhos… viver menos não é sinônimo de viver mal nem de viver pior e… morrer menos não é sinônimo de morrer bem nem de morrer melhor….

    E o reino de Deus? Diria Tolstoi: “está em vós”! (Será…? Será…?)

    Keep Walking… Johnnie Walker… “keeps” walking… Johnnie Walker

    C’mon. Let’s twist again!

    Keep Walking… no amanhecer Preto, Azul, Branco, Amarelo ou Vermelho… keep walking
    keep walking… no anoitecer preto, azul, branco, amarelo ou vermelho… Keep Walking
    Keep Walking… keep walking…
    Pro dia nascer feliz
    O mundo inteiro acordar
    E a gente dormir, dormir…

  2. Douglas,
    li com gosto todas as cartas, e o primeiro que tenho a lhe dizer é que me impressiona o seu fôlego. Desde as aventuras do mendigo-messias me agrada muito o teu trabalho de tomar uma ideia e ir dando formas ritmadas, acredito que tenha muito a ver com a forma do folhetim, que é um gênero que devo ter lido apenas na escola e apenas uma ou duas obras (e um par mais sem saber que originalmente o foram). Acho que é uma excelente aposta estética para o nosso momento, e se a roupagem epistolar não foi satisfatória talvez tenha justamente a ver com isso. Dou meu palpite: primeiro, personagens contemporâneos que se escrevem por meio de cartas soa algo já mais além dos hipsters — não vejo prejuízo para o existencialismo que as comunicações escritas tenham mais marcas digitais. Em segundo lugar, e em consonância, as personalidades e escritas maneiristas das personagens permitia voos mais altos que os esperados em emails prozaicos, mas também terminava por dar uma impressão de afetação e exagero que não estou certo se foi de todo sua intenção “programática”. Um pouco mais sobre as personagens comento adiante, mas para fechar a questão do gênero epistolar, deixo como recomendação pessoal o livro “Cae la noche tropical”, de Manuel Puig, que foi um dos livros que recentemente mais me afetou o coraçãozinho. É de 1988, já existiam chamadas telefônicas internacionais menos complicadas, mas acredito que as cartas ainda seguiam sendo familiares para boa parte da humanidade letrada.

    Se bem nesse sentido me pareceu um desencaixe com o nosso tempo, por outro, também desde sua obra anterior publicada aqui, reparo nessa preocupação em realizar a ficção emaranhada nos eventos históricos e sociais importantes considerados a partir de uma posição autoral. Acho que isso é também sua fortaleza, e certamente uma das virtudes das cartas foi dar essa continuidade a algo que tinha sido expressado num gênero tão diferente como a narrativa messiânica.
    Mas do que se trata uma troca de correspondências entre estudantes? Posso dar minha visão, pois fui um deles, andei pelos mesmos corredores que algumas das personagens, fumei a mesma maconha, fui a alguns destes bares, talvez tenha me soltado sexualmente um pouco menos, certamente li muito menos do que eles na faculdade. Senti a impotência desse setor social, e para mim as cartas são bastante sobre isso, de uma juventude que lê muito sobre política mas não teve uma educação política de corpos. Creio eu se tratar também, essencialmente, de uma questão de geração, não de “apego aos livros” ou de uma punhetação autoreivindicatória, é a geração de jovens que viveu a consolidação do lulopetismo e o ocaso da militância, a que teve que inventar coisas quase que por conta própria. Os livros estão na biblioteca, já os militantes experientes dispostos a ensinar, com vontade e orgulho do que fazem, isso parece que esteve em falta até há bem pouco tempo atrás.
    Dentro da especificidade das personagens, me pareceu que Arthur disfarçava bem sua depressão e encontrava em Hegel a esperança cristã, até que o inverso se apropriou dele. Sua experiência homossexual pareceu algo como a última tentativa desesperada de sentir a vida, da mesma forma como a experiência sexual das primeiras cartas pareceu vazia. Digo, o estilo em que estava escrita, pelo que me lembro, agradou bastante e tem “appeal”, mas sabendo do destino da personagem, pareceu ter sido uma carta retórica, um exercício de escrita de Arthur tendo como modelo algo que realmente não lhe interessava tanto (não o digo por uma tendência gay, mas sim pela impossibilidade do sexo atraí-lo para a vida).
    Heloisa me interessava, talvez o nome me traga boas lembranças, entre o cinismo e a maturidade. Parecia ser ou querer ser mais experimentada, e no final a vida lhe dá um belo tabefe na cara, quando ela tinha em suas mãos uma escolha, uma responsabilidade das mais dramáticas, o corpo biológico desmancha rápido todo poder de uma escolha consciente: escrava, coisa.
    Com os demais personagens tiveram discussões e debates sobre temas bem atuais (tendo eu mesmo comprovado pessoalmente com meus achegados em minha última visita ao Brasil) e também sobre questões políticas históricas, que não pude deixar de ver notar como remetem a certos debates aqui deste mesmo site, o que por um lado circunscreve a um universo intelectual e político bem pouco representativo dos estudantes em geral, mas que dialoga frontalmente com o meio onde está sendo publicado.
    Me pareceu que faltou um pouco mais de atividade política destes sujeitos, sem idealizá-los, mas também não limitando a conversões. Aqui deixo outra recomendação pessoal, essa um pouco mais difícil. É o filme “El estudiante” (2011), argentina, um verdadeiro “Bildungsroman” da burocracia rasa da política universitária.
    No mais, estaremos esperando seu próximo fracasso.
    https://youtu.be/OOqyjTeGZ4Y?t=33m33s

  3. Poeta, poetinha, camarada,

    Quando li seu comentário fiquei igual João Grilo na última cena do Auto da Compadecida, não sabia se me dirigia ao inferno por saber que minha humildade era fingida, ou se essa humildade fingida era exatamente a minha salvação. Você sabe tão bem quanto eu, o quanto é importante para-nós essa apreciação crítica do leitor hipotético. Sabe tão bem quanto eu, o quanto o ato de comunicar sem o endosso do convencimento, sem a utilidade prática da alma é o que promove nossa praxis.
    Fico imensamente feliz, com minha fingida humildade cheia de si pela apreciação que fez das cartas.
    Uma coisa que me horrorizava era – juro que eu achava isso – a falta de comunicação entre Teotônio e as Cartas. Eu pensava comigo que minhas experiências estavam estéreis e sem comunicação. Em outras palavras, acreditava que não havia desdobramentos em minha escrita, o que muito me entristecia pela porra-louquice que imaginava conter nelas. Quando li sua opinião vi que eu estava enganado, há uma linha que se mantém. Por que lhe digo isso? Porque você sabe tão bem quanto eu como o amadurecimento literário leva duas vidas (uma que não temos e a outra que apostamos ter) esse amadurecimento depende do encontro com algo, com alguma coisa que caçamos como crianças na frente de um brinquedo que o quebra para saber o que tem dentro.
    Pois bem, sua opinião me tirou dessa angústia.
    Você conhece mais as personagens que eu mesmo, não posso ter uma sólida opinião sendo o pai. Tenho certeza que você vai nos pontos centrais do que os moviam e nesse espetáculo sou apenas um diretor de cena, quer dizer, dispensável, como dizia Abujamra.
    Você sabe tão bem quanto eu, o dilema de escrever num país sem leitores. A esquerda brasileira não é leitora, grande parte da esquerda despreza inclusive a leitura. Despreza os clássicos porque acha que foi a “USP” quem os inventou. Acredita que Shakespeare se dirigia aos aristocratas, quando os filhos da puta dito pelo seus personagens expressava algo que ia direto no coração do seu povo. Despreza o que não é da ordem do tributável, do cotidiano. Dizem que as coisas da alma é perda de tempo! Em suma, acreditam no convencimento e portanto descreem da literatura.
    Nós não! Nós não!

  4. Assistir à interlocução de dois ourives da expressão vernácula é, no mínimo, um privilégio.
    Beckettianamente: escrever é fracassar melhor…

  5. Caro Douglas,
    você está desenvolvendo um estilo próprio. Não sei se novo, mas próprio. E isso é muito. Querer que a coisa fique redondinha e que os leitores reconheçam o trabalho é normal, e tenho certeza de que você já é um grande escritor do nosso tempo. E nosso tempo é o tempo das mensagens sincopadas, da palavras sequer digitadas inteiramente. Num sistema que devora o tempo, o tecido onde bordamos nossa vida, a comunicação fica de escanteio. Veja a Trilogia do silêncio do Bergman, junto aos textos do W.Benjamin. Pode não ser alentador, mas de repente ajude no próximo degrau da autocompreensão. Antonio Candido falou da educação pela noite, acho que há de se falar da educação pelo erro. Falei disso comentando a luta de classes recente, mas serve para a produção artística, com a vantagem de que o “erro” dá a ela uma singularidade catártica. Não sei se tanto na música, mas na escrita e especialmente na pintura vejo isso bem forte. Telas com riscos e pinceladas erradas, onde justamente esses “erros” dão o sabor especial, como se nos convidassem a participar ativamente da apreciação, “corrigindo” os erros na nossa cabeça. Já na escrita o erro nada mais é, quando um erro genial, que a reprodução do errar que é o viver. E bom, de dica, se é que tenho alguma, diria para dar mais asas ao seu feeling rítmico e podar um pouco sua sanha didático-política-pedagógico-ideológica. Não é fácil ser um novo Sartre ou um novo Dostoiévski, por isso vai bem começar devagar na seara da formação política dos leitores. E olha que você já não é nenhum amador e tem momentos em que é realmente um escritor genial. Continue nos presenteando com seus escritos, e continue se presenteando com seu escrever. Dialoguei contigo no começo das cartas, como Carol, mas fiquei com receio de estar te botando e apuros e puxei o freio de mão. Vai saber porque pensei isso naqueles dias… se fosse hoje eu teria te tencionado o máximo que conseguisse e se você fosse parar no sanatório, teríamos um novo Sade hahaha Um abraço

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