Contra a redução do pagamento das corridas, os trabalhadores da Loggi fizeram a primeira paralisação numa empresa de aplicativo no Brasil. Por Passa Palavra

Aplicativos, terreno da luta de classes

Nos últimos anos, com a popularização dos smartphones, assistimos ao surgimento de aplicativos para todo tipo de serviço. Mais do que deixar “as pessoas mais conectadas”, como se diz, esse processo traz novas formas de exploração. É isso que vamos analisar.

O Uber é o caso mais conhecido: apresentando-se como um “aplicativo de celular que conecta motoristas profissionais a passageiros”, pôde escapar das leis para transporte de passageiros e oferecer, num primeiro momento, tarifas baratas. Vendo seu trabalho ameaçado pela concorrência com o novo serviço, taxistas de várias cidades fizeram protestos pressionando os governos para proibirem o Uber. Mas, à despeito desse movimento, o aplicativo não parou de crescer – só em São Paulo, o número de motoristas subiu de 5 para 50 mil em um ano. Aos poucos, o foco do debate mudou: cada vez mais, são os próprios trabalhadores do Uber, e não os taxistas, que estão reclamando.

Em março de 2016, motoristas do Uber anunciaram um dia de paralisação. É provável que o movimento não tenha conseguido ir além da ameaça, porque não houve notícias de mobilizações nesse dia – o que é um sinal da dificuldade de organização da categoria. Mas o ensaio, por si só, serviu para trazer à tona o debate sobre as condições precárias de trabalho nas empresas de aplicativos, que no estrangeiro tem sido chamada de “gig economy” (poderíamos traduzir como: “economia de bicos”).

Greves de trabalhadores do Uber tem sido comuns em outros países, dos EUA ao Quênia. O formato do aplicativo dá um escudo aos patrões porque oculta a relação de trabalho – o Uber, segundo eles, é só “empresa de tecnologia, por tanto não emprega motoristas e não possui nenhuma frota”. Mas a exploração é real, tanto é que as lutas são cada vez mais comuns nesse tipo de empresa, à exemplo das greves de entregadores da Foodora na Itália e da Deliveroo e UberEATS na Inglaterra. É só a partir desses conflitos que podemos entender a recente decisão da justiça britânica que reconhece que os motoristas do Uber tem um vínculo trabalhista.

Foi no fim de 2016 que a primeira greve em uma empresa de aplicativo no Brasil efetivamente aconteceu. Entre os dias 16 e 18 de novembro, os motoboys da Loggi paralisaram as entregas e protestaram com apoio do Sindicato dos Motofretistas em São Paulo (SindimotoSP).

Motoboys: precários, online ou off-line

Para os motoboys, as relações precárias de trabalho já imperavam muito antes da chegada dos aplicativos. Desde os anos 1990, a terceirização é a regra na categoria. Ao mesmo tempo que o trânsito nas metrópoles foi ficando cada vez mais inviável, com as isenções e financiamentos dos governos petistas ficou muito mais fácil comprar uma moto. Foi assim que a categoria explodiu, chegando mais de 900 mil trabalhadores em todo país – 500 mil só no estado de São Paulo – que arriscam sua vida ou o corpo para transportar, no tempo mais rápido possível, uma mercadoria de um ponto a outro da cidade. O fato é que nas grandes cidades pressionadas pela especulação imobiliária, a reprodução da economia capitalista depende da exploração selvagem dessa força de trabalho, exposta a todo tipo de acidente e violência no trânsito.

Foi só a partir de uma lei federal aprovada em 2009 que os motoboys ganharam reconhecimento legal, passando a serem chamados de “motofretistas”. Com a formalização do trabalho, além do regime da CLT e o adicional de periculosidade, se estabeleceram certas normas de segurança (como uso de coletes e baús com refletores) e a obrigatoriedade de um curso de especialização – para um serviço que até então não exigia nenhuma qualificação específica. É nesse contexto, em que a categoria parece começar a obter garantias, que os serviços de aplicativos entram em cena. Um diretor executivo da Loggi explica:

Até ontem, qualquer um poderia trabalhar como um motoboy. Entre 2009 e 2013, porém, foram votadas uma série de leis a nível federal e local para tentar formalizar esse mercado. Agora, se você quiser ser motofretista, é preciso passar por um funil bastante extenso de regularizações. Foi da combinação desses três fatores – a demanda logística, o choque regulatório e o choque tecnológico [popularização dos smartphones] – que nasceu a ideia de fazer a Loggi

Criada por um grupo de brasileiros em 2013, a Loggi é uma empresa de motofrete via aplicativo que já opera no entorno de São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e Curitiba (entre seus investidores, está um diretor de operações do Uber). Ela não está sozinha: na entrega de bens e documentos, concorre com a Rapiddo, 99Motos, MoblyBoy e SmartEntrega; já na entrega de comidas, o UberEATS está chegando ao país.

O motofretista que quiser trabalhar na Loggi só precisa se cadastrar no aplicativo, enviando fotos de seu veículo e dos documentos. Na condição de “microempreendedor”, ele não tem direito às mesmas garantias trabalhistas que teria numa empresa terceirizada, como aluguel da moto, convênio médico, cesta básica, vale refeição, ponto fixo etc. – mas pesa, do outro lado da balança, a perspectiva imediata de conseguir tirar mais dinheiro e fazer o seu próprio horário.

Aliás, é comum esses motofretistas compararem seu trabalho a um “videogame”, onde o jogador vai recebendo missões e completando-as. A metáfora, também corrente entre motoristas do Uber, dá uma boa imagem da situação desse proletariado “microempreendedor”, que precisa estar engajado a todo momento e se mobilizar para sua própria exploração. Afinal, apesar da aparente autonomia do entregador, quem realmente dita as regras nesse jogo?

A paralisação da Loggi

Se num primeiro momento trabalhar no aplicativo parece vantajoso, o fato é que os patrões continuam no comando. Conforme o negócio se expande e o número de cadastrados aumenta, a empresa pode querer abaixar a remuneração pelas corridas. Já os trabalhadores não tem nenhum mecanismo para recorrer, afinal não há contrato – é só um aplicativo!

Mundo afora, esse tipo de mudança tem sido um dos principais estopins de lutas em aplicativos. E na Loggi não foi diferente. Quando a empresa tentou reduzir o pagamento pela terceira vez, o movimento eclodiu. De R$18, o valor das viagens caiu para R$10.

Os trabalhadores procuraram o sindicato, que organizou uma paralisação em frente ao galpão da empresa, na Vila Leopoldina. Não houve diálogo com a Loggi: os gerentes chamaram a polícia. No dia seguinte, a paralisação se repetiu e os trabalhadores saíram em ato, numa motoata (espécie de carreata de motos) em direção ao centro da cidade, onde os diretores do sindicato se reuniram com o Ministério Público do Trabalho (MPT), e à Delegacia Regional do Trabalho (DRT-MTE) para denunciar a situação e pedir que intermediassem uma negociação.

O resultado foi uma nova reunião, na semana seguinte, na qual representantes da Loggi tiveram de se comprometer em manter o valor anterior da remuneração. Conquista importante não só pelo ganho imediato, mas também pelo precedente que abre para lutas futuras em empresas de aplicativo, uma vez que a pauta foi negociada no âmbito trabalhista.

Parênteses para um detalhe sinistro: além da remuneração, uma das reclamações apresentadas pelo sindicato dizia respeito ao monitoramento de trabalhadores fora do tempo de entrega – ou seja, através do aplicativo a empresa consegue vigiar as atividades dos motoboys mesmo quando não estão trabalhando para ela. Num plano mais imediato, talvez isso sirva para controlar se o entregador não está combinando corridas por fora, diretamente com os clientes. Ou se ele frequenta a sede do sindicato e participa de mobilizações. Mas, além disso, sabemos que os dados de trânsito produzidos no deslocamento são cada vez mais valiosos – é com base nesse tipo de informação coletada de seus motoristas, por exemplo, que o Uber está criando seu carro automatizado sem piloto.

Um sindicato de trabalhadores de aplicativos?

Enquanto na Europa as lutas de trabalhadores de aplicativos acompanharam um novo fôlego de um sindicalismo independente e basista, com o Independent Workers Union of Great Britain (IWGB) na Inglaterra e o SI Cobas na Itália, aqui as velhas estruturas oficiais se impõem mais uma vez.

Desde 2015, o SindimotoSP tem voltado atenção às condições de trabalho nas empresas de aplicativo. Na direção oposta do caminho trilhado pelas entidades de outras categorias (à exemplo dos taxistas, que focaram suas campanhas no rechaço ao Uber), o sindicato mostra um esforço para incorporar aos seus filiados essa nova base de trabalhadores de aplicativos.

Mesmo assim, vale notar que a luta da Loggi parece um ponto fora da curva na atuação do sindicato – filiado à UGT [1], sua tônica é fazer reivindicações ao governo, mas não mobilizações na porta das empresas. Será que há outros interesses por trás do tratamento diferente? A dúvida é válida. Uma notícia no próprio jornal do sindicato menciona que o Sedersp, sindicato patronal do motofrete, participou da reunião com a Loggi no MPT e “elencou fatos como concorrência desleal e outros prejudiciais ao setor, todos cometidos pelas empresas de aplicativo”.

Logo após a paralisação, a solução encontrada pelas empresas de aplicativo foi, aparentemente, tentar criar um sindicato que servisse aos seus interesses. Já em dezembro, apareceu a proposta de criação de um sindicato específico para os trabalhadores de aplicativo. O SindimotoSP protestou, denunciando a manobra para dividir sua base de representação. Mas em seguida ele próprio que tomou a mesma iniciativa, fundando em janeiro o SindimotoappSP, o primeiro sindicato específico para trabalhadores de aplicativos do Brasil. Que papel essa nova estrutura cumprirá frente às lutas estão por vir?

Notas

[1] Fundada em 2007, a União Geral dos Trabalhadores é a terceira maior central sindical do país, tendo no setor de serviços sua principal base de representação. Situada à direita no espectro político do sindicalismo, tem entre seus filiados membros dos mais diversos partidos políticos – do DEM ao PT – e, atualmente, discute a possibilidade de fusão com a Força Sindical para ultrapassar o tamanho da CUT (sobre isso, ver Uma central para Temer?).

Leia outros artigos da série Luta nos aplicativos no Passa Palavra.

3 COMENTÁRIOS

  1. Talvez o UBER e afins não sejam apenas empresas de exploração. Talvez elas representem algo muito maior e profundo. Talvez elas indiquem o início de uma etapa na superação do próprio modo de produção atual, e não apenas uma evolução. O desenvolvimento atual das forças produtivas parecem não apontar para a emancipação da classe trabalhadora. Se um dia os trabalhadores sonharam com uma ditadura do proletariado, os burgueses (consciente ou inconscientemente) também sonharam, mas parecem ter tornado esse sonho real, com a “ditadura da burguesia”…

    O trabalhador sempre foi tão somente “recursos humanos” para o capital, ou seja, mercadoria. Hoje esta mercadoria excede, e muito (e não só na tal”reserva de mão de obra’), as necessidades técnicas da produção… O capital dispõe hoje de outras mercadorias para a sua produção e reprodução, que não apenas a mercadoria humana…

    Por isso, esses “recursos humanos” podem ser jogados ao mar, não apenas no Mar Mediterrâneo, mas no mar, bravio e tempestuoso: o terceiro setor, que nada mais é que um Hades… um Campo de Asfódelos… um campo de mortos que aparentam estar vivos, que simulam estar vivos… Sobreviver não é viver, é apenas sobrevida…

    Mas os burocratas de plantão que prestem muita atenção: “SindDrone”, Sindicato dos Drones! Quando não mais houver motofretistas a entregar as bem quentinhas e deliciosas pizzas, eis que teremos os drones em seus lugares! Se começarem já, logo, logo, serão milhões ou bilhões de afiliados!

  2. Não podemos deixar essas empresa de app fazer o que bem entendem encima da gente.

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