Putin reunido com os chefes de Estado do BRICS, em 2016.

 Por Pablo Polese

 

Leia aqui a série completa.

Vladimir Putin era militar de alta patente no Exército Vermelho quando a URSS desmoronou. Não por acaso, para ele, a morte da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”, “uma verdadeira tragédia”. O tenente-coronel Putin jamais aceitou a retórica dos ocidentais e dos liberais russos sobre não haver vencedores ou perdedores na Guerra Fria. Para ele, 1991 marca uma humilhante derrota de um grande e glorioso Estado. Pontuar esta interpretação e vivência pessoal deste episódio político (conta-se que, quando a URSS caiu, Putin estava junto a outros agentes em um escritório da KGB queimando arquivos e temendo serem linchados) é importante para entendermos que o principal objetivo estratégico do atual presidente da Federação Russa, tanto interna como externamente, é recuperar os poderes político, econômico e geoestratégicos que o Estado russo perdeu com a queda da URSS. Trata-se de um objetivo de vida, uma verdadeira “doutrina”, que guiou o modo de governar do presidente russo desde o início de seu mandato em 2000, mas especialmente a partir de seu retorno para um terceiro mandato, em 2012. De 2000 a 2008, Putin colocou em prática a parte doméstica de sua agenda: colocou sob controle estatal a política nacional, os tribunais, os meios de comunicação (em primeiro lugar, a televisão) e o que Lênin chamou de “altos comandos da economia”.

Putin, agente da KGB

Thomas Konicz observa que “na sequência de conflitos violentos nos primeiros anos do reinado de Putin foi quebrado pelo aparelho de Estado o poder da oligarquia russa, que antes tomara o controlo de grande parte da economia no processo de privatização selvagem após o colapso da União Soviética”. O símbolo desta vitória do Estado contra a casta oligarca predatória russa seria a anistia, sob ordens de Putin, do ex-bilionário Mikhail Khodorkovsky, ex-proprietário da Yukos, que desafiou o chefe do Kremlin abertamente. Konicz conta que depois do ocorrido nenhum oligarca ousou assumir uma oposição séria ao Kremlin. Vale observar que a “quebra do poder da oligarquia” por Putin, de que fala Konicz, representou na verdade uma transferência de poder de uma oligarquia para outra, como ele mesmo reconhece: “A vitória de Putin sobre a oligarquia predadora da transformação [no original “die räuberische Transformationsoligarchie” – PP] foi comprada com o advento de uma oligarquia estatal emergente do ministério da energia e do aparelho de segurança, cuja riqueza e poder crescem fora do controlo das empresas públicas. O sucesso do negócio no sector privado na Rússia, portanto, como antigamente nos tempos do czar, depende dos bons contactos com o Kremlin e duma posição segura dentro dessas panelinhas. O Estado não é apenas a política, mas também o centro económico do poder.”

Ao retornar ao poder, em 2012, Putin passou a concentrar esforços na faceta “externa” de sua empreitada: a recuperação do poder geopolítico que a URSS/Federação Russa havia perdido. Este objetivo tem recebido cada vez mais atenção, e Putin tem sabido manejar os objetivos internos e externos de modo a ganhar os corações e mentes do povo russo.

Quando retorna ao governo, Putin avalia que o Ocidente está acometido por sérios problemas econômicos e políticos, distraído por agendas ideológicas domésticas (em grande medida isolacionistas) e vivendo uma crise das “certezas morais”. O programa russo de modernização do aparato bélico – no valor de US$ 700 bilhões – finalmente começara a dar frutos tanto em termos de armamentos convencionais quanto na obtenção de armas nucleares de poderio estratégico (Ver: aqui, aqui e aqui, e para os percalços da modernização bélica russa ver aqui, aqui, aqui,  e aqui). Putin já havia mostrado a que veio na intervenção militar na Geórgia, em 2008. Com a força militar aprimorada, o retorno de Putin ao Kremlin passa a ser marcado pela implementação de uma política externa ativista, que lhe rende alto grau de legitimidade enquanto governante “forte” e de alta popularidade. Até 2012 a legitimidade do regime dependia mais do progresso econômico do país do que de suas façanhas militares. Vimos na parte anterior desta série que apesar dos altos preços do petróleo, até a crise de 2008 o clima de investimento doméstico “tóxico” atrasava a economia russa e que não foram tomadas medidas para que a modernização das forças produtivas do país deslanchasse. Depois de emergir de sua própria recessão, o país até logrou crescer, mas a taxas de apenas 2% ao ano, o que é pouco se pensarmos que houve recuperação nos preços do petróleo entre 2009 e 2011.

Com uma estrutura produtiva e de relações entre Estado e empresas bastante problemática, hostil aos investimentos externos; um clima de negócios demasiadamente sensível à instabilidade política inerente a um regime voltado para o xadrez geopolítico das guerras e intervenções militares; e, por fim, com o preço do petróleo caindo, a partir de 2012, a revitalização do investimento interno na Rússia parecia ser um caminho incontornável, e tinha como condição um conjunto de reformas institucionais modernizadoras. Putin, todavia, vê tais reformas com bastante receio: elas poderiam se converter numa nova perestroika, onde reformas econômicas liberais levaram a uma crise política fatal. Chegando para um terceiro mandato em uma conjuntura econômica desfavorável, Putin tratou de mudar o foco de legitimação de seu governo.

Putin reunido com os chefes de Estado do BRICS, em 2016.

O ex-ministro das finanças russas, Alexei Kudrin, liberal moderado que a pedido de Putin elaborou e expôs um programa econômico para o alto escalão financeiro e industrial da Rússia, afirmou que o baixo ritmo de crescimento econômico da Rússia se deve a fatores que vão muito além dos baixos preços do petróleo e das sanções ocidentais. Os principais problemas seriam internos, “estruturais e institucionais”, além disso o país estaria muito atrasado em tecnologia e inovação e enfrentando uma severa queda demográfica. O problema-chave da economia russa não reside, defende Kudrin, na falta de intelecto ou talento empresarial, mas na ineficiência do Estado e suas instituições. O ex-ministro afirma sem rodeios: “em nosso país o Estado domina tudo, então você tem que começar com a reforma do Estado”. Para ele as reformas devem envolver mudanças fundamentais no sistema, particularmente no judiciário, de modo a que os tribunais possam prover justiça mesmo quando isso exige uma decisão contra o Estado. Para convencer Putin, Kudrin moldou sua estratégia de modernização em termos de segurança nacional e prestígio global, um dos poucos assuntos que, via de regra, chama a atenção do presidente. “A menos que nos tornemos um país tecnologicamente avançado, enfrentaremos um problema de diminuição do potencial de defesa e uma ameaça à soberania”, afirmou.

Do ponto de vista do Kremlin, entretanto, as reformas de Kudrin são arriscadas: ameaçam desestabilizar o sistema político centralizado e confiante da Rússia. O governo confia em suas próprias medidas, mais singelas: está tentando reduzir o gasto público de 37% do PIB para 32%, combatendo o orçamento reduzido. Em vez de conceder liberdade econômica e recompensar a iniciativa regional, Moscou, temendo o separatismo, mantém as regiões dependentes das transferências do centro. Trata-se de um método de manejo do Orçamento público bastante complicado, como fica claro nessa fala de Anatoly Artamonov, governador da região de Kaluga: “Deus me livre se suas receitas orçamentárias [estaduais] estão crescendo: você imediatamente perderá os subsídios e será forçado a financiar outros projetos federais”. No mesmo sentido, o governador de Ulianovsk disse: “Faz muito tempo que é preciso transferir a maioria dos poderes executivos para as regiões”. Para Putin, no entanto, os riscos de reformas abrangentes, como a descentralização, podem ser maiores do que os benefícios – especialmente num contexto em que ele não enfrenta pressão imediata, no país ou no exterior, para que isso aconteça. O presidente está confiante de que ganhou o apoio inabalável de seu povo e que não precisa mais reforçar sua posição através do desempenho econômico. E de fato, apesar de dois anos de recessão, os russos se ajustaram à queda da renda sem muitos protestos.

Enquanto isto, a eleição de Donald Trump na América e a crescente onda de nacionalismo na Europa convenceram muitos no Kremlin de que as coisas estão seguindo um bom caminho. Para os russos, a histeria americana com respeito ao relacionamento entre EUA e Rússia se explica pela percepção de que “a era do intervencionismo liberal ocidental” está chegando ao fim, de modo que os pontos em comum das abordagens de Trump e Putin indicariam ao povo russo que “a ordem mundial pode ser renovada com base em nossos princípios”. Assim, é improvável que Putin adote as reformas liberais propostas por Kudrin quando sua elite acredita que o liberalismo está em recuo e um novo modelo russo está em ascensão, confirmando que Putin está no caminho certo em sua missão de tornar a Rússia novamente uma superpotência geopolítica global.

O sistema vigente na Rússia de Putin

Não é raro que governos de traços marcantes e em alguma medida inovadores recebam alcunhas identitárias: ao falar do modo de governar na Ingleterra de Margareth Thatcher podemos falar de thatcherismo, no Brasil podemos falar de lulismo em referência a um modo particular de governar de Lula (e Dilma) e sim, podemos falar de algo como o “putinismo”, o modo de governar ou “sistema” solidificado ao longo do governo – ainda vigente – de Vladimir Putin.

Na Rússia de Putin vigorou, entre 2000 e 2012 (de 2008 a 2012 Putin ainda tinha poder e influência, embora o presidente fosse Medvedev) um sistema de “democracia administrada”, onde as decisões eram tomadas de cima para baixo, numa estruturação bastante vertical do poder, com Putin no topo, passando do nível federal para o regional e local (Em 2000 a Rússia aprovou o “Poder Vertical” que dividiu a Federação Russa em sete regiões comandadas por representantes nomeados por Putin). Nesse período que vai até mais ou menos 2012 era possível falar-se em um “mercado administrativo” ou gestorial, porque as decisões presidenciais ou ministeriais tinham um valor quantificável e podiam ser revendidas ou reatribuídas. Em 2010, por exemplo, Medvedev decidiu criar uma empresa híbrida público-privada para desenvolver o turismo no Norte do Cáucaso. Uma coalizão de bancos estatais, autoridades regionais e empresas locais abraçou o projeto, que recebeu cerca de US$ 2 bilhões em financiamento inicial do governo e foi programado para atrair mais US$ 13 bilhões em investimentos privados. Akhmed Bilalov, que então era vice-presidente do Comitê Olímpico Russo, supervisionando os preparativos para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014, em Sochi, foi nomeado pelo presidente Medvedev como presidente do conselho da nova corporação. No entanto, quando Putin volta à presidência em 2012 e Medvedev se torna primeiro-ministro, o presidente russo se reafirma e conduz uma “purificação dos selecionados”, criticando Bilalov por atrasos em Sochi e fazendo com que ele fosse demitido de ambas as posições de comando que ocupava. Uma investigação criminal logo emergiu, e ele fugiu Rússia. Os investimentos esperados no projeto do Norte do Cáucaso nunca surgiram, de modo que hoje a corporação está desenvolvendo apenas dois resorts de esqui na região. Aqueles que participaram de outros projetos comerciais durante a presidência de Medvedev também sofreram enormes perdas depois que Putin retornou ao cargo, e tiveram que se certificar de que não haviam ultrapassado quaisquer limites (sejam legais, sejam quanto ao que Putin defende) e que não seriam julgados. O personalismo do poder na Rússia fica evidente quando vimos a saber – pela própria boca do atual presidente russo – que ele se divertiu muito quando um bilionário, depois de receber garantias de que seu acesso ao Kremlin seria mantido, rastejou de joelhos da porta do escritório presidencial para a mesa de Putin. No sistema de “democracia administrada” vigente na Rússia durante as últimas décadas os empresários mais ricos do país sabiam que, quando os negócios atingiam um montante alto, era preciso ver Putin para explicar o projeto. A relação estabelecida não é explicitamente de comando, e sim de algo mais fluido, que pretendemos explicar a seguir.

Putin e a Chanceler alemã Angela Merkel

Quando volta ao poder, em 2012, Putin institui uma “camada de incerteza” nos mecanismos da democracia administrada russa: o processo tácito de prestação de contas e de pedido informal de algo como uma “autorização” do Estado para que empresários atuem no país sofre uma modificação formal, singela, mas poderosa. Ao longo de décadas no poder Putin estabeleceu um sistema de poder verticalizado que tem o nível mais alto ocupado pelo presidente tal como – guardadas as devidas proporções – na época do stalinismo este assento era ocupado por Stálin. Esse estilo ou “sistema” de governança, entretanto, difere daquele de Stálin, pois depende mais da interpretação de sinais do que da submissão a comandos e outras formas de controle explícito. No sistema atual, a aprovação de qualquer proposta em particular toma a forma de uma “liberação” a um projeto “aceitável”, no sentido não de uma ordem ou elogio, mas de uma licença estatal para que os sujeitos ajam na direção desejada. Por isto, as ações significativas por parte da Rússia raramente resultam de diretrizes do governo: são antes o resultado de uma espécie de disputa entre grupos relacionados ao Kremlin, cada um procurando provar sua lealdade ao país, ao presidente e às elites que comandam os altos escalões do Estado.

Alguns artigos de Foreign Affairs mostram que esta dinâmica ficou bem clara no caso da Ucrânia. A anexação da Crimeia envolveu uma operação militar planejada, mas a ação russa no leste da Ucrânia, por exemplo, não teve uma coordenação centralizada como se esperaria em uma empreitada bélica. Vários grupos russos, com diferentes interesses e estratégias, se tornaram ativos no conflito na região da bacia do Donets (Donbas, segundo a sigla ucraniana), no leste da Ucrânia, que opõe separatistas pró-russos contra o governo em Kiev (ver aqui). Empresários ucranianos e políticos próximos do Kremlin patrocinaram e incentivaram os protestos iniciais na região contra o governo central em Kiev, chegando a formar uma espécie de comitiva pró-Putin para financiar as milícias separatistas, formada por pessoas como, por exemplo, o bilionário financeiro e auto-intitulado “patriota ortodoxo” Konstantin Malofeev. Igualmente, ao longo de 2014, milhares de voluntários russos cruzaram a fronteira praticamente inexistente para se juntar às milícias anti-Kiev. Gleb Pavlovsky, em um contundente artigo publicado na Foreign Affairs explica que no sistema vigente na Rússia Putin pode, em um contexto de guerra como este, dizer algo como “não posso impedí-los, eles vão dar um jeito de chegar lá”, por isso é preciso que alguém “dê aos rapazes alguma proteção” e “certifique-se de que a coisa não saia do controle”. Ora, isso constitui um comando, uma diretriz direta dada pelo Chefe de Estado quanto ao rumo das ações bélicas da Rússia frente aos conflitos no leste da Ucrânia? Pavlovsky explica que “da perspectiva do sistema de Putin, não”. O presidente russo maneja suas fichas, com seus funcionários, sempre de modo pensado, como enxadrista, ocultando seus objetivos. A mesma equipe que projetou a sucessão e as eleições subsequentes de Putin ainda governa a Rússia, ou seja, o comitê de campanha se converteu em comitiva presidencial, de modo que a equipe mudou muito pouco. São pessoas que nunca disseram que Putin não podia fazer algo, pessoas que Putin não consulta para debates estratégicos, mas tão somente para discutir detalhes de operações especiais. Ex-funcionários do Kremlin, como o próprio Gleb Pavlovsky, contam que nas reuniões de governo o presidente faz perguntas específicas a seus subordinados, e estes fornecem as respostas, sem discussão alguma. Pavlovsky explica que uma característica importante do sistema de governo da Rússia atual é a presença do que são conhecidos no Kremlin como curadores, figuras que operacionam a governança, burocratas políticos, “gerentes de projetos” autorizados pelo Estado russo a operar através de agentes pessoais.

Putin e o Presidente chinês Xi Jingping, em visita do Presidente russo à China, em 2014

O curador não é publicamente responsável pelas ações de seus agentes, e os agentes seguem suas instruções somente enquanto isso lhes está beneficiando. Se um curador encontra resistência, ele pode punir o recalcitrante, seja por meios burocráticos ou substituindo-o por outro agente. O sistema de curadores é útil em termos pragmáticos de des-responsabilização das ações que o governo russo espera que sejam feitas, mas não pode ou não tem interesse em assumir como suas, porém, o caso ucraniano mostrou que é muito mais fácil deixar os curadores soltos do que controlá-los, o que pode trazer problemas para a política externa russa. No conflito da Donbas, por exemplo, Putin permitiu que vários curadores enviassem combatentes para a fronteira para se juntarem às milícias pró-russas, mas no verão de 2014, quando (ao que tudo indica) uma milícia derrubou um avião civil da Malaysia Airlines sobre a Ucrânia, matando quase 300 pessoas, ficou claro que os custos e riscos da empreitada estavam crescendo e que Moscou precisava diminuir seu envolvimento no leste da Ucrânia. Foi então que Putin descobriu que era mais fácil dar a um curador um “prossiga” do que um comando para recuar.

Pavlovsky conta que o homem forte da Chechênia, Ramzan Kadyrov, provou ser capaz de trazer todos os seus combatentes para casa assim que Putin sinalizasse, mas em geral os curadores se mostraram incapazes de fazê-lo, e muitos combatentes ficaram mais tempo no front do que Putin desejava. Além disso, os curadores também criam conflitos jurisdicionais disputando espaço e poder uns com os outros. No rescaldo da crise da Malasia Airlines, Putin deu a Surkov (outro curador) uma autoridade diplomática temporária para restaurar a ordem na Donbas. Como resultado, durante as conversações em Minsk que produziram uma trégua formal no início de 2015, Surkov acabou desempenhando um papel tão importante quanto o Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, o que levou à tensão entre os dois. O fato é que Lavrov encontra-se frequentemente em situações difíceis, pois a política externa é domínio de Putin e Lavrov é o embaixador pessoal de Putin, sua persona no exterior, mas uma vez chamado de volta a Moscou, ele já não representa ninguém, portanto perde poder. Assim, embora Lavrov deseje que o acordo de Minsk seja válido e a paz se restabeleça na Ucrânia, de modo que a situação na Donbas não fique fora de controle, uma atmosfera continuada de escalada militar de fato reforçaria sua posição dentro do Estado russo. Além disso, “o conflito na Ucrânia transformou Lavrov numa figura nacionalmente popular, o que não é um status particularmente seguro na Rússia de Putin” (PAVLOVSKY, 2016).

Ex-assessor de três presidentes russos, Gleb Pavlovsky propõe o termo “sistema” para analisar o que estamos chamando de putinismo. Ele faz a seguinte reflexão:

se pensarmos a palavra sistema enquanto um estilo de exercício do poder que transforma o povo do país em recursos operacionais temporários, contra sua vontade e em violação de seus direitos, o “sistema” é uma faceta profundamente arraigada da cultura russa, indo além da política e da ideologia, e persistirá muito depois que o governo de Putin tenha terminado. O sistema russo combina a ideia de que o Estado deve ter acesso ilimitado a todos os recursos nacionais, públicos ou privados, como uma espécie de Estado de emergência permanente em que todos os níveis da sociedade – empresas, grupos sociais e étnicos, clãs poderosos e até mesmo gangues criminosas – são destacados para resolver o que o Kremlin rotula de “problemas urgentes de Estado”. Sob Putin, o sistema tornou-se um método para fazer negócios entre empresas, empresários poderosos e o povo. As empresas não assumiram o Estado, nem vice-versa. Os dois se fundiram numa união de corrupção total e sem costura. Nesta versão do sistema, um ministro do governo que não faz nada, mas dá a seu pessoal uma diretiva e supervisiona a sua implementação, é considerado um preguiçoso. Espera-se que ele envolva algumas pessoas “reais”, liberando algumas coisas que estão sob seu controle de modo a que interesses privados e indivíduos poderosos possam lucrar de alguma forma. Assim, as “ordens” tornam-se “ofertas”. No sistema de Putin, a governança exige a apropriação temporária do regulador estatal por grupos de jogadores. Ao participar deste jogo, um jogador pode alternar seus papéis, passando de empresário privado para agente estatal, continuando a se beneficiar das ofertas. O sistema pode funcionar muito bem, pelo menos no curto prazo. Em 2010, por exemplo, Anatoly Serdyukov, que serviu como ministro da Defesa da Rússia de 2007 a 2012, lançou um programa de reforma de US$ 430 bilhões que envolveu casos notórios de corrupção, mas que também modernizou com sucesso as forças armadas russas. O sistema é talvez mais visivelmente encarnado pelo Conselho da Federação, a Câmara alta do Parlamento russo. O conselho é essencialmente um clube de membros dotados de interesses institucionais, regionais e empresariais que criam “projetos” concorrentes. Um projeto vencedor transforma um membro do conselho em um monopolista temporário que, por sua vez, distribui alguns dos despojos a muitos pequenos beneficiários. Os russos são sinceros em sua denúncia de funcionários corruptos, e ainda defendem e desfrutam do conforto paternalista do sistema. Eles se orgulham de sua maleabilidade e flexibilidade: é sempre possível encontrar uma maneira de fazer algo.

Putin e seu Ministro do Exterior, Sergei Lavrov, tratando da questão da Síria em reunião com o Secretário de Estado dos EUA, John Kerry, no Kremlin, em dezembro de 2015.

O sistema é flexível, mas uma equipe governante sempre protegerá seu controle sobre o poder. O sistema eleitoral na Rússia, por exemplo, é bem desenvolvido e altamente sofisticado, mas é uma farsa, já que as eleições são separadas do processo de dotação de poder ao Estado: “não são nada mais que um ritual caro”. Nas eleições para governadores regionais, por exemplo, Putin aprova um candidato, na sequência de negociações internas no Kremlin; seguem-se avaliações do curador regional e negociações entre os membros do gabinete, empresas locais e candidatos alternativos que recebem ajuda em seus problemas financeiros em troca de ficar fora do caminho. O nível de controle e manipulação do processo eleitoral é tal que muitas vezes a campanha é conduzida “sobre a cabeça do candidato”. Pavlovsky explica que durante o processo eleitoral os empresários locais competem uns com os outros tentando mostrar quem é mais leal ao candidato. Sua motivação é bastante concreta: a ameaça de perder o que possuem, seja um negócio no varejo, uma fábrica de processamento de carne, contratos de construção etc.

Como se vê, trata-se de um processo teatral, que “serve perfeitamente aos interesses de reeleição eterna de Putin”. Quando o atual presidente russo foi eleito presidente pela primeira vez, em 2000, ele obteve 53% dos votos, portanto tinha uma dominação “racional-legal” na terminologia de Weber. Com o tempo, ele passou a gozar também de uma “dominação carismática”, pois os russos passaram a vê-lo como possuindo uma habilidade quase mágica de ganhar disputas. Pavlowsky afirma convictamente que as autoridades do Kremlin não têm ideia do que fariam na ausência de Putin. No início do primeiro governo Putin “o Kremlin apostou em matérias-primas e ganhou”. Isso acomodou as elites dirigentes da economia do país, embora todos soubessem que tornar a economia russa mais dependente dos preços das commodities do setor de energia “era algo arriscado e provavelmente levaria a um beco sem saída em uma década ou duas”. Então, quando os preços do petróleo e gás inevitavelmente começaram a cair, o sistema respondeu à ameaça de colapso com escaladas militares, encontrando novos “problemas de Estado urgentes”, ao invés de avaliar seriamente as possibilidades de modernização (como vimos na parte 2 desta série). Pavlowsky aponta que “uma das ironias do sistema é que Putin odeia a desordem, mas é obrigado, às vezes, a fabricá-la e vendê-la”.

Quando estas emergências de “segurança nacional” não podiam ser encontradas dentro do país, surgiram as novas aventuras estrangeiras na Ucrânia, Síria e mais recentemente as tensões com a Turquia. Em meados de 2014, quando as sanções ocidentais começaram a pesar contra a economia e relações internacionais da Rússia, ficou claro que Moscou queria reduzir o conflito, mas como o sistema não tem um modus de retirada a desagregação no leste da Ucrânia significou uma escalada na Síria. Desde então “novos riscos continuam emergindo, assustando até mesmo os mais leais burocratas, mas o Kremlin não ousa suprimir o apetite aparentemente sem fundo da população russa para a escalada militar” (PAVLOVSKY, 2016).

Putin e Líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei

Uma vez que as autoridades do Kremlin não têm ideia do que fariam na ausência de Putin, o que é compreensível, já que o sistema de governança atual não conta sequer com um espaço formal onde se discutem os cenários potenciais do futuro Estado pós-Putin, fica a única certeza de que seja lá o que venha a acontecer e quem quer que venha a assumir o leme do Estado russo, a única maneira viável de governar será através do “sistema” atualmente vigente e consolidado.

Patriotismo militarizado

Temendo uma “nova perestroika” de consequências incontroláveis, ao invés de optar pelas reformas institucionais necessárias para a modernização do capitalismo russo, ao voltar ao governo, em 2012, Putin preferiu garantir a permanência de seu controle mais rígido dos rumos da economia política russa, agindo de modo a mudar os fundamentos da legitimidade de seu regime. Em vez da prioridade voltada à expansão econômica, ele passou a solidificar um governo centrado na mobilização patriótica, ou no que o sociólogo político russo Igor Klyamkin chamou de “patriotismo militarizado”.

É então que vemos as ofensivas militares na Ucrânia, culminando, num primeiro momento, na internamente festejada anexação da Criméia, além de uma despojada intervenção militar na Síria. Estes movimentos bélicos vêm se intensificando ao longo dos anos, e servem de amostra prática da convicção de Putin de que não apenas a manutenção de seu regime, mas a restauração do “orgulho da superpotência russa” passa necessariamente por vitórias nos jogos geopolíticos em escala global. Ressalte-se: a restauração do orgulho da superpotência russa. Trata-se da “missão” de Putin, outorgada a ele pelo “povo russo”, ou seja, tanto pela classe trabalhadora quanto pelas elites capitalistas empresariais e estatais do país.

Diferentemente do que foi alegado quanto à intervenção militar na Ucrânia na sequência da insurreição de fevereiro de 2014, a derrota do regime do presidente sírio Bashar al-Assad não ameaçaria, de modo algum, a soberania e a integridade territorial, por isso as ações russas na Síria precisam ser calibradas com este pano de fundo da estratégia geopolítica mais ampla de Putin e do Estado russo. É preciso lembrar, também, que esta estratégia é fortemente apoiada pela mídia russa, hegemonizada pelo governo. Não à toa, a maior parte da população russa acredita fielmente na narrativa estatal segundo a qual o país estava de joelhos e agora se levantou, voltando a ser um líder internacional. Já “o Ocidente”, teria declarado uma guerra velada contra a Rússia, justamente porque é incapaz de aceitar essa nova configuração de poder global. De acordo com essa ideologia, a pátria russa está “em perigo”, mas o “grande líder” Putin “saberá levar a nação ao bom caminho” forçando os Estados Unidos e demais países ocidentais a voltar a “temer e a respeitar” a Rússia. Tal sentimento nacionalista é generalizado no país, e não deve ser menosprezado como um mero detalhe.

A televisão russa (bem como outras mídias) cumpre grande papel na disseminação da ideologia nacionalista, mas as raízes do fanático patriotismo russo são muito mais profundas que a mera “manipulação” ideológica. O fervor nacionalista russo vem de longa data, tendo recebido grande impulso durante o regime soviético. Ele teve seu ápice certamente na Segunda Guerra Mundial, na chamada “Guerra patriótica” onde o Exército Vermelho russo “salva a humanidade” da tirania nazista e ocidental. Não por acaso, na Rússia, a vitória da 2ª Guerra é comemorada ano a ano com feriados longuíssimos, e Stálin segue sendo visto internamente como o maior líder que o mundo já teve. O que Putin fez, portanto, foi fundar ou refundar um patriotismo militarizado com base em um “trauma nacional”, profundamente arraigado na mentalidade dos russos, de que forças estrangeiras teriam tomado da Rússia seu status e sua “missão excepcional” de ser – desde 1945 – o contrapeso moral e militar aos Estados Unidos, ou seja, o país encarregado de salvaguardar o mundo da tirania ocidental de modo a preservar a paz na Terra. O governo Putin conseguiu canalizar a seu favor esta “sensibilidade nacional” que pensa em termos de “inimigo”, “ódio”, “perigo”, “ameaça”, “orgulho”, “missão”. Enfim, toda uma gramática que flerta e converge, em muitos sentidos, com o fascismo, amortecendo e mesmo anulando os impactos políticos, econômicos e ideológicos das sanções econômicas e da pressão diplomática que vêm do Ocidente. Se estas sanções se mostram inócuas enquanto meio de pressionar a Rússia a abrir mão de alguns de seus objetivos estratégicos conflitantes com os interesses de outras superpotências – a começar pelas que formam a OTAN – resta a saída militar, ou seja, jogar de acordo com as regras impostas pelo próprio Estado russo (em que medida ele está apenas reagindo ou respondendo a pressões de fato impostas pelos EUA e outras superpotências econômicas e políticas é algo, nesse momento, secundário).

Um ganho de expressividade de ideologias nacionalistas e de recuperação do “status de superpotência” dotada de uma “missão especial”, enquanto tais protofascistas, um crescente conservadorismo entranhado na classe trabalhadora e uma dinâmica geopolítica que levanta a sombra de conflitos militares de grande escala: é por isso que é preciso estar de olho na Rússia e no tabuleiro econômico e geopolítico em que ela se insere. Vejamos na quarta parte desta série, então, como estão atualmente as relações internacionais da Rússia.

(Continua…)

Fontes

Este tópico reproduz as ideias de alguns artigos publicados nos últimos 2 anos em Foreign Affairs, com destaque para “Changing Putin’s Mind: How Trump Can Reshape Russian Foreign Policy”, trabalho de Leon Aron pubicado em 15 de dezembro de 2015 (disp.: https://www.foreignaffairs.com/articles/russia-fsu/2016-12-15/changing-putin-s-mind). Além disso, foram úteis (não apenas para este tópico): “The Strength of the Bear: Russia in a Post-Cold War Context” (http://global-politics.co.uk/wp/2016/11/20/the-strength-of-the-bear-russia-in-a-post-cold-war-context/), “Trump and Putin’s Game Theory: Why Cooperation Won’t Last” (https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2017-02-01/trump-and-putins-game-theory), “Russia’s Art of War: State Branding by Other Means” (https://www.foreignaffairs.com/articles/russian-federation/2017-02-07/russias-art-war), “Donald Trump seeks a grand bargain with Vladimir Putin: It is a terrible idea” (https://www.economist.com/news/leaders/21716609-it-terrible-idea-donald-trump-seeks-grand-bargain-vladimir-putin), “Putin Is Still Standing. The Elites That Keep the President in Power” (https://www.foreignaffairs.com/articles/russian-federation/2016-07-26/putin-still-standing ), “Listem, liberal: Alexei Kudrin wants to liberalise Russia’s economy to save it” (http://www.economist.com/news/europe/21715022-donald-trumps-election-many-russians-think-putins-model-winning-alexei-kudrin-wants). No subtópico dedicado ao “sistema” russo reproduzimos algumas das ideias e formulações presentes no notável artigo “Russian Politics Under Putin. The System Will Outlast the Master”, de Gleb Pavlovsky, publicado em 2016 na Foreign Affairs (disp.: https://www.foreignaffairs.com/articles/russia-fsu/2016-04-18/russian-politics-under-putin). Gleb foi consultor do Kremlin entre 1996 e 2011, ou seja, viu de perto os governos de Boris Yeltsin, Vladimir Putin e Dmitry Medvedev. Foi de valia, também, o texto de Tomasz Konicz sobre o Capitalismo de Estado na Rússia e China, intitulado “Farinha do mesmo saco”, disponível aqui (http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz.htm)

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