Por Fredo Corvo

Cronologia das greves

Desde que o acordo coletivo dos trabalhadores da refinaria de Isla expirou, em setembro de 2011, seus salários não tiveram nenhum aumento. As negociações entre os patrões e o sindicato SGTK correram por anos sem qualquer resultado. Durante todo esse tempo, os trabalhadores não receberam nem compensação pela inflação, que entre 2010 e 2015 foi em média de 2,1% ao ano. Enquanto isso, o emprego no setor de petróleo afundou. Soma-se a isso que os trabalhadores de refinarias trabalham através de empreiteiras, que argumentam que estão sem margem financeira por causa da concorrência com os preços mais baratos das empreiteiras da Venezuela. Entretanto, nada disso impressionou os trabalhadores das refinarias. Em 2012 eles recusaram a proposta de um novo acordo coletivo feita pelo “seu” sindicato. O SGTK, na melhor das tradições corporativistas, participa de diálogos a portas fechadas com o governo e o instituto de mediação de Curaçao. Mas aparentemente eles não conseguiram escapar da pressão dos trabalhadores.

Segunda-feira, 29 de agosto de 2016

“Nós exigimos 8% agora, 5% no próximo ano e mais 4% em 2018”, diz um líder sindical. Desde a madrugada, 600 trabalhadores bloqueavam uma importante avenida em Wilemstad, a capital, próxima à refinaria de Isla. Assim começou a greve dos petroleiros. Eles não deixaram que o Ministro do Trabalho fizesse com que voltassem a trabalhar enquanto mediava as negociações com a patronal.

Segunda-feira, 12 de setembro de 2016

A greve durava uma semana. As negociações não levaram a lugar nenhum. Os patrões aceitaram a reivindicação dos aumentos salariais, mas os sindicatos estavam sob forte pressão da sua base. Eles queriam que todos os 700 trabalhadores recebessem um montante de 3.000 florins (equivalente a 1500 dólares) para compensar os anos de prejuízo. A patronal diz que 500 florins (250 dólares) é o máximo possível. A ideia da reposição começa a ganhar força entre os grevistas. Eles se sentem fortalecidos na luta quando os trabalhadores do Terminal de Óleo de Curaçao se juntam à greve em solidariedade.

Por outro lado, o Ministro da Justiça lança um decreto proibindo grupos de mais de quatro pessoas em estradas ou nas proximidades nos casos em que se puder presumir uma ameaça à ordem pública. Com isso, a greve ameaça levar a um confronto direto com o Estado.

Um século de experiência da classe trabalhadora mostra que, num caso desses, o movimento sindical fará de tudo para pôr fim à luta de classes. Dada a firmeza dos trabalhadores, o sindicato só conseguirá fazer isso se colocando atrás da greve com a esperança de tomar para si o controle.

“Curaçao não é uma selva”, declarou o presidente Whiteman após o incêndio no Teatro Nacional. “Eles tem o direito de fazer greve, mas não poderemos aprovar suas ações se começarem a queimar prédios.”

Terça-feira, 13 de setembro de 2016

Setenta sindicatos e duas federações sindicais dirigem uma carta ao Governador em apoio às greves e incluem a pauta da reposição salarial. Mas, na carta, eles também se opõem ao decreto do Ministro da Justiça e a uma lei que ameaça limitar a “liberdade de negociação sindical”.

À tarde, o ex-Ministro e ex-líder sindical Errol Cova – que se tornou um porta-voz do movimento sindical – declara que a situação continuava a mesma e convoca uma greve geral para a manhã da quinta-feira, dia 15.

Quinta-feira, 15 de setembro de 2016

A greve geral paralisou o sistema de energia de toda ilha (ou seja, não funciona ar condicionado), fechando escolas e lojas. Por trás dos panos, a plataforma nacional de diálogo conduz as negociações.

Enquanto isso, discute-se a ação judicial da empresa pública Aqualectra contra os sindicatos para obrigar os trabalhadores da eletricidade a voltarem a trabalhar. Os sindicatos concordam em convocar os filiados a retomar as atividades o quanto antes… quer dizer, a furar a greve. É improvável que os eletricitários estivessem querendo isso. Mas os preparativos de alguns sindicatos para encerrar a greve feriram a moral na linha de frente do combate.

Da próxima vez, os trabalhadores militantes poderiam restabelecer o fornecimento de luz apenas nos bairros proletários e, por exemplo, em hospitais. Dessa forma conseguiriam mostrar à população que, como classe, são capazes de fazer funcionar a sociedade. Agora seus oponentes usam a interrupção de seis horas contra os grevistas, chegando até a espalhar boatos de que os bloqueios de estradas estariam pondo em risco o abastecimento de água potável.

Às cinco e meia da tarde, o mediador anuncia: “Tudo correu bem”. A lei controversa foi postergada. E o dinheiro exigido pelos grevistas foi concedido: 1,8 milhões de florins (praticamente 1 milhão de dólares). “Foi concedido pelo setor privado.” Ninguém queria dizer quem era o misterioso gastador, já apelidado de o “Bom Samaritano”, como se fosse caridade pagar os salários atrasados.

O jornal holandês Trouw escreveu: “Os sindicatos estão aliviados depois das últimas três semanas. ‘Uma grande vitória’, diz o porta-voz Cova”. Mas vitória para quem? Se a perda nos salários foi de fato paga, a renda dos trabalhadores pode ter entrado no ritmo do aumento dos preços. Com isso, sua situação não piorou economicamente, mas eles também não tiraram proveito do crescente aumento da produtividade. Como comentamos acima, o emprego no setor petrolífero vem diminuindo. Se assumirmos que a carga de trabalho não diminuiu, então o mesmo trabalho está sendo feito por menos gente. A verdade dolorosa é que, apesar das lutas operárias, a taxa de exploração está crescendo.

A verdadeira vitória dos trabalhadores foi a que tiveram sobre si próprios: eles superaram suas divisões e construíram uma verdadeira unidade na luta que lhes deu coragem para enfrentar com suas reivindicações as empreiteiras e, por detrás delas, os donos e gestores da refinaria de Isla. Soma-se a isso que eles também investiram forças contra seus “próprios” sindicatos e contra o sindicalismo num sentido mais amplo, por não defender os interesses dos trabalhadores e sim seus próprios interesses, sua sobrevivência como organização com “liberdade de negociação” diante da pressão do Estado. O movimento sindical ficou aliviado porque a controversa lei de “otimização das relações entidades-governo” não deve entrar em vigor enquanto os partidos participam do diálogo nacional. O diálogo nacional levará um mês, a partir de 26 de setembro. Depois disso, cada partido deverá enviar um relatório com suas conclusões. Quanto ao decreto do Ministro da Justiça, ficou acordado que ele seria revogado assim que a greve terminasse. Os partidos concordaram em discutir os assuntos de interesse público na plataforma nacional de diálogo. Assim, sob ameaça da lei e de um decreto que restringia sua “barganha”, o movimento sindical em Curaçao seguiu seu caminho rumo à integração ao Estado.

Curaçao no Caribe e no mundo

A pequena ilha caribenha de Curaçao tem importantes refinarias desde a Primeira Guerra Mundial. Em 1914 foi encontrado petróleo na Bacia de Maracaibo da Venezuela. Atualmente essa bacia responde por 50% do petróleo bruto da Venezuela. A Shell e seu servo, o Estado holandês, decidiram em 1915 estabelecer uma refinaria em Curaçao, território do Reino dos Países Baixos, a 45 km dos campos venezuelanos, próximo ao local onde no passado faziam o comércio de escravos. A Shell e a Exxon controlavam todo mercado de petróleo, desde a extração na Venezuela, passando pelo refinamento em Curaçao e Aruba (outra colônia holandesa) até a distribuição aos clientes na América, principalmente nos EUA, cujo mercado crescia imensamente estimulado pelo status de superpotência que o país obtivera com sua participação remota na Primeira Guerra. Em 1938, quando a indústria petrolífera do México foi nacionalizada, a Shell e a Exxon deram um suspiro de alívio: elas haviam feito um bom investimento estabelecendo refinarias em Curaçao e Aruba. Um paraíso seguro no qual os interesses imperialistas sobre o petróleo poderiam ser protegidos pela Marinha durante a Segunda Guerra Mundial, separado por mar de uma possível ebulição social e política na Venezuela. Mas em 1975 foi a vez da Venezuela nacionalizar sua indústria petrolífera. Agora a Shell teria que comprar petróleo bruto aos preços do mercado mundial. As refinarias em Curaçao e Aruba continuavam sendo convenientes para processar o petróleo venezuelano, mas agora a margem de lucro havia caído. Em 1985, devido às perdas contínuas nas refinarias e a superprodução global, a Shell se retirou de Curaçao. A refinaria foi vendida à Curaçao por 1 guilder e eventualmente veio a cair nas mãos da Venezuela. Hoje velha e arcaica, a refinaria produz uma poluição enorme na ilha. Em 2014 o Primeiro Ministro de Curaçao, o vice-presidente da companhia estatal de petróleo venezuelana PdVSA, Asdrúbal Chavez (sim, o primo do…) e a “Refineria di Kòrsou” assinaram um acordo de cooperação para encontrar uma terceira parte, que financie investimentos de modernização na refinaria de Isla. Essa “terceira parte”, porém, demoraria um bom tempo para ser encontrada…

A revolta de “Trinta di Mei” em 1969

Para oferecer educação aos filhos dos empregados holandeses da Shell, no início do século XX mudou-se o idioma oficial das escolas de espanhol para holandês. Através da educação obrigatória, o colonizador impôs sua língua à população. Nos anos 1950, com a refinaria no auge da sua produção, houve uma melhoria na infraestrutura e se construiu moradias em larga escala. Em 1952 a Shell chegou a ter 12.631 trabalhadores, o maior número de sua história. Comparando com a Venezuela, os rendimentos de Curaçao eram – e continuam sendo – altos. Mas a população afro-caribenha aproveitou pouco do desenvolvimento. A transformação de uma greve em “insurreição” em 30 de Maio de 1969 foi em grande parte abastecida por esse incômodo.

Citamos o artigo da Wikipedia (holandesa) sobre o “Trinta di Mei” para mostrar algumas das aparentes similaridades com a greve deste ano:

“A economia de Curaçao desabou nos anos 1960. O aumento dos preços não era suficientemente compensado pelo aumento dos salários, de modo que o poder de compra da população foi muito reduzido. Além disso havia o sistema de empreiteiras introduzido pela Shell, no qual a empresa demitia seus trabalhadores que então tinham que fazer o mesmo trabalho através de terceirizadas por salários muito mais baixos e sem proteção social, levando a uma séria agitação. O motivo imediato da greve era a estagnação das negociações de um novo acordo coletivo.”

Conforme mais e mais moradores da ilha aderiam à marcha de protesto dos grevistas da refinaria e dos portos, tomando as ruas com a palavra de ordem “Pan i respet” (pão e respeito), veio à público um descontentamento mais profundo, e a greve deixou de ser simplesmente uma luta salarial para se tornar uma revolta popular. Como é frequente, os grevistas perderam a batalha, por perder o controle sobre sua própria luta. A marinha holandesa interveio para pôr fim ao movimento popular e à greve. O líder da greve, “Papa” Godett, que foi baleado nas costas pela polícia durante a revolta, fundou um partido político chamado “Frente Obrero i Liberashon Tue May 30”. Esse partido “radical” e “socialista” teve uma grande vitória nas eleições de setembro. À época, Godett estava na prisão por seu papel no levante de 30 de maio. Ele foi libertado e assumiu um cargo como membro do parlamento. No governo Evertsz (1973-1977), Godett tornou-se Ministro do Trabalho e Assuntos Sociais, e brevemente também de Cultura, Esportes e Lazer. Apesar das boas intenções, ele não conseguiu fazer nada. A ação mais importante de Godett como ministro foi reduzir a idade de aposentadoria, mas ele fracassou em levantar fundos, fazendo as pensões antilhanas serem inúteis.

Desde então, as classes dominantes da ilha são apoiadas por uma elite da parcela afro-caribenha da população. Essa foi a mudança trazida pelo “Trinta di Mei” de 1969. Mas os estivadores e petroleiros continuaram a ser trabalhadores assalariados e os desempregados continuaram sendo trabalhadores desempregados. Daí em diante, os novos partidos políticos conseguiriam obter certo sucesso nas eleições apelando aos sentimentos de opressão e inferioridade do período da escravidão, que foi ficando cada vez mais distante no passado. Esse cultivo do passado distraía o proletariado de Curaçao de sua existência atual como trabalhadores assalariados. Mas a realidade não pode ser negada. Os salários daqueles que trabalham estavam cada vez mais e mais incapazes de prover suas condições de vida.

Papa Godett

Os senhores da Shell se foram e a Venezuela tomou seu lugar. Mas, após Cuba, a Venezuelana – o outro modelo latinoamericano de “socialismo” – está agora à beira da falência. A refinaria de Isla vai mudar de mãos novamente. Para saber o que essa mudança significa aos trabalhadores, é interessante ver como a burguesia está lidando com isso.

A burguesia de Curaçao

Nós vimos anteriormente como formação de partidos políticos com fraseologia “socialista” e uma base eleitoral na população afro-caribenha acabou fortalecendo o Estado. A velha classe dominante aprendeu a usar convenientemente a repulsa da maioria da população contra os “makambas”, os colonizadores holandeses. Sob o disfarce do anti-imperialismo, essa burguesia assumiu o papel do nacionalismo, ferramenta que escolheu para deixar os trabalhadores subordinados. Isso pode ser visto na aversão geral à Aruba, uma ilha que é ainda mais dependente da refinaria; eis uma forma efetiva de jogar uns trabalhadores contra eles outros que estão fazendo o mesmo trabalho sob as mesmas condições miseráveis. A origem do proletariado da ilha é principalmente da migração – de muito tempo atrás ou mais recentemente – das Antilhas, além outras ilhas como o Haiti e República Dominicana, ou da Venezuela e Suriname, e também parte dos emigrantes da Europa e da Ásia pertencem ao proletariado. Esses movimentos de imigração são inevitáveis tanto quanto a emigração para, por exemplo, os Países Baixos. O capital usa a migração para colocar os trabalhadores contra eles mesmos baseados em sua origem, cultura ou religião, fazendo-os acreditar que sua “pátria” os protegerá contra os “forasteiros”.

Durante décadas, a política da ilha exibia uma imagem de populismo, enganação dos eleitores, abuso de poder e corrupção. Além da linha de “dividir-para-governar”, que assumiu da política feita pelos colonizadores holandeses em sua terra natal, e da retórica anti-colonial e “socialista” ao exemplo latinoamericano, a burguesia insular aprendeu com a máfia americana, vastamente representada no comércio de drogas e no setor de jogos de azar, o que pode ser visto nos assassinatos políticos, como do parlamentar Wiels que ousou fazer ameaças de denúncias de corrupção. Manobras financeiras e jurídicas escondidas sob a hipocrisia calvinista, usando empresas de contabilidade internacionais em paraísos fiscais, completam as qualidades das classes dominantes de Curaçao.

Mas o mundo está mudando, movido pela crise econômica do capitalismo, em direção a uma nova guerra interimperialista. Países se desintegram e várias tentativas são feitas para formar novos blocos econômicos e militares. Curaçao não pode escapar de novas convulsões – dada sua localização estratégica.

Quem é Erroll Cova?

Em uma reportagem sobre a greve, a revista Amigoe escreveu:

“Os acontecimentos das últimas semanas também levantam questões sobre o papel de Errol Cova nessas ações. Cova, que é velho conhecido da cena política e sindical, envolvido nos bastidores e assessorias, foi uma figura proeminente na linha de frente a semana inteira. Estará ele preparando um retorno? O tempo dirá.”

A Wikipédia nos diz o seguinte sobre Erroll Cova:

“Cova foi deputado Primeiro Ministro e Ministro de Assuntos Econômicos no Governo de Etienne Ys. Ele representava o “Partido Trabalhista Cruzada do Povo”. Ele se provou um admirador da revolução bolivariana na Venezuela e viajou inúmeras vezes ao país vizinho. Seu apoio explícito ao Presidente Hugo Chávez lhe gerou problemas, como quando ele reivindicou em uma entrevista a saída da Unidade Anti-Drogas dos EUA das Antilhas e contou aos vice-presidente venezuelano Mangel. o colonialismo holandês produziu nos antilhanos um complexo de inferioridade frente à Holanda, mas ao mesmo tempo um espírito de superioridade em relação a outras nações latinoamericanas. Enfim Cova teve que pedir demissão. Em 2008, ele se opôs veementemente ao acordo político entre os Países Baixos e cada ilha individualmente, que levaria a uma maior autonomia delas e amarras ainda mais fortes à metrópole. Cova apelou que os Países Baixos aplicassem o artigo 73 da Carta das Nações Unidas para avançar na independência das Antilhas.”

Errol Cova de volta à ação

Não temos indícios de que Erroll Cova tenha mudado suas posições. Ele é, e provavelmente continuará sendo, um populista que tentará obter alguma vantagem política nas próximas eleições com uma retórica anti-colonialista e “socialista”. Atualmente, ele está ativo em vários sindicatos e atua como se fosse um amigo da classe trabalhadora, o que é provável que ele realmente acredite ser. Mas a história de Castro em Cuba, Lula no Brasil (começou como um líder sindical) e Chávez na Venezuela mostra que esse tipo de líder não consegue mudar nada para a classe trabalhadora. À nível mundial, eles cumprem um papel até o momento em que colidem com os Estados Unidos. Antes do colapso da União Soviética eles poderiam, então, contar com o apoio do bloco do Leste. Sem esse apoio financeiro, acabam atingidos em cheio pela crise do capitalismo. Seja lá quantas empresas eles nacionalizem, o trabalho assalariado continua, o capital e suas crises sobrevivem, chegando em muitos casos a assumir a forma de um capitalismo de Estado ineficiente. Por outro lado, pequenos “socialistas” anti-coloniais como Godett em Curaçao só cumprem um papel na luta entre os interesses capitalistas locais e terminam, enfim, integrados ao Estado. Errol Cova já jogou esse jogo. A repetição dele está comprometida pela falência do regime de Chávez na Venezuela. Para Cova, o mesmo vale à política vigente em Willemstad, e por isso deverá servir a novos senhores.

O Bom Samaritano

Nós poderíamos dizer mais sobre esses novos senhores se soubéssemos quem apareceu com os 1,8 milhões de florins que a greve conquistou. Uma pessoa do sindicato, que desde as negociações já queria acabar com a greve, provavelmente sabe mais. Quando confrontado com a intransigência dos donos das empreiteiras, esse dirigente sindical declarou: “então vamos tirar o dinheiro de outro lugar”.

Presidente Whiteman (à dir.) fechando negócios com a Guangdong

Nós reparamos que após o anúncio do fim da greve finalmente se encontrou, depois de dois anos, uma “terceira parte” para financiar os imensos investimentos necessários para modernizar a refinaria de Isla: a empresa de petróleo chinesa Guangdong Zhenrong Energy, uma das maiores da China na área de refinamento, petroquímicos, armazenamento e distribuição de produtos refinados. O governo e a empresa chinesa deram a si próprios quatro meses para negociar os detalhes. Os sinais parecem favoráveis. Os chineses não pedem nenhuma garantia do governo e prometem transformar a refinaria em uma companhia ecologicamente sustentável e com boas condições de trabalho que daqui a vinte anos continuará sendo competitiva.

A Guangdong Zhenrong Energy fornecerá verba, arquitetura, engenharia e a construção. Há planos para aumentar a capacidade, modernizar o sistema elétrico adotando gás líquido natural, que também vai ser armazenado para exportação. Mas quem vai operar essa refinaria? O contrato com a empresa estatal venezuelana PDVsA acaba em 2019. As obras vão começar quando o contrato com o operador atual já tiver acabado. Os chineses serão responsáveis por garantir o fornecimento do petróleo bruto. “Antes disso, nós primeiro teremos de fazer negociações com a Venezuela, dada a longa relação que temos”, explicou Whiteman, o atual presidente de Curaçao. Como se sabe, a Venezuela encontra-se numa profunda crise econômica e política. No que diz respeito a isso, ainda podemos esperar problemas. A China é a maior compradora de petróleo bruto da Venezuela e aparentemente pretende, seja lá qual for destino do regime chavista, continua sendo através de sua influência sobre a refinaria de Isla.

Promessas aos trabalhadores de Curaçao

A Guangdong Zhenrong Energy está pronta para investir 18 bilhões de florins (isto é, cerca de 10 bilhões de dólares, mais de 9 bilhões de euros). Frente a isso, os 1,8 milhões dados aos grevistas são uma mixaria. Mais precisamente, 0,1%, uma migalha ínfima. Num pronunciamento via rádio e televisão ao vivo no domingo, dia 18 de setembro, o presidente Whiteman anunciou as vantagens que os novos senhores chineses tinham a oferecer para a ilha. Numa clara tentativa de prevenir novas chamas das lutas operárias recém cessadas, e para impedir qualquer escalada a um novo “Trinta di Mei”, ele prometeu ao proletariado:

No futuro, trabalhadores empregados na Isla por empreiteiras ou terceirizadas receberão o mesmo salário que seus colegas empregados diretamente pela refinaria.

O governo da China não permitirá o envio de trabalhadores chineses à Curaçao. Portanto, a Guandong em cooperação com o governo de Curaçao vai treinar pessoas para o trabalho. O exército local de jovens e adultos desempregados terá uma oportunidade de aprender o serviço e ganhar a vida de maneira digna.

 Com os 4.000 trabalhadores que devem ser necessários, será possível pôr de volta nos trilhos os fundos de pensão e aposentadorias.

 O setor social, como educação e moradia, será beneficiado pela injeção de capital.

 Haverá uma redução significativa da poluição ambiental.

Finalmente, Whiteman falou sobre a necessidade de Curaçao aderir a certos princípios – leia-se: o Estado manter sua credibilidade e as classes dominantes prevalecerem –, tais como o princípio da “boa e transparente governança”, “justiça” social, “transparência”, “emancipação da dependência”e a “a dominância do dinheiro”(sic). Outro princípio chave seria o da “política inclusiva”, onde todos os residentes teriam a oportunidade de participar ativamente da vida social e avançar.

China – por que e onde ela investe

Depois de anos com um crescimento de dois dígitos, a economia chinesa está em declínio desde a crise de crédito de 2008. Comparadas a outros países, suas taxas de crescimento continuam altas, mas baixas o suficiente para ter de lidar com problemas políticos domésticos: aumento de greves e revoltas de trabalhadores, especialmente aqueles vindos de áreas rurais que trabalham sob permissões temporárias nas fábricas do Delta do Rio das Pérolas. Há, por exemplo, uma superprodução em massa de metal, mas os gestores da China não ousam fechar as usinas siderúrgicas nem as minas de carvão devido o risco de uma revolta operária. Por isso, algumas fábricas que fecharam continuaram pagando salários aos trabalhadores que foram para casa. Outras fábricas continuaram produzindo e seus produtos procuram locais de venda mundo afora.

O Estado chinês transforma sua necessidade em virtude e sai em busca de mercados para vender projetos de infraestrutura, não só na China, onde novos polos industriais e sistemas de transporte vem sendo desenvolvidos, mas também no estrangeiro. Daí um imenso projeto – a Nova Rota da Seda – que irá conectar os centros industriais chineses por terra e por mar, com ferrovias e portos, aos mercados europeus atravessando a Eurásia. Se esse plano ambicioso for bem sucedido – há problemas com o financiamento de terceiros e com a estabilidade política das áreas pelas quais a rota precisa passar –, a divisão geoestratégica do mundo seria dramaticamente alterada pois China, Rússia e Europa ficariam intimamente interligadas. A despeito do fato de que foram eles mesmos que originalmente o desenvolveram para dar uma perspectiva ao Afeganistão, os EUA encaram esse plano com crescentes suspeitas, pois querem conter econômica e militarmente a Rússia e porque o projeto é apresentado por alguns como uma alternativa às práticas e ideologias neoliberais. De acordo com algumas fontes, a Nova Rota da Seda envolve também outros continentes, como a África, América Latina e América do Norte (via derretimento das calotas polares). No Brasil, a China tem um vasto mercado de produtos industriais a defender, e, na Venezuela, o principal fornecedor de combustíveis fósseis. O investimento na refinaria de Isla se encaixa perfeitamente nesse quadro.

Como antes e durante a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, no quadro atual, que pode se tornar uma antessala de uma terceira guerra mundial, Curaçao tem uma grande importância estratégica: Willemstad foi, é e será um ponto nodal no abastecimento energético. Tanto os EUA quanto a China querem obtê-lo, ou mantê-lo sob sua influência para garantir seus interesses imperialistas.

O modelo chinês das relações de trabalho

É digno de nota que a China acrescentou um tipo de “cláusula social” ao acordo com o governo de Curaçao, cujo presidente Whiteman está tentando apaziguar a população trabalhadora. A China é conhecida por fazer negócios com qualquer camarilha, seja lá qual for sua política, incluindo nas relações de trabalho. Mas, para a China, Curaçao não é um Estado, não é um país, nem uma ilha; é uma refinaria… especialmente explosiva. Internamente, o governo chinês não é muito exigente no que diz respeito aos direitos trabalhistas. Só os sindicatos controlados pelo partido e pelo Estado são tolerados como ditas organizações de trabalhadores. Greves são reprimidas, irrupções operários revoltosos são destruídas. A realidade das relações trabalhistas na China nos dá o seguinte retrato:

1. Só quando as greves exercem forte pressão as reivindicações são atendidas, antes que o movimento se expanda.

2. Em seguida, vem a repressão contra os líderes (que são quase sempre demitidos, frequentemente presos e às vezes mortos pela polícia ou por gângsters).

3. Como dito anteriormente, as empresas trabalham com migrantes das regiões rurais que tem um visto de residência temporário. Esses trabalhadores estão sob constante pressão e precisam voltar ao campo assim que ficarem sem emprego.

4. Nos movimentos que forem grandes demais para serem reprimidos dessa maneira, como no levante “estudantil” de Tiananmen, seus líderes (estudantes) são cooptados, sendo incorporados ao partido, recebendo cargos bem pagos. Já os trabalhadores são tratados com dureza pelos militares.

Esse procedimento conseguiu, até agora, evitar um levante de trabalhadores na China. Mas a queda no crescimento econômico afeta a capacidade de fazer pequenas concessões para parar a massa de trabalhadores grevista ou revoltosa.

Um leitor atento terá notado que o ponto 1 corresponde à conduta na recente greve: comprados!

O ponto 2 ainda pode ocorrer tão logo a ameaça de greve desaparecer.

O ponto 3 já é uma realidade, uma vez que as “empreiteiras” da Venezuela operam na ilha.

O ponto 4 se aplica ao que ocorreu em Curaçao após o “Trinta di Mei”, com o líder grevistas Godett – e, hoje, Eroll Cova – adentrando à política.

Greves, revoltas e insurreições

Greves – tenham ela sucesso em obter aquilo que reivindicam ou não – são sempre mais que lutas puramente econômicas. O “Trinta di Mei” começou devido à perda de salários e garantias quando a Shell começou a trabalhar através de empreiteiras terceirizadas. Quando os trabalhadores tomaram as ruas, a luta passou de uma greve pelo “pão” para uma batalha por algo que já estava ficando muito maior e indo muito mais fundo: “respeito”. Nisso, o sentimento de indignação cumpriu um papel muito importante, uma vez que eles sentiam que não estavam sendo tratados como gente, e sim como se ainda fossem escravos. À época, veio à memória a rebelião de escravos de 1795, liderada pelo escravo revolucionário Tula, cujas lendas orais foram passadas adiante às gerações futuras. Aqui assumiremos que essas histórias são conhecidas (veja na Wiki), porque queremos comparar essa verdadeira insurreição ao “Trinta di Mei”, que foi chamado de insurreição quando na verdade não passou de uma revolta.

Tula liderou uma insurreição porque ele tinha um objetivo pré-concebido, libertar os escravos, e um plano com os passos a serem tomados. O movimento estava bem preparado e escravos livres estavam engajados na luta pela crescente percepção de que, como seus donos, os escravos eram seres humanos com os mesmos direitos. Dessa forma, Tula alinhou a insurreição aos ideais da Revolução Francesa que, na colônia francesa do Haiti, levara à abolição da escravidão. Uma vez que à época a Holanda havia sido dominada pela França, ele esperava que que as ações levassem à abolição também na colônia holandesa. Em vão. A revolta foi derrotada e Tula tragicamente condenado à morte. No Suriname, os escravos rebelados teriam tido mais chance de sucesso se tivessem conseguido chegar às selvas, onde poderiam retornar ao seu modo de vida africano, podendo a partir de lá empreender tentativas de libertação.

A Revolução Francesa foi uma revolução burguesa que levou ao poder político os donos do capital, que então ajudaram a libertar a economia capitalista de todas as restrições ao mercado. A força de trabalho poderia agora ser livremente vendida pelos despossuídos, que foram transformados em trabalhadores assalariados. O escravo assalariado não é vendido por alguém, ele próprio vende sua força de trabalho, sua capacidade de trabalhar por um determinado tempo. Nos EUA, a abolição da escravidão permitiu que ex-escravos passassem a uma nova escravidão no norte – para trabalhar na indústria de carnes em Chicago e, depois, na indústria automobilística de Detroit – como escravos assalariados.

A situação dos trabalhadores assalariados é diferente daquela sob as formas anteriores de escravidão. As revoltas escravas na Antiguidade – como a rebelião de Espártaco sob o Império Romano – conseguiu, no máximo, que escravos libertos retornassem às relações sociais que tinham no passado. Diferentemente, Tula pôde se aventurar em uma insurreição para dar um passo histórico adiante, forçando o Estado a abolir a escravidão, algo que com o desenvolvimento irrefreável do capitalismo viria a ser inevitável. A transformação da escravidão em trabalho assalariado foi definitivamente um progresso histórico, o qual a maior parte dos envolvidos escolheu, fugindo e, se necessário, entrando em combates que poderiam custar suas vidas, simplesmente por não aceitarem mais viverem escravizados.

A libertação da escravidão assalariada é algo que está por vir. Não poderá acontecer como um retorno às relações do passado, e fugir às selvas é uma possibilidade remota. Para a classe trabalhadora, a auto-libertação só é possível num árduo processo revolucionário no qual todas as relações sociais são revolucionadas. Os trabalhadores lutam para defender suas condições de vida contra os efeitos da crise, que por si mesma revela que a sociedade capitalista só gera mais miséria e guerras imperialistas. Nesse movimento, eles desenvolvem sua organização e consciência enquanto classe. Isto é: quem são eles, que eles devem aprender a conduzir as lutas por si próprios, quem são os inimigos, que eles devem aprender a resistir aos ataques capital e do Estado, e finalmente desafiar o Estado. Como combatentes, eles transformam a si mesmos de dominados e explorados pelo capital em pessoas auto-confiantes. A revolta contra o poder do Estado é uma parte importante nesse processo revolucionário. Os conselhos de trabalhadores controlam eles próprios diretamente os meios de produção, sem uma intervenção de um Estado ou capital. Eles permitem que a produção esteja à serviço da satisfação das necessidades sociais ao invés da ganância de um pequeno grupo, como tem sido até agora.

Deve se compreender que o “Trinta di Mei” não foi uma insurreição no sentido mencionado acima. Não havia sequer um plano pré-concebido para desafiar a inevitável repressão estatal. Não poderia ser diferente, porque não havia consciência além da indignação elementar, só o começo da consciência crescente de um processo revolucionário. Por isso a indignação foi disseminada, e boa parte dos demais proletários se uniu aos trabalhadores. Mas eles não tinham ideia do que fazer além de saquear lojas e fazer fogueiras. Isso se chama revolta. Pela falta de perspectivas, os revoltosos são incapazes de defenderem a si próprios contra a repressão que inevitavelmente vem na sequência.

E daqui pra frente?

Os líderes da greve de 2016 foram amplamente elogiados pelas elites porque as greves não se tornaram uma revolta outra vez. Do ponto de vista da classe trabalhadora, isso também não foi algo ruim, mas por um motivo completamente diferente: uma repetição da revolta traria apenas mais repressão. Nós precisamos ir além da revolta. Nas próximas vezes, os trabalhadores em luta devem se preparar para a repressão que os espera. Um caminho importante para fazer isso é ampliar as greves o máximo possível, inclusive para outros países. Expandir para o proletariado dos bairros populares também é uma defesa importante. Quando tiverem um controle firme sobre seus movimentos, os grevistas poderão fornecer água, energia, comida, educação e cuidados médicos aos distritos de trabalhadores. Assim ficará claro que os escravos assalariados de hoje podem ser os produtores livres e iguais de amanhã, que criarão uma sociedade na qual todos poderão desenvolver suas qualidades únicas e pessoais.

Agora os trabalhadores que se engajaram na greve estão se desmobilizando. Trabalhando subordinados aos patrões, eles voltam a ser divididos. Nesse cenário, a repressão tende a atacar aqueles que ganharam destaque nas lutas. Cada vez menos as promessas dos patrões vão sendo cumpridas. É importante que todos se mantenham em contato e acompanhem atentamente os próximos acontecimentos, estando alertas para reagir quando a situação exigir.

Nem todo trabalhador terá motivação para isso. Talvez só consigam se manter grupos pequenos e dispersos, que tentem ficar alertas e tirar lições para as próximas lutas. Uma vez que, fora de um momento de ascenso, os sindicatos não vão ficar sob pressão das bases, é importante observar o quão longe eles vão em seus “diálogos” com os patrões e o governo para salvar sua “liberdade de negociação” às custas… dos trabalhadores. O mesmo se aplica às demais organizações que dizem defender os trabalhadores, como partidos políticos.

Cada divisão da unidade da classe deve ser combatida ativamente, especialmente quando tentam jogar os trabalhadores de Curaçao contra os de outras ilhas ou países.

O futuro do proletariado de Curaçao é a revolução dos trabalhadores em todo o Caribe.

Sobre este artigo
Publicado originalmente por Fredo Corvo na página holandesa Arbeidersstemmen em 25 de setembro, este artigo foi traduzido ao português pelo Passa Palavra com base na versão em inglês feita pelo próprio autor.

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