Este modelo de Estado, cuja exceção é permanente, passou a ser a prática não só dos regimes totalitários, mas das próprias democracias. Por Daniel Caribé

Segunda-feira, 29 de agosto de 2016. A presidenta Dilma Rousseff – que dois dias depois seria ex – apresentou defesa contra seu processo de impeachment. Todo o rito foi respeitado, exceto uma ou outra derrapada não muito acintosa, e o julgamento, inclusive o direito de defesa, transcorreu dentro de nítida calma jamais vista em um processo de deposição de governante eleito pelo voto. Sem o uso da força (militar ou miliciana) e sem evocar os plenos poderes para o exército ou outro poder qualquer, o judiciário e o legislativo, em jogo fraternal de causar inveja, implementaram o parlamentarismo sem precisar que aqui fosse um, exatamente ele que havia sido derrotado no único plebiscito nacional realizado pós-democratização, em 1993.

No mesmo dia, ao final da tarde, “as camisas pretas contra as botas pretas” fechavam a cara e as ruas do centro de Salvador diante de uma polícia com fuzil em mãos – e não é uma metáfora. Era a “Marcha contra o genocídio do povo negro”, promovida pelo movimento Reaja [ou será morta, reaja ou será morto], que há mais de uma década denuncia os assassinatos cometidos pela polícia militar em todo o território nacional, cuja mira é ainda mais precisa quando, do outro lado, há alguém de pele escura. Nenhum daqueles que chorava por Dilma fez-se presente; “as camisas pretas” também não lamentavam o julgamento em curso.

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Assim, enquanto uma esquerda atônita parecia assistir ao enterro da democracia recém-nascida na década de 1980, os mapas da violência nos mostram que ela nunca nasceu para grande parte da população brasileira; afirmação, aliás, usada à exaustão por aqueles “da quebrada”. Direitos civis, liberdades individuais, julgamento justo etc. – nada disso faz parte do repertório dos cidadãos de segunda ordem, mas sim encarceramento em massa, execução sumária, territórios militarizados, situação que só piorou nos últimos anos.

Essas duas realidades cada vez mais presentes em qualquer canto do planeta – recapitulando, de um lado uma suposta democracia que se mostra cada dia mais ilusória e, do outro, o crescimento da violência cometida pelo Estado em seu próprio território – de certa forma se sobrepõem. Esta sobreposição, até então, serviu mais para ocultar a violência do Estado, como se ela fosse uma anomalia, algo a ser corrigido com o aprimoramento das instituições (talvez o fim da Polícia Militar, talvez a reforma do Judiciário). Mas agora, após a sofisticação das instituições democráticas levar o Estado por outros caminhos, como a concentração de poderes e a generalização da violência, qual dessas realidades melhor escancara o momento?

Quando, no primeiro semestre, a presidenta agora deposta sancionou a Lei Antiterrorismo – sob a justificativa de que esta seria necessária para nos resguardar de ataques no período das Olimpíadas, cuja abertura ela sequer chegou a realizar –, foi grande o alarido. É verdade que a Lei desvelava a quem pertencia o monopólio da violência e, por meio de conceitos obscuros, abria a possibilidade de qualquer um ser enquadrado nos crimes ali vagamente tipificados. Quem dera que, apesar disso, a Lei ao menos resguardasse a parte da população que não usufrui sequer de uma norma quando é alvo da violência do Estado. Estar à margem da norma – mesmo quando a norma nega a si – é um vazio somente descrito nas teorias ao se falar da situação dos judeus durante o nazismo. Mas calma! À exceção dos presídios e dos centros de reabilitação, ainda não temos campos de concentração.

O propósito deste texto não é escolher pelo mal pior no esforço tão comum de fragmentação das lutas, mas levantar uma questão: como articular a violência cotidiana com o golpe em curso? Como estes dois Estados – o devolvido via manobra institucional aos seus donos de sempre e o da violência que nunca respeitou as normas – articulam-se e caracterizam o Estado de Exceção que temos sobre nós de forma agora completa?

I

A ideia de Estado de Exceção surge para dar conta de uma época na qual os Estados Nacionais eram fortes, as repúblicas estavam a ser consolidadas e, mais à frente – quando Carl Schmitt dá nova abordagem ao conceito –, a Europa encontrava-se às portas do nazismo e da Segunda Guerra. O Estado de Exceção transbordava a normalidade quando alguma instituição (o executivo ou o exército, por exemplo) concentrava os plenos poderes, rompendo com o equilíbrio proposto por Montesquieu. A instauração dos plenos poderes não só desequilibrava a correlação de forças, como também suspendia as garantias individuais. Estado de Exceção, portanto, exigia a suspensão da ordem legal, sem, contudo, romper com a ordem social.

É importante destacar, desde já, que não foi isso o que se passou no processo de impeachment no Brasil. Até segunda impressão, o ordenamento jurídico está em pleno vigor, as garantias constitucionais ainda existem e os três poderes participaram de todo o processo – inclusive o vice-presidente eleito, na condição de representante do executivo e em exercício do cargo durante o julgamento. Mesmo a retirada de direitos e garantias, que já vinha acontecendo durante os governos petistas e agora se aprofundou, como a possibilidade de prisão dos réus a partir de sentença em segunda instância, teve aprovação pelo STF, respeitando os ritos exigidos.

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Se a ruptura não foi na ordem legal, também é verdade que algo já não se encontra mais no lugar. E se a presidenta eleita não seguia sequer o programa conservador pelo qual chegou ao Planalto, aquele que agora ocupa o seu lugar vem para implementar uma política completamente derrotada nas últimas eleições. Que nome dar a isto? “Golpe”, alguém a esta altura já gritou. E concordamos. Mas concordamos na medida em que dar um nome velho e genérico a uma coisa nova e específica não nos ajuda em muito.

Se não estamos, portanto, sob Estado de Exceção fundado em golpe de Estado “clássico”, estaríamos diante de uma nova forma de Estado de Exceção que iria além do que já foi descrito? A sofisticação do Estado e do direito chegou a tal ponto que passou a prescindir dos golpes, inaugurando, assim, uma nova era? Algumas das adjetivações empregues ao momento, como Golpe Parlamentar ou Golpe Constitucional, por exemplo, escancaram a complexidade mas, ao mesmo tempo, explicam a nova técnica de governo que está surgindo.

Agamben (2004) define o Estado de Exceção como aquilo que se apresenta “como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal (…) É essa terra de ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida” (p.12). O autor supracitado parte da tese de que, até então, na teoria do direito público, não fora desenvolvido o conceito de Estado de Exceção. Mesmo em Carl Schmitt, principalmente no livro Teologia Política de 1922, bem como em todas as derivações realizadas por seus continuadores e nas rupturas operadas por seus críticos, o Estado de Exceção esteve à margem dos estudos afins, dado como algo “que acontece”, que nega o que está posto (a norma, a lei), mas que dificilmente se delimita ou se compreende.

É interessante notar que diversas constituições apresentam em seu próprio texto a possibilidade do Estado de Exceção, a exemplo da brasileira, que prevê o Estado de Sítio e a passagem do poder às forças militares, mesmo tendo sido elaborada logo após duas décadas de ditadura. O próprio poder que instaura a nova constituição brasileira – considerada democrática dentro dos parâmetros liberais – é fundado na substituição de um Estado de Exceção pelo outro, por ser um poder que origina uma nova ordem constitucional. Desse modo, o Estado de Exceção não só permeia, formal e essencialmente, as constituições democráticas, como é a sua própria origem e o seu fim. Estando ele, portanto, em todos os lugares, temos que a “normalidade” (ou a normatividade) é que passa a ser exceção, enquanto o Estado de Exceção é a regra.

O paradoxo que mais nos interessa em Schmitt é aquele que Agamben (2004) chamou de “estrutura topológica do estado” (p.57), no qual o Estado de Exceção não está nem dentro nem fora da ordem jurídica. Qual o lugar do Estado de Exceção então? É dessa estrutura topológica que emerge a afirmação célebre de Schmitt – “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção” – porque é exatamente a soberania, entre os elementos do Estado, que pode pairar entre o fora e o dentro. Soberano é aquele que tem o direito de suspender o direito, de realizar a norma mesmo quando ela não existe.

Hoje, no Brasil, não há ditadura (os dispositivos constitucionais que legitimam o golpe por dentro da ordem sequer foram acionados), mas há territórios de exceção, onde os direitos estão suspensos, bem como uma polícia que não se subordina à ordem vigente. A democracia liberal, criticada por Schmitt, teria sofisticado o Estado a tal ponto que as ditaduras já não seriam mais necessárias para a instauração do Estado de Exceção?

Vejamos o que Agamben (2004) diz a respeito da Alemanha nazista e da Itália fascista:

Nem Mussolini nem Hitler podem ser tecnicamente definidos como ditadores. Mussolini era o chefe do governo, legalmente investido no cargo pelo rei, assim como Hitler era o chanceler do Reich, nomeado pelo legítimo presidente do Reich. O que caracteriza tanto o regime fascista quanto o nazista é, como se sabe, o fato de terem deixado substituir as constituições vigentes. (…) O termo “ditadura” é totalmente inadequado para explicar o ponto de vista jurídico de tais regimes, assim como, aliás, a estrita oposição democracia/ditadura é enganosa para uma análise dos paradigmas governamentais hoje dominantes (Agamben, 2004, p.75-76).

Agamben, portanto, vai além de Schmitt ao definir Estado de Exceção, uma vez que admite a possibilidade de coexistência entre Estado de Exceção e democracia e considera desnecessária a instauração de uma ditadura para tal. Tira-se, assim, o conceito do plano institucional e coloca-o no plano das práticas. Estado de Exceção, para Agamben, é uma técnica de governo; mais que uma forma de Estado, é a tecnologia que permite harmonizar as democracias ao totalitarismo, resolvendo a contradição moderna que permeia os Estados dos países ocidentais desde que foi ampliada a participação popular por meios de eleições diretas.

Acrescido a isso, “no decorrer do século XX, pôde-se assistir a um fenômeno paradoxal que foi bem definido como uma ‘guerra civil legal’” (Agamben, p.12), a qual explica a suspensão das liberdades individuais durante todo o período nazista na Alemanha, mas nos parece explicar também os territórios de exceção. “O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também das categorias internas de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis aos sistema político” (Agamben, p.13). Este modelo de Estado, cuja exceção é permanente, passou a ser a prática não só dos regimes totalitários, mas das próprias democracias.

Assim, temos diante de nós um Estado que se aprimorou, saltando dos golpes de Estado para uma técnica de governo capaz de equilibrar o seu estatuto republicano com a suspensão das leis através do uso das próprias leis. Mais uma vez, vemos, e agora no Brasil, a democracia conviver com o escancaramento do autoritarismo no plano institucional, o mesmo que já acontecia desde sempre e sob formas mais violentas para muitos dos segmentos da população: tudo isso dentro da ordem.

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II

Ao consultar o debate sobre o conceito de Estado de Exceção, constatamos que ele é sempre uma recuperação tardia dos diálogos entre o já citado Carl Schmitt e o seu contemporâneo Walter Benjamin. Schmitt, que se preocupava com a fragilidade do liberalismo de sua época, desenvolveu um conceito de Estado de Exceção que fosse ele mesmo a justificativa do Estado de Direito – a exceção necessária para a norma, para a regra. Paulo Arantes lembra-nos da antítese que chocava Schmitt: “um governo constitucionalmente limitado repousa sobre o vulcão de uma autoridade ilimitada, a suspensão de toda ordem existente” (2007, p.42). A essa fragilidade do liberalismo e da sua recém democracia entre guerras, Carl Schmitt apresentou o Estado de Exceção enquanto emergência [1]. Não será mera coincidência a adesão de Schmitt ao nazismo.

Benjamin, mesmo com comprovada admiração por Schmitt, estava indiscutivelmente do outro lado. Toda a sua elaboração sobre a violência questionava o Estado de Exceção; era um esforço teórico de tirá-lo do contrato social e colocá-lo no âmbito da luta de classes. O Estado de Exceção, para Benjamin, não é a justificativa de um Estado de Direito, mas de um direito que se realiza na subjugação de muitos por poucos. A política de exceção por fora do Estado, segundo o autor, é a que até poderá refundar um novo direito, mas de forma alguma o seu objetivo é resguardá-lo. Assim, a política enquanto exceção que extrapola as normas através do Estado é uma, enquanto a política de exceção que faz o mesmo por outros meios é outra.

Mas se o Estado de Exceção é investido de plenos poderes, se o seu status de provisório e de estado de transição é incerto, se ele é a regra mesmo quando está “por baixo” de uma ordem constitucional democrática ou mesmo quando se perpetua na justificativa de um dia reestabelecer os poderes constitucionais definidos precariamente através de pactos sociais, o que poderá ser a exceção da exceção? Qual poder será capaz de derrubar a exceção e instaurar nova ordem que jogue para baixo o Estado de Exceção ou que o supere de uma vez?

No primeiro caso – jogar para baixo o Estado de Exceção –, temos os exemplos de constituições que vieram após ditaduras e que buscaram um relativo equilíbrio entre os poderes e que garantiram relativamente bem as liberdades individuais. Esse fato deu alguns anos de paz para a Europa e para parte das elites e classes médias latino-americanas; agora isso ruiu. Diante da sofisticação do Estado de Exceção, qual dispositivo o jogaria novamente para baixo ou o superaria definitivamente?

Agamben (2004) nos fala do “direito de resistência” contra o Estado de Exceção, que chegou a ser proposto para a atual constituição italiana da seguinte forma: “quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e um dever do cidadão” (p.23). Obviamente, o dispositivo foi rejeitado; algo próximo a ele só pode ser visto, entre os exemplos apresentados por Agamben, na constituição da República Federal Alemã, a saber: “contra quem tentar abolir esta ordem [a constituição democrática], todos os alemães têm o direito de resistência, se outros remédios não forem possíveis” (p.23-24); tal previsão acaba por reconhecer a impossibilidade de a própria norma constitucional restituir-se frente a um Estado de Exceção.

angelus-novus-paul-kleeBenjamin apresenta outra solução. Nas traduções e nos comentadores ao texto “Crítica da violência” (1921), foi necessário destrinchar o termo alemão Gewalt, que significa tanto poder quanto violência, o que não só cria dificuldades à interpretação, como também demonstra a aproximação entre uma prática e outra. Mas se a questão primeira dos tradutores e interpretes é a dualidade do termo, para Benjamin o esforço é no sentido de desvelar qual o tipo de violência (e de poder) que está fora do direito ou até mesmo além o direito.

Ao contrário da violência que funda e conserva o direito, há a violência “pura” ou “divina” que, quando se expressa na esfera humana, é “revolucionária”. A violência “pura”, para Benjamin, segundo Agamben, é “a ação humana que não funda nem conserva o direito” (2004, p.93). Diz Agamben, ainda: “o caráter próprio dessa violência é que ela não põe nem conserva o direito, mas o depõe e inaugura, assim, uma nova época histórica” (2004, p.85). A tensão, portanto, entre Benjamim e Schmitt dá-se pela possibilidade de a violência ser exceção ao Estado para o primeiro, enquanto para o segundo ela deveria se situar dentro do Estado de Exceção e, ainda que contra a norma, ser o direito. Enquanto, para Schmitt, a teoria do Estado de Exceção é uma nova forma de Estado, com o seu soberano sendo a atualização do Leviatã que paira sobre um contrato social metafísico, para Benjamin, o Estado não é fruto de contrato social, mas da imposição de um poder de poucos sobre os demais e só a violência pode dar cabo a ele, tendo o próprio Estado clareza desta situação: “o direito considera a violência nas mãos dos indivíduos um perigo capaz de solapar a ordenação do direito” (Benjamin, 2011, pp.126-127).

A violência exercida pelos indivíduos, mesmo contra outros indivíduos – e aí está o centro da argumentação de Benjamin –, não questiona o direito (e o Estado) somente por criar novos meios, mas sim porque tira do Estado o monopólio que o justifica: “a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora do direito” (Benjamin, 2011, p.127).

Ou seja, todo o esforço para a consolidação do Estado de Direito é o de retirar dos indivíduos – e transferir para o Estado – o uso da violência. Toda e qualquer ação violenta dos indivíduos está sujeita à punição pelo Estado e a história do Estado Moderno não é outra coisa senão o aprimoramento tanto das formas de tirar dos indivíduos o poder de exercer a violência quanto o aprimoramento do próprio Estado ao exercer a violência contra os indivíduos.

Enquanto para muitos há uma complementariedade assustadora entre Schmitt e Benjamin – entre um intelectual que colaborou com o nazismo e um marxista heterodoxo para o seu tempo, complementariedade justificada através da troca de cartas e demais similitudes conceituais –, para Agamben (2004), a teoria de Estado de Exceção de Schmitt é uma resposta à “Crítica da Violência”, de Benjamin, situando-os, portanto, em campos opostos. O que nos parece é que, para Benjamin, só a exceção ao Estado poderia superar o Estado de Exceção.

III

Quando o golpe era certo no país e as mobilizações vermelhas e festivas de rua, objetivando “medir forças” contra o verde e amarelo, esvaziavam-se sem ter obtido sucesso – ao contrário, mostraram que até nas ruas, território por excelência da esquerda, a derrota era certa –, a proposta de Greve Geral foi ventilada aos quatro cantos como se fosse a arma secreta de uma esquerda impotente. É claro que os seguidos fiascos dos três últimos anos foram esquecidos; as centrais sindicais – que tentaram puxar atos à parte das mobilizações de 2013, quase que assumindo a culpa pelo que se passava (ou decretando de vez seu próprio descolamento das lutas no país) – foram chamadas mais uma vez. A aposta era, vale repetir, a de que somente uma Greve Geral poderia derrotar um Estado de Exceção.

A ideia acima não é necessariamente nova. Benjamin, ao falar da garantia de greve dos trabalhadores, afirma que “hoje, a classe trabalhadora organizada constitui, ao lado dos Estados, o único sujeito de direito a quem cabe um direito à violência” (2011, p.128). É verdade que a greve pode nos parecer uma “não-ação” e, enquanto tal, não ser entendida como violência pelo próprio Estado, que a reconhece enquanto direito:

O movimento da violência, entretanto, necessariamente entra em cena na forma de chantagem em um tal abster-se de ações, quando tal abstinência ocorre no contexto de uma disposição de princípio pronta para retomar a ação suspensa sob determinadas condições que ou nada têm a ver com esta ação ou só modificam algo que lhe é exterior. É neste sentido que, da perspectiva da classe trabalhadora, que se contrapõe à perspectiva do Estado, o direito de greve configura o direito de empregar a violência para alcançar determinados fins (Benjamin, 2011, pp.128-129).

A greve geral, no entanto, diferentemente da greve no local de trabalho, foge do ordenamento jurídico, porque extrapola os motivos específicos e coloca em pauta demandas de toda a classe trabalhadora, ou pelo menos de uma fração considerável dela. Ao extrapolar a norma, ela evoca o Estado de Exceção, a ação violenta do Estado, contra si; o direito à greve é violento na medida em que coloca em xeque o ordenamento jurídico. Assim, a greve geral mexe nas relações de direito, refundando-as. Portanto, a resistência violenta contra o direito e o Estado, segundo Benjamin, é o que pode permitir a realização de um novo direito. Entre os tipos de violência possíveis de serem exercidos contra o Estado, principalmente contra o Estado de Exceção, a greve geral parece ser a escolha feita por Benjamin.

Voltemos, aqui, à luta contra o genocídio, contra os territórios de exceção, contra o Estado de Exceção cirúrgico que localiza seus alvos e poupa outros conforme o CEP e cor de pele, aniquila e encarcera uns e aos demais permite o trâmite da norma, todos contendo a mesma cidadania formal.

Os argumentos de que o Estado de Exceção é a justificativa do próprio Estado de Direito e de que a violência exercida pelo Estado é necessária para manter a ordem – inclusive o poder que é conferido ao Estado de aniquilar a vida mesmo quando o extremo da punição da pena de morte não é previsto na Constituição – ficam evidentes na militarização de comunidades (a chamada “pacificação”), na qual o ordenamento jurídico é suspenso exatamente onde ele nunca existiu. A ordem chega para negar a lei e territórios sob a norma de traficantes ou milícias passam a ser controlados por um Estado que nega a si através da suspensão de direitos que nunca forneceu. O Estado mostra-se essencial retirando aquilo que ele promete um dia dar.

X

É por tal motivo que a polícia é, por essência, o operador do direito; ela impetra a violência que instaura o direito e a violência que a mantém. Não é à toa, também, que a polícia existe para poucos em seu cotidiano pois, enquanto operador do Estado, ela também é a portadora do Estado de Exceção; atua cirurgicamente contra aqueles que questionam o monopólio da violência do Estado, seja este questionamento exercido entre os próprios indivíduos, seja lançado de volta contra o Estado. É a polícia que permite que o Estado de Exceção não precise se instaurar enquanto golpe, não precise suspender o ordenamento legal e os direitos de todos, aplicando a exceção das normas naqueles desviantes:

A afirmação de que os fins da violência policial seriam sempre idênticos aos do resto do direito, ou pelo menos teriam relação com estes, é inteiramente falsa. Pelo contrário, o ‘direito’ da polícia assinala o ponto em que o Estado, seja por impotência, seja devido às conexões imanentes a qualquer ordem de direito, não consegue mais garantir, por meio dessa ordem, os fins empíricos que ele deseja alcançar a qualquer preço (Benjamin, 2011, p.135).

Mas qual relação poderíamos fazer aqui entre a polícia e o golpe institucional recém aplicado no Brasil?

Arantes (2007) [2] resgata o “paradoxo” que determina as sociedades latino-americanas, entre elas o Brasil. Nessas sociedades, diz o autor, o aumento da violência deu-se concomitantemente à saída de cena das ditaduras militares. Ou seja, o fim do Estado de Sítio não significou o fim do Estado de Exceção, ao contrário, porque não só a violência se generalizou pela sociedade, como a belicosidade e a consequente repressão do próprio Estado se intensificou:

Na literatura especializada, e chocada, com esse paradoxo brasileiro que vem a ser a explosão exponencial da violência à medida que se consolida a ‘democratização’ da sociedade, observa-se que as classes torturáveis são compostas especificamente de presos comuns, pobres e negros, torturáveis obviamente nas delegacias de polícia e prisões, rotina invisível que o escândalo da ditadura militar recalcou ainda mais, por ser inadmissível torturar brancos de classe média (Arantes, 2007, p. 163).

Poderíamos ter previsto – pelo crescimento dos poderes dados à polícia através da política de pacificação e a não desativação dos dispositivos legais oriundos da Ditadura Militar, que dão legitimidade e impunidade aos crimes cometidos pela polícia – que por aí emergiria algo ousado a ponto de derrubar via golpes de Estado governos eleitos. Entretanto, outra coisa aconteceu (talvez não muito distante, é verdade): a própria democracia foi ao encontro da polícia.

Com um Estado agora coeso, cuja Exceção encontra-se dos pés à cabeça, podemos novamente recorrer a Benjamin, por mais que pareça confusa e frágil a sua defesa da Greve Geral como constituinte de um novo direito, como instrumento de violência da classe trabalhadora contra a violência do Estado.

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Se o atual Estado chegou a tal ponto, podemos afirmar que ele não chegou aqui devido ao percurso autônomo do seu devir, mas sim por ser a resposta mais acabada aos questionamentos vindos de uma classe trabalhadora que se fragmentou em forma e em demandas. E é uma resposta não a estas demandas, mas às formas das lutas que questionam o próprio Estado. Nesse sentido, o que Benjamin esboçou há quase cem anos volta a ser palpável, desde que se entenda a Greve Geral de forma ampla: não somente como milhares de trabalhadores de macacão azul parando suas atividades laborais, mas também como a articulação dessa miríade de novas formas de resistência, como as ocupações das escolas, o enfrentamento à polícia assassina, a revolta dos trabalhadores ambulantes em pleno Carnaval ou as catracas em chamas que param o trânsito e tudo aquilo mais que interrompe o fluxo de acumulação.

Apresentamos, lá no início, a frase célebre de Carl Schmitt sobre o Estado de Exceção. Repetiremos: “soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção”. Não há consenso, pelo menos não quanto ao monopólio deste poder. A segunda citação célebre dos estudos sobre o Estado de Exceção, a oitava tese do texto “Sobre o conceito de história”, o último texto de Benjamin antes do suicídio, diz o seguinte:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a esse ensinamento. Perceberemos, assim, que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; e com isso nossa posição ficará melhor na luta contra o fascismo (Benjamin, 2012, p.245).

Seja o que for hoje a classe trabalhadora e sua Greve Geral, sejam quais forem as novas formas do fascismo ou as novas modalidades de golpe… Há uma urgência do nosso tempo que não mais permite que os diferentes Estados de Exceção sejam os únicos a se articularem.

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Notas:

[1] “Convém ter em mente que Schmitt alberga a intenção – talvez apenas esboçada, mas em todo caso inequívoca – de propiciar uma alternativa ao regime liberal burguês que começava, em seu entender, a exibir linhas de fratura que conduziriam inevitavelmente à sua ruína. A advertência que dirige ao leitor no final da obra dá lugar a poucas dúvidas: depois da quebra da homogeneidade estatal provocada pela proliferação de associações e facções, que pugnam por seus interesses sem atender ao coletivo, a ditadura e os estados excepcionais constituirão a única via de regra” (Prieto, 2012).

[2] Vale à pena destacar a compreensão do autor sobre o Estado de Exceção: “qualquer que seja, aliás, sua denominação – estado de sítio, estado de exceção, estado de emergência ou urgência, plenos poderes, lei marcial etc. –, representa o regime jurídico excepcional a quem uma comunidade política é temporariamente submetida, por motivo de ameaça à ordem pública, e durante o qual se conferem poderes extraordinários às autoridades governamentais, ao mesmo tempo em que se restringem ou suspendem as liberdades públicas e certas garantias constitucionais” (Arantes, 2007, p.153-154).

Obras citadas:

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. IN: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 2012.

BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. IN: Escritos sobre mito e linguagem – 1915-1921. Editora 34, 2011.

ARANTES, Paulo. Extinção. São Paulo: Boitempo, 2007.

PRIETO, Evaristo. Poder, soberania e exceção: uma leitura de Carl Schmitt. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, 2012.

As imagens que ilustram o texto são de Paul Klee.

7 COMENTÁRIOS

  1. DA IMPOTÊNCIA DELIRANTE E SUAS CONSIGNAS
    Por que não levar o wishful thinking às últimas consequências, suprassumindo a Greve Geral contra o Estado de Exceção na Insurreição Planetária contra a Regra do KapitalEstado?

  2. Acho que o texto e também as centrais sindicais não deixam muito claro do que se trataria a greve geral (o primeiro por ser um exercício teórico sobre os usos da violencia, as segundas para ter espaço de manobra).
    Afinal, se trata de um dia de paralização com mobilização, ou seria uma greve de todas as categorias por tempo indefinido até o fim de algo?
    Será que ter essa diferença em mente ajuda a paliar o profundo pessimismo ulissiano? Pois de fato me parece mais salutar abrir logo o jogo e reivindicar uma paralização nacional com piquetes e manifestações, do que esse jogo idiota de chamar diferentes “dias nacionais de greves e passeatas e manifestações e o mais…” para a suposta construção de uma greve geral messiânica. Em países como Grécia e recentemente na India, greve geral significa isso, um dia de mobilização massiva com o intuito de travar momentaneamente a engrenagem das mercadorias (por 24h, 48h, ou quanto seja). O que se consiguirá com isso, difícil saber. Perder, acho que quem tem algo a perder, melhor que perda logo.

  3. Enquanto isso, no Setor Litoral da Universidade Federal do Paraná, os estudantes que já estão parados há mais de duas semanas, os técnicos-administrativos, parados desde o último dia 24, e os professores, categoria esta que ainda não está em greve, não criaram um espaço público que aglutinasse os dois conjuntos parados, e nem qualquer proposta de mobilização que envolva mais que uma categoria. Cada categoria faz as suas próprias mobilizações e nada de greve geral nacional. Aqui tem de tudo. Estudantes, técnicos e professores em férias fora de época. Estudantes mobilizados nas atividades que acontecem no interior da própria universidade. Técnicos mobilizados nas atividades organizadas pelo sindicato deles. Estudantes, técnicos e professores que estavam colaborando com diversas atividades nas escolas, principalmente da cidade de Matinhos, mas também em outras da região litorânea desse estado e da capital, que se encontravam ocupadas até a data de ontem. Há também um considerável número de professores que tem buscado, sem sucesso até agora, organizar atividades, que não aulas, no interior do Setor Litoral com o intuito de discutir as reformas propostas pelos executivo e parlamento federal. Acredito que o mais provável é que os técnicos continuem concentrados em seu próprio roteiro de greve (cruzar os braços, negociar problemas menores com a reitoria da universidade, judicializar questões, acatar decisões de tribunais) e, ao modo deles, com as forças que já acumularam, quem sabe participarem da construção da tal greve geral nacional que dia desses estava sendo chamada por algumas centrais sindicais, mas que, provavelmente, não será levada a cabo por todas essas que outrora fez o chamado. O grupo considerável de professores que busca construir atividades para discutir as reformas de Estado do momento tem grande chance de atrair o conjunto dos estudantes em férias fora de época, realizar algumas atividades (palestras, aulas públicas…), e seguir com o calendário e as atividades acadêmicas cotidianas. Já o grupo de estudantes e professores mais mobilizados em outro sentido, sem escolas ocupadas para apoiar, estão perdidos, não sabem que peso jogar nas atividades que virão a surgir pelas mãos de professores. No geral os professores não acreditam que tão sedo saia uma greve de professores da UFPR, e os poucos alunos mobilizados para derrotarem as reformas não sabem para aonde ir: continuar ou não em greve (algo que já dura mais de duas semanas e que ainda eles chamam de paralização), ocupar o Setor Litoral da UFPR, se somar às novas atividades que possivelmente surgirão junto aos movimentos de estudantes que desocuparam as escolas ontem. Nessas bandas nada se fala de construir a greve geral nacional. Assim como nada se fala sobre sucessos e fracassos das mobilizações e caminhos já realizados. No restante do município, havia três escolas ocupadas por reduzidíssimas vanguardas, os funcionários públicos municipais nada estão mobilizados, nem mesmo os da saúde, ou os da educação, que em tempos recentes estavam parados por melhorias nos salários, nas condições de trabalho e infraestrutura dos equipamentos públicos municipais dessas áreas. Boa parte dos trabalhadores desse municípios esta ligada ao setor de serviços, que assim como os desempregados, nada esta mobilizada para derrotar reformas ou o Estado de Exceção. Quer dizer, aqui não há nada de mobilização no sentido de derrotar a regra do Estado de Exceção e o Estado de Exceção como regra que se abate sobre os oprimidos. Aqui tem de tudo, só não tem novos roteiros e nem novas possibilidades de vitórias.
    Penso que a iniciativa do Daniel Caribé, de escrever esse texto, assim como a própria existência do Coletivo Passa Palavra e deste site, contribuem para que haja apoios entre as lutas e os lutadores sociais, contribuem com as reflexões e notícias acerca dessas lutas, mesmo num hoje que constrói mais derrotas, conformismos e individualismos, do que a quebra da regra do jogo. Mas sempre cabe perguntar: cadê as lutas? O que dentro delas está acontecendo que poderá levar a unificação das mesmas?

  4. E também, por estas bandas, têm os trabalhadores das escolas da rede pública estadual, mas esses já terminaram a greve do momento, que durou do dia 17 ao 31 de outubro, e tratou apenas junto ao governo estadual de questões internas às categorias professores e técnicos-administrativos dessas escolas.

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