A coisa já nem tinha mais o ar do porquê nós não deveríamos ter um programa – era pura filosofia esquizoanalítica. Por Estudante

Era uma roda, estávamos debatendo a chapa que queríamos organizar para o centro de estudantes. Quando eu entrei naquela faculdade o centro não estava organizado: havia havido um abandono, uma última chapa que havendo ganhado se dissolveu no meio do ano, e nisso ficou. Um par de anos depois, houve um grupo que tomou para si as responsabilidades mais burocráticas para manter uma existência formal, até que chegamos finalmente na tal roda. Entre a dissolução e a nossa chapa havia passado isso, e nesse meio tempo surgiu uma composição de pessoas com vontade de dar uma reanimada na coisa.

Nossa composição nessa roda era estranha, resultado de uma certa época: eram duas meninas trotskistas, eu meio voluntariosamente anarcóide, um punhado de gente “de esquerda”, tradicionalmente vinculados à famosa “esquerda festiva”, um par com ares mais intelectualizados – deleuzo-foucaultianos? –, quase todos com quase nenhuma experiência de luta ou de organização anterior. A maioria era amiga e se juntava já de antes para tomar cervejas e festas.

Antes desta roda estivemos discutindo de maneira informal a questão do programa da chapa. Ficou de “tarefa” começar a pensar a questão do programa e levar para discuti-la nessa roda que seria a formalização da existência de nossa chapa. Mas, como pode-se imaginar, a ideia que cada um tinha de um programa era um pouco diferente. Especialmente para um par de companheiros, que levados por uma conversa um par de horas antes da tal roda, embalados por haver escutado recentemente uma defesa de tese onde o pesquisador usava Deleuze para analisar os discursos políticos, estes companheiros então estavam convencidos de que a chapa não deveria ter programa algum.

Pois bem, estávamos nós então nessa roda, devíamos ser por volta de 15 pessoas, começando a conversar sobre as questões da chapa para o centro de estudantes, o nome (que nunca convence todos), as formalidades sobre quem adota qual cargo no papel, etc; quando finalmente chegamos a discutir o programa. Alguns apresentam seus pontos de vista. As meninas trotskistas são as que mais claramente tem uma ideia de como deve ser tal programa, incluir as lutas setoriais, o movimento estudantil, a ANEL, um pouco de cotidiano dos estudantes de lá, etc. Quando os dois companheiros começam a discorrer sobre como a chapa não deveria ter um programa. O problema é que estes companheiros não tinham um grande desenvolvimento do tema, de fato se notava que apenas tentavam repetir ideias que mais ou menos tinham entendido de algo que haviam escutado há pouco tempo de outrem. Muitos de nós certamente tínhamos algum traço de simpatia com a ideia de não determinar a ação da chapa, de estarmos abertos aos acontecimentos, de amar a liberdade, o que fosse… um certo apego libertário à construção horizontal, sem dúvidas.

Só que então, era como se nessa roda alguém tivesse metido um cabo de vassoura: dando o tempo necessário para a discussão, perdemos a capacidade de autorregular-nos. Cada um de nós fazia um pequeno balanço da questão de ter ou não ter programa, mas em geral vencia a ideia de que ter um programa não nos impedia de nada, e servia para apresentar uma proposta aos demais estudantes – não ter programa não fazia sentido se estávamos pensando ocupar o espaço do centro de estudantes enquanto construção coletiva. Mas para cada opinião, os companheiros tinham uma resposta, em geral bastante repetitiva e enroscada que mostrava o porquê não deveríamos ter um programa. De fato, a coisa já nem tinha mais o ar do porquê nós não deveríamos ter um programa, senão o de por que não deveriam existir programas na política em geral – era pura filosofia esquizoanalítica.

A roda então ficou mais de uma hora girando em falso. Um dos companheiros já havia desistido de insistir tanto na ideia, pois estavam os dois sozinhos nessa defesa, o restante também já se cansava da discussão, restava um obstinado que a cada intervenção respondia praticamente o mesmo, o mesmo, o mesmo…

“NÃO, Gustavo, não somos nós que não estamos te entendendo! Todo mundo aqui já te escutou e entendeu o que você disse, mas ninguém mais quer escutar! Você não está discutindo mais com ninguém, está repetindo sozinho a mesma coisa vez após outra e todo mundo já expressou que não concorda com tua posição! Você está deliberadamente ATRAPALHANDO a reunião e impedindo a gente de organizar a chapa”.

Foi com essa explosão, que eu mesmo não esperava de mim, que interrompi o círculo vicioso. Gerou “climão”, mas os olhos dos demais companheiros e companheiras me expressavam cumplicidade. Após uns bons 10 segundos de silêncio incômodos uma companheira tomou a palavra para superar o desgaste da última hora e meia e dar seguimento à reunião. O companheiro, tímido, ficou a olhar para o chão um pouco sem reação, e um par de minutos depois se levantou para nunca mais voltar às nossas reuniões. Senti que tomei em minhas mãos uma tarefa que a maioria ali não tinha a energia para realizar.

A chapa ganhou as eleições contra uma outra mais estranha e desencaixada que a nossa. Os primeiros meses foram divertidos e vivos. Aos poucos alguns companheiros/amigos foram perdendo o interesse, havia um desgaste bastante grande pela atuação das companheiras trotskistas que ganhavam a pauta na pura insistência. Mas tudo serviu para aprender um pouco. O episódio da roda me ensinou que o consenso pode ser também a ditadura do veto individual, e também me ensinou que as vezes é necessário tomar iniciativas que os demais não estão dispostos a tomar.

Leia também a Crônica Estudantil I.

As obras que ilustram o artigo são da autoria de Albrecht Behmel

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