Por Pablo Polese

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Rússia, uma superpotência?

Jonathan Adelman não tem dúvidas em responder com um “sim” à pergunta que nomeia este tópico. Em seu instigante artigo intitulado “Pensando no impensável: a Rússia re-emergiu como uma potência” (disponível aqui) o professor da Universidade de Denver reflete sobre o fato de que tem sido muito negativa, nos últimos anos, a imagem ocidental da Rússia e de Putin. Ele lembra como o presidente Obama chegou a chamar publicamente Putin de “um estudante que se esconde em sua cadeira no fundo da sala”, ridicularizando o país como um mero “poder regional”. Por outro lado, embora a Rússia tenha hoje – mais que nada no Ocidente – uma imagem deturpada e decadente, como a posição do país como “superpotência” chega a ser levada a sério? Como, depois do colapso soviético, pode a Rússia voltar a se tornar uma grande potência, sendo que não houve no país uma revolução agrária ou de consumo capaz de impulsionar a modernização do país, e em vez disso seu principal suporte econômico, o petróleo, está há anos com preços desagradavelmente baixos? Como o país pode levantar seu status de superpotência tendo um líder tão “ruim”? Adelman questiona: como pode este líder ser tão ruim, depois de habilidosamente ter manejado intervenções militares bem sucedidas na Geórgia (2008), Crimeia (2014), Ucrânia (2014-2016) e Síria (2015-2016)? O professor constata que Putin tem um brilhante Ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, que conta com um competente Ministério das Relações Exteriores, e segue enumerando elogios ao presidente russo, que “reconstruiu a capacidade militar do país, ao gastar US$ 49 bilhões por ano em segurança”. A partir daí enumera aspectos favoráveis à visão da Rússia como superpotência global:

A Rússia mantém 1.790 armas nucleares estratégicas. Com mais de 140 milhões de pessoas e 13 milhões de graduados universitários, a Rússia tem quase um milhão de cientistas, engenheiros e técnicos de primeira classe, a maioria dos quais trabalham para os militares. Muitas antigas grandes potências já não são grandes potências. O Japão, que esmagou o exército russo na Guerra Sino-Japonesa de 1904, ocupou grande parte da China de 1937-1945 e tem uma economia de quatro trilhões de dólares já não é uma potência. Depois de sua derrota na Segunda Guerra Mundial, com a queda americana de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki e na ocupação pós-guerra americana, o Japão prometeu uma intervenção no mundo e se recusou a adquirir armas nucleares. A Europa, que outrora estava repleta de grandes potências como a Alemanha, a França, a Inglaterra e a Austro-Hungria, passou agora a outra direção. A Alemanha bateu com firmeza os russos em cada batalha da Primeira Guerra Mundial e aproximou-se de fazer o mesmo em 1941 e 1942. Hoje, com fraca projeção de poder, as três potências têm menos de 1.000 tanques de combate e poucos porta-aviões. O fraco crescimento econômico (1,5% ao ano), os conflitos entre os seus 28 membros, a migração do Oriente Médio, problemas graves com membros mais fracos, como a Grécia, promovem questões domésticas em detrimento de questões internacionais. A China, com seu PIB de dez trilhões de dólares, mais de dois trilhões de dólares de exportações, mais de três trilhões de dólares em seu fundo de reserva, 1,35 bilhão de pessoas e 3,7 milhões de quilômetros quadrados de território, é uma grande potência futura. Ela fez um enorme progresso econômico desde que Deng Xiaopong lançou as Quatro Modernizações em 1978, contudo, os problemas que ainda restam são impressionantes: uma enorme poluição atmosférica, 675 milhões de camponeses, uma enorme corrupção governamental, uma ditadura autoritária de um partido, a falta de Estado de Direito, o envelhecimento acelerado da população, centenas de milhares de crianças se criando com apenas US$ 7.500 PIB. Seu poder militar, embora impulsionado por 150 bilhões de dólares de gastos anuais, ainda precisa de mais uma década para se tornar uma força verdadeiramente moderna. A Índia tem 20% de analfabetismo, 300 milhões de pessoas sem eletricidade e um PIB per capita de US$ 1.300, menos de três por cento dos Estados Unidos. Ela enfrenta o Paquistão, logo ao lado, com 200 bombas atômicas. Com mais de um bilhão de pessoas, a Índia será uma grande potência, mas não por várias décadas. Depois, há os Estados Unidos, a única superpotência mundial desde a vitória na Guerra Fria e uma das duas superpotências no mundo desde 1945. Sua economia de 18 trilhões de dólares, 17 das 20 maiores universidades do mundo, liderança mundial em alta tecnologia, mais de 550 bilhões de dólares em gastos militares e 330 milhões de pessoas tem uma séria vantagem sobre a Rússia. Mas, com o surgimento de candidatos presidenciais neo-isolacionistas populares, a recuperação econômica mais lenta desde a Grande Depressão e o declínio em seu setor manufatureiro, a administração falando em reduzir o tamanho do exército americano ao nível de 1940 e a semi-retirada de Obama do Oriente Médio, a porta que tinha sido fechada à Rússia foi aberta. O impensável tornou-se uma realidade. A Rússia, aparentemente acabada depois da derrota na Guerra Fria, agora está emergindo como uma grande potência potencial desafiando o Ocidente. Ela fez o impensável – tornou-se uma grande potência preenchendo o vazio deixado por outras grandes potências que agora se reduziram em tamanho, poder e influência.

A argumentação é boa, mas vamos “devagar com o andor”. Cabe analisar com maior atenção algumas das questões relativas ao poder geopolítico real da Rússia de Putin.

As relações da Rússia com a Europa

Quando cai a União Soviética, em 1991, a esperança dos liberais e democratas russos, além de parte da classe trabalhadora, era a de que a nova Federação Russa dotada de uma economia de mercado e liberdades políticas de estilo ocidental “voltaria à Europa”. Os trabalhadores desejavam algo talvez mais singelo, e certamente mais palpável: supermercados e lojas de bens de consumo bem abastecidos, emprego para adquirir o salário (portanto, meios para comprar as mercadorias) e estabilidade econômica e política. Hoje passados 26 anos desde o fim da URSS, em vez de plenamente integrada, a Rússia está mais afastada da Europa. Muitos russos, começar pelos líderes do país, o consideram uma civilização auto-sustentada que tem “ligações” com a Europa, mas que é, em vários sentidos, separada dela. Esse modo de ver o país entra em atrito com os legados do ex-presidente Boris Yeltsin e de Mikhail Gorbachev, que consideravam a Europa como um modelo a ser seguido, e se recuarmos mais alguns anos vai na contramão até mesmo da europeização da Rússia, proposta por Pedro, o Grande (Czar e imperador russo de 1682 a 1721 e 1721 a 1725, respectivamente).

Alguns analistas observam que a recusa mais recente à europeização se deve ao próprio modo como historicamente a Europa tem tratado as elites e o Estado russos. Depois do colapso da URSS os líderes da Federação russa demonstraram interesse em integrar as parcerias e instituições ocidentais, como por exemplo a OTAN e a União Européia (o Tratado de Maastricht, que deu origem à UE, foi redigido em fins de 1991), mas tais arranjos não ofereceram o nível de inclusão e envolvimento na tomada de decisões que Moscou cobiçava. A Rússia foi, então, admitida nos organismos de segundo escalão do continente, como por exemplo o Conselho da Europa, cujos propósitos são a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social na Europa, ou mesmo a Organização para a Segurança e Cooperação na Europa. No caso da OSCE, por exemplo, a Rússia herda coletivamente (junto às demais ex-repúblicas soviéticas) um assento em um fórum que a própria URSS co-fundou em 1975. Isso, em especial para os nacionalistas russos, foi obviamente uma forma de insulto ao país. Não por acaso ao longo do tempo a Federação Russa passou a criar suas próprias instituições em resposta às ocidentais: em termos militares o Pacto de Varsóvia foi uma resposta à OTAN, e em termos econômicos podemos elencar a COMECON como a resposta à OCDE. Mais recentemente surgiram outros tratados e blocos onde a Rússia é membro, como os BRICS, a União Econômica Eurasiática etc. O fato marcante em todas essas instituições e parcerias, de todo modo, é a crescente inclinação anti-ocidental do país, especialmente depois de 2014.

Com o fim das restrições da Guerra Fria os russos passaram a ter maiores contatos culturais, políticos, ideológicos e econômicos com a Europa ocidental. As ideias europeias de sociedades abertas e governabilidade democrática, promovidas por ONGs financiadas por estrangeiros, passaram a preencher o vazio ideológico deixado pelo marxismo-leninismo e pela propaganda soviética. O estilo de vida “europeu” assumiu aos poucos uma conotação positiva, e os russos passaram a desejar ser reconhecidos como camaradas europeus. No entanto, a sequência de frustrações nas relações diplomáticas entre Rússia e ocidente minou a integração plena da Rússia à Europa ocidental. A partir de meados da década de 90 a OTAN e a UE começaram a expandir-se para o leste, procurando consolidar os ganhos econômicos e políticos que o colapso soviético prometia. Nesse momento, as autoridades ocidentais deixaram claro que as principais instituições ocidentais não incluiriam a Rússia, alegando que o país não tinha a qualificação para tal, devido à lentidão das transições econômicas e democráticas. A desqualificação do país enquanto parceiro horizontalmente considerado se aprofunda ainda mais depois da crise financeira russa de 1998, quando Moscou deixa de pagar sua dívida, levando a Europa Ocidental a afirmar que a transição capitalista e democrática falhara e que o país entraria em um novo período de caos.

Na mídia, os líderes ocidentais sugeriam que a Rússia era “muito grande e muito original” para ser-lhe oferecido qualquer coisa para além de um relacionamento amigável, enquanto na prática e nos bastidores do poder tratavam a Rússia como irrelevante e arquitetavam um sistema global sem a presença dela nas esferas de decisão. A exceção foram os Estados Unidos e Reino Unido, que tiveram lideranças perspicazes a ponto de perceber que independentemente de sua força a Rússia recusaria a condição prévia máxima da integração ocidental: a aceitação da liderança norte-americana. Mesmo quando o poder russo atingiu um ponto baixo, Moscou exigiu um status efetivamente co-igual com os Estados Unidos, e sempre lidou de modo hostil com aliança da OTAN liderada pelos EUA. Em muitos sentidos ficava claro, a cada movimento do xadrez geopolítico, que mesmo que a Europa acolhesse a Rússia em suas instituições Moscou jamais aceitaria uma posição subordinada e de poder restrito à “ordem regional” (não por acaso Obama irritou tanto os russos ao afirmar que a Rússia era um líder regional).

Assim, em vez de integrar a Rússia no sistema euro-atlântico, os americanos e os europeus ocidentais começaram a se proteger contra o potencial renascimento das grandes ambições de Moscou. Essa foi uma razão pela qual a OTAN e a UE abriram suas portas para os antigos satélites e repúblicas da União Soviética, e é, por isso, também, que o Ocidente vem observando atentamente algumas movimentações internas à Rússia, como por exemplo o aumento do papel do Estado na economia, o crescente autoritarismo em Moscou, a difusão de um forte conservadorismo apoiado pela Igreja Ortodoxa Russa, o ressurgimento das forças armadas russas, modernizadas, etc. Todo esse desenrolar histórico levou não apenas as lideranças e elites, mas também os trabalhadores russos à convicção de que depois da Guerra fria o experimento de democracia, livre mercado e abertura política e econômica vivido pelo país foi um período de humilhação nacional que produziu desigualdades sociais e deixou a Rússia de joelhos frente aos estrangeiros. Essa análise, todavia, não é forjada em um sentido de que “no socialismo era melhor”, mas sim em termos de aspirações sociais a que o país volte a ser uma potência imperialista, “respeitada” em todo o globo etc. Vemos, então, o solo fértil onde não por acaso renasceu, com força, o patriotismo e nacionalismos russos.

Se até 2014 os russos olhavam de modo pragmático para a Europa ocidental, enquanto local de investimento, turismo, consumo etc., depois da intervenção militar na Ucrânia e da anexação da Crimeia, das tensões geopolíticas subsequentes, da crise econômica que se abateu sobre a Rússia e das sanções ocidentais contra o país, o povo russo chegou à convicção inabalável de que os meios de comunicação europeus e estadunidenses tinham tomado um viés anti-russo, tal como acontecera durante a Guerra Fria e, mais recentemente, durante a Guerra da Rússia com a Geórgia, em 2008. Forjou-se, para muitos russos, um cenário ideológico em que “o ocidente” é constituído de inimigos claramente voltados contra a “civilização russa”.

De acordo com uma pesquisa realizada em novembro de 2016 pelo Levada Center, 74% dos russos acreditam que as sanções visam enfraquecer e humilhar a Rússia, enquanto apenas 5% consideram as sanções como um instrumento para parar o conflito no leste da Ucrânia. Para os russos comuns que nunca foram de fato à Europa ocidental o continente é atualmente um território sem rumo, liderado por elites que estão prostradas diante de Washington. A União Europeia seria um aglomerado de países mergulhados em problemas criados por políticas abertas de imigração, perda de valores familiares tradicionais, ateísmo e libertinagem sexual.

O retorno de Putin ao poder em 2012 muda o modo como o Kremlin enxerga as relações russo-europeias: até 2012 a política oficial da Rússia apresentava o país como parte de uma “Europa global”, incluindo a América do Norte, a Europa propriamente dita e a Rússia. A partir de 2012, com os atritos com o presidente estadunidense Barack Obama, o endurecimento da postura da chanceler alemã Angela Merkel sobre a Rússia, as críticas europeias à intervenção russa na Síria, as sanções em resposta à intervenção na Ucrânia e a tomada da Crimeia, o Kremlin assumiu definitivamente que a Rússia constitui uma nação-civilização própria, para além da Europa. Com isso delineia-se uma mudança na geopolítica: a Rússia passa a re-calibrar suas políticas orientadas para o Ocidente com uma visão estratégica mais ampla, olhando também para o sul, o Oriente Médio e Norte da África, intervindo na Síria e aprofundando seus laços com o Egito, além de olhar para o leste, melhorando suas parcerias energéticas e militares com a China. Do mesmo modo, passa a dar atenção para o norte, no Ártico, começando a expandir a Rota do Mar do Norte, reivindicando áreas da plataforma continental da região e reconstruindo algumas instalações militares da era soviética.

Nesse novo quadro, a Europa deixou de ser um modelo e é agora apenas outro vizinho, parte de uma “Grande Eurásia”. Entre as prioridades estratégicas da Rússia, a Ásia tradicionalmente desempenhou um papel secundário em comparação com o Ocidente. Foi apenas a partir de meados da década de 1990 que o ministro das Relações Exteriores Yevgeny Primakov iniciou uma aproximação com a China e Índia. Em 2014, a deterioração das relações entre a Rússia e o Ocidente levou Moscou a começar a arquitetar um “grande pivot” para o Oriente. Essa “nova” política asiática da Rússia corre o risco, entretanto, de ser um tiro no pé, pois ao incidir excessivamente na China há o perigo da China engolir a Rússia e impor sua própria agenda de política externa e econômica. Do mesmo modo, o nacionalismo russo implica em que as relações com os países da região se deem de modo estritamente bilateral, mas ocorre que no mundo atual as relações bilaterais, mesmo com a poderosa China, precisam ser manejadas enquanto partes de um todo, onde as partes se coordenam. Enquanto parte de uma estratégia mais ampla na Ásia-Pacífico, a Rússia busca construir uma “Grande Eurásia”, mas isso requer uma abordagem integrada para a região como um todo, e uma abordagem global toca necessariamente em dimensões geopolíticas, econômicas, militares e culturais que atualmente adquiriram uma face muito conservadora na Rússia, e verdadeiramente anti-globais. No limite, o projeto estratégico maior da Rússia de Putin, anti-ocidental e etc., terá de se resolver com a própria ideologia conservadora atualmente vigente no país, ou então assumir desavergonhadamente uma face nacional-imperialista, o que em teoria implicaria aprofundar os atritos com o ocidente e estendê-los também para os chineses e japoneses. As esperanças (de muitos russos) de uma união geoestratégica entre Rússia e China contra “o ocidente” são irrealistas, dada a atual prioridade chinesa para a conquista de maior influência na configuração global do poder não pela via bélica e sim pela via dos mecanismos frios da economia, o que implica boas relações com parceiros ocidentais de peso, a começar pelos EUA e UE.

Atualmente os russos olham para a Europa e veem o recente ressurgimento do nacionalismo, o ceticismo popular em relação ao livre mercado e o declínio da integração europeia, concluindo que o continente está passando por uma evolução potencialmente positiva, de priorização dos interesses nacionais ao invés excessos do globalismo dominado pelos EUA. Com o tradicionalmente hostil Reino Unido afastado da UE, os russos esperam a eleição de Marine le Pen e o renascimento do gaullismo em França, o que comprometerá a permanência da França na zona do euro e, assim, a própria existência da União Europeia. Além disso os russos esperam um renascimento da Ostpolitik alemã amigável à Rússia, e na Itália a situação também não é das mais simples, com as saídas ocorridas no PD e o crescimento do M5S. Noutros cantos europeus forças conservadores e de extrema-direita, incluindo abertos fascistas, tem ganhado expressividade, como por exemplo na Holanda, Áustria, Hungria e Polônia. Se essas tendências se consolidarem, é provável um fracionamneto da União Europeia e, então, as relações entre a Rússia e a Europa se tornarão ainda mais quentes, sobretudo no plano econômico, pois a UE (ou os países da EU…) continuará a ser o maior parceiro comercial da Rússia. Em tempo, vale lembrar que, como lembra João Bernardo já há muitos anos e em diversos artigos publicados no Passa Palavra, o mais grave de tudo é o fato de que as forças que se consideram de esquerda ser não menos nacionalistas e nem menos populistas do que os fascistas e a extrema-direita.

Que fazer com a Rússia? (o ponto de vista estadunidense)

Em fim de 2015, enquanto a Guerra da Síria e a crise dos refugiados afligiam Oriente e Ocidente, a cidade turca de Antalya sediou um encontro do G20 onde os chefes de Estado Obama, Erdogan (Turquia) e Cameron (então Primeiro-Ministro da Grã-Bretanha) pediram a Putin (Rússia) que reconsiderasse o compromisso com Assad, bem como o ataque às forças moderadas sírias. O clima não foi dos melhores, e por isso desde então alguns analistas dizem que a crescente tensão internacional marca uma espécie de retorno à política da Guerra Fria (ver aqui). Vimos na parte desta série dedica à economia russa que a Rússia de Putin é bem diferente daquela dos tempos soviéticos, enfrentando graves desafios internos, além disso há, por exemplo, a questão do envelhecimento da população, a esperança de vida média de apenas 65 anos para os homens (ver aqui) e uma economia em contração (ver aqui). Alguns analistas sugerem que o “urso russo” estaria rosnando e fazendo ataques no exterior para mascarar sua vulnerabilidade.

A atenção destacada para a geopolítica não é algo novo na história do país. Desde sempre a política externa russa tem sido caracterizada por ambições crescentes: desde o reinado de Ivan, o Terrível, no século XVI, a Rússia se expandiu a uma taxa média de 50 milhas quadradas por dia, durante centenas de anos, cobrindo um sexto do planeta. Em 1900 ela já era a quarta ou quinta maior potência industrial do mundo e o maior produtor agrícola da Europa, embora seu PIB per capita tenha atingido apenas 20% do Reino Unido e 40% do da Alemanha. A história registra três momentos de notável ascensão russa: a vitória de Pedro, o Grande sobre Carlos XII da Suécia de início do século XVIII, que implantou o poder russo no Mar Báltico e na Europa; a vitória de Alexandre I sobre Napoleão Bonaparte, que levou a Rússia até Paris enquanto árbitro internacional de assuntos de Estado; e finalmente a vitória de Stalin sobre o Adolf Hitler, levando a Rússia até Berlim e garantindo ao país um império na Europa Oriental e um papel central na ordem global pós-1945.

A Rússia, entretanto, tem em seu currículo muitos reveses militares. O país perdeu a Guerra da Criméia de 1853-1856, o que “baixou a bola” dos russos em sua confiança “pós-napoleão” e permitiu a emancipação tardia dos servos. A Rússia também perdeu a Guerra Russo-Japonesa de 1904-5, e a Primeira Guerra Mundial, uma derrota que contribuiu com o colapso do regime imperial, e “perdeu” a Guerra Fria, uma derrota que levou ao colapso do poder soviético estabelecido em 1917.

Ao longo do tempo, o Kremlin tem sido assombrado por seu relativo atraso nas esferas militar e industrial, o que vez ou outra levou à defesa apaixonada de ciclos de desenvolvimento econômico enquanto solução final para os problemas russos. A geopolítica, entretanto, nunca foi deixada de lado, e como vimos, foi Putin quem a colocou novamente no topo das prioridades russas.

Com a dissolução da União Soviética em 1991, Moscou perdeu cerca de dois milhões de quilômetros quadrados de território, o que equivale a toda a União Europeia (1,7 milhões de milhas quadradas) ou a Índia (1,3 milhão). Além disso, a Rússia perdeu a parte da Alemanha que conquistou na Segunda Guerra Mundial e seus outros satélites na Europa Oriental, incluindo os Balcãs, a ponto de atualmente todos estes países estarem engajados em alianças militares ocidentais. Outras antigas possessões soviéticas, como o Azerbaijão, a Geórgia e a Ucrânia, cooperam estreitamente com o Ocidente em matéria de segurança. Apesar da anexação da Criméia, da guerra no leste da Ucrânia e da ocupação da Abcássia e da Ossétia do Sul, a Rússia ainda não “recuperou” sequer as fronteiras que tinha à época de Catarina, a Grande. Ademais, o país possui apenas umas poucas bases militares na Ásia Central.

O que pretendemos frisar, em termos concretos, é que a Rússia ainda é o maior país do mundo, mas é muito menor do que já foi e possui hoje um status reduzido em termos de uma potência global. Não é à toa, portanto, que Putin advoga a missão de restabelecer para a Federação Russa os ativos políticos e geoestratégicos da superpotência soviética.

O PIB russo atingiu seu pico em 2013, em pouco mais de US$ 2 trilhões. Em 2016 esse valor caiu para cerca de US $ 1,2 trilhão, devido à queda dos preços do petróleo e às taxas de câmbio do rublo. Em termos de paridade de poder de compra o declínio da economia russa não é tão acentuado, mas ainda assim em termos comparativos denominados em dólares a economia da Rússia equivale a apenas 1,5% do PIB global e equivale a apenas 1/15 do tamanho da economia estadunidense.

Não bastasse a economia em crise, o ambiente geopolítico tem se mostrado desafiador para a Rússia, com a supremacia global dos EUA e o crescimento do poder político, econômico e militar da China. Além disso, a propagação do islamismo político radical suscita preocupações, uma vez que cerca de 15% dos 142 milhões de cidadãos russos são muçulmanos e algumas das regiões predominantemente muçulmanas do país estão fervilhando. Desse modo, a situação é crítica para uma Rússia que se vê como tendo a tarefa vital de se igualar ao poder ocidental de modo a competir com a China e Estados Unidos na reivindicação da direção “trilateral” dos rumos do planeta.

A defesa e sensação de que o país possui um lugar sagrado e uma missão especial de contrapeso moral ao ocidente contribuiu para o fracasso das alianças entre a Rússia e os organismos internacionais de modo tal que foi negado à Rússia uma posição de destaque. Como frisamos acima, isso leva o povo e os líderes russos a terem um marcante “ressentimento” contra o Ocidente, cujas ações são vistas como anti-russas e sentidas como verdadeiros ataques ao “orgulho” da “nação russa” etc. Assim, a alienação psicológica fundada na histeria de “missões especiais” do país face ao mundo se soma a um forte nacionalismo e à divergência institucional impulsionada por disputas econômicas, resultando num caldo político e ideológico conservador. Como resultado, os governos russos têm oscilado entre a procura de laços mais estreitos com algumas economias ocidentais e a fúria desenfreada contra os “inimigos”, legitimando, inclusive, o expansionismo russo enquanto modo de “defesa nacional”. Stephen Kotkin, em artigo publicado em junho de 2016 na Foreign Affairs, intitulado “A perpétua geopolítica da Rússia” (disponível aqui), faz uma boa reflexão acerca do tema:

Hoje, também, os países menores nas fronteiras da Rússia são vistos menos como potenciais amigos do que como potenciais cabeças de guerra para os inimigos. De fato, esse sentimento foi fortalecido pelo colapso soviético. Ao contrário de Stalin, Putin não reconhece a existência de uma nação ucraniana separada de uma russa. Mas, como Stalin, ele vê todos os Estados fronteiriços nominalmente independentes, incluindo agora a Ucrânia, como armas nas mãos de potências ocidentais com a intenção de brandi-las contra a Rússia. Um motor final da política externa russa tem sido a busca perene do país por um Estado forte. Em um mundo perigoso, com poucas defesas naturais, pensam, a única garantia para a segurança da Rússia é um poderoso Estado disposto e capaz de agir agressivamente em seus próprios interesses. Um Estado forte também tem sido visto como o garante da ordem doméstica, e o resultado tem sido uma tendência percebida no século XIX pelo historiador Vasily Klyuchevsky enquanto tendência milenar da história da Rússia: “O Estado fica gordo e as pessoas magras”. Paradoxalmente, porém, os esforços para construir um Estado forte levaram invariavelmente a instituições subvertidas e a um regime personalista. […] O personalismo desenfreado tende a tornar opaca e potencialmente caprichosa a tomada de decisões sobre a grande estratégia russa, pois acaba por confundir os interesses do Estado com as fortunas políticas de uma pessoa. O ressentimento anti-ocidental e o patriotismo russo parecem particularmente pronunciados na personalidade e nas experiências de vida de Putin, mas um governo russo diferente não dirigido por antigos membros da KGB ainda seria confrontado com o desafio da fraqueza em relação ao Ocidente e o desejo de papel especial no mundo. Em outras palavras, a orientação da política externa da Rússia é tanto uma condição quanto uma escolha.

Historicamente, o Ocidente desprezou algumas das aberturas russas para o diálogo e parcerias diplomáticas etc., mas frisar esse ponto é irrealista na medida em que minimiza a dinâmica interna da política e sociedade russas. Ou seja, Washington e a União Europeia exploraram o enfraquecimento da Rússia, mas a posição de Putin e da política externa do Estado Russo devem ser vistas menos como uma reação a movimentos externos do que como coerentes com um padrão histórico de raízes profundas, que se alimenta de fatores internos. O que impediu a Rússia pós-soviética de se juntar à Europa como apenas mais um país numa ampla aliança ou de formar uma parceria subordinada com os Estados Unidos foi o permanente orgulho “do país” e seu senso de missão especial – ambos enquanto expressão da ideologia hegemônica na Rússia, e não como teoria implantada pela mão de líderes megalomaníacos. A Rússia possui uma tendência estatista, mas tal tendência está presente em outras potências, como a China e mesmo a França ou Alemanha. O que lhe confere particularidade é a permanente defasagem entre suas aspirações e as capacidades reais do país, e a História mostra que esse quadro é perigoso.

A Rússia tem razão, portanto, quando acusa que o acordo pós-guerra fria foi injusto e desequilibrado, mas isso não se deu por conta de um sentimento internacional anti-russo e uma “traição” perpetrada por estrangeiros interessados em humilhar o país. O desequilíbrio se deu como resultado prático inevitável da vitória do Ocidente na disputa com a União Soviética. A retórica segundo a qual a Guerra fria não teve vencedores apenas joga água no moinho do rancor e ressentimento dos nacionalistas russos, impedindo que o país acerte suas contas com o passado e olhe adiante sem o apego ao que se imaginava ser o destino inevitável da URSS. O pior de tudo, para quem observa essas questões de um ponto de vista anticapitalista, talvez resida no fato de que o resgate ideológico da Rússia de hoje com respeito aos valores da URSS não toca nos pontos progressistas daquela fracassada experiência, e sim nos pontos mais nefastos, do nacional-bolchevismo, metamorfoseados: a ideologia de que o país possui uma missão especial, calibrada de modo a justificar tanto o imperialismo quanto o nacionalismo russos.

Qual a solução possível, se os próprios trabalhadores não reagem de modo progressista? Stephen Kotkin pontua uma das alternativas que a Rússia poderia seguir:

O país poderia tentar seguir algo como a trajetória da França, que mantém um sentido persistente de excepcionalismo, mas fez as pazes com a perda de seu império externo e sua missão especial no mundo, recalibrando sua ideia nacional para atender seu papel reduzido e unindo-se com poderes menores e países pequenos na Europa em termos de igualdade. Se uma Rússia transformada seria aceita e combinada com a Europa é uma questão aberta, mas o início do processo precisaria ter uma liderança russa capaz de fazer com que seu público aceitasse uma contenção permanente e concordasse em embarcar em uma árdua reestruturação interna. As pessoas de fora devem ser humildes ao contemplar o quão desagradável seria esse ajuste, especialmente sem uma derrota bélica e ocupação militar. A França e o Reino Unido demoraram décadas a renunciar a seus próprios sentidos de excepcionalismo e responsabilidade global, e alguns argumentariam que suas elites ainda não o fizeram plenamente. Mas eles têm PIBs elevados, universidades ranqueadas, poder financeiro e línguas globais. A Rússia não tem nada disso. Ela possui um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, bem como um dos dois arsenais mundiais do dia do juízo final e uma alta capacidade de colocar o mundo numa guerra cibernética. Além disso sua geografia única lhe dá uma espécie de alcance global. No entanto, a Rússia é a prova viva de que o poder rígido é frágil sem as outras dimensões que envolvem o status de uma grande potência. Por mais que a Rússia insista em ser reconhecida como igual aos Estados Unidos, à União Europeia, ou mesmo à China, ela não é, e não tem perspectiva de se tornar a curto ou médio prazo.

O autor explica que a Rússia tem uma longa presença no Pacífico, mas não é uma potência asiática, tendo no máximo certa predominância na região, já que nem se compara seu poder bélico com os dos antigos Estados soviéticos, hoje soberanos, mas a supremacia militar regional e certa supremacia econômica na Eurásia não conferem ao país o status de superpotência. A União Econômica Eurasiática, por exemplo, até agora não obteve o êxito que desejava, e mesmo que o fizesse, as capacidades econômicas combinadas dos membros da aliança ainda seriam relativamente pequenas. Economicamente a Rússia é, portanto, um grande mercado, e isso às vezes se mostra algo atraente a ponto dos países vizinhos aceitarem o jogo dos riscos e recompensas no comércio bilateral com o país. A Estónia, a Geórgia e a Ucrânia, por exemplo, em geral só fazem negócios com a Rússia se houver uma “âncora” no Ocidente. Outros Estados mais economicamente dependentes do país de Putin, como a Bielorrússia e o Cazaquistão, veem riscos na parceria com um país que não possui um modelo de desenvolvimento sustentado e, pior, depois do caso da Criméia, poderia cobiçar seus territórios. A “parceria estratégica” com a China existe, mas até aqui não resultou em investimentos chineses suficientemente grandes para compensar as sanções ocidentais, sem falar que a China tem sua própria agenda e está forjando sua própria Grande Eurásia, do Mar da China Meridional até a Ásia e a Europa, às vezes às custas e às vezes com a cooperação da Rússia. Moscou tem relações externas tensas com quase todos os seus vizinhos e mesmo com seus maiores parceiros comerciais, como por exemplo a Turquia e a Alemanha. Esta última, a mais importante parceira da política externa da Rússia e um de seus parceiros econômicos mais importantes, precisou dar um “basta” e apoiou sanções contra a Rússia mesmo com isso tendo um custo para sua própria situação interna.

Analistas críticos das movimentações políticas e militares da Rússia têm defendido em periódicos de circulação europeia e estadunidense que a melhor maneira de fazer Putin “mudar de rumo” seria reverter a dinâmica política de sustentação de seu regime, transformando sua política externa, que hoje é a fonte mais poderosa da legitimidade e apoio popular do Kremlin, numa fonte de “dúvida, embaraço, humilhação e remorso”. Trata-se de um conselho bastante perigoso, afinal é justamente esta a gramática que alimenta o nacionalismo russo, e nada pode garantir que uma movimentação ocidental que leve a Rússia à “humilhação e remorso” não resultaria na mobilização popular em massa do povo russo para guerrear a guerra que o governo indicar como sendo “necessária”.

Tal como noutros casos nacionais, a história da Rússia é particularmente sugestiva no que diz respeito aos perigos dos grandes passos “patrióticos”. Neste país de proporções continentais algumas das mudanças de regime mais bruscas se deram na sequência de falhas na política externa e retrocessos militares. A revolução liberal a partir de cima foi lançada por Alexandre II depois da derrota na Guerra da Criméia (1853-1856). A revolução de 1905 explodiu na esteira da desastrosa Guerra Russo-Japonesa. A catastrófica campanha russa na Primeira Guerra Mundial contribuiu para que a revolução bolchevique de 1917 triunfasse. Nikita Khrushchev foi expulso em 1964 após o recuo da Crise de Mísseis de Cuba, em 1962. A perestroika de Gorbachev foi impulsionada, em grande medida, pelo atoladouro da guerra no Afeganistão (1979-88). Putin, no entanto, conhece a história de seu país. Ele é o maior estadista vivo e não está nem perto de ser um autocrata maluco que acredita na própria invencibilidade. Nesse sentido pode-se esperar que ele recue onde sentir a possibilidade de derrota ou de vitórias de Pirro com baixas acima do que os russos estão dispostos a tolerar, mas Putin, o estadista, é apenas o operador que maneja com certa coerência e habilidade os interesses do Estado russo, que num tecido social dominado por um perigoso nacionalismo se confundem com os interesses do “povo russo”, essa categoria que obnubila os matizes de classe e traz sempre consigo a semente fascista. Ora, uma vez fundidos os interesses do povo e do Estado em uma sociedade amarrada por uma espécie de “patriotismo militarizado”, pode-se prever os rumos da revolta do povo russo em face do que seria sentido como uma nova “humilhação” e ataque contra a pátria?

A prova de que o “conselho” dos ocidentais é demasiado perigoso já se coloca à mostra se observamos a forma como os russos têm reagido a certas notícias e fatos. Não importa o número de denúncias dos crimes de guerra na Ucrânia ou Síria, os custos políticos internos da política externa de Putin têm sido, até agora, nulos. Isso se deve não apenas ao fato de que Putin convenceu a população russa da necessidade de derrotar o Estado Islâmico (ISIS) e de que o principal objetivo do envolvimento russo na Síria é a restauração do governo legítimo de Assad, mas também ao fato de que a esquerda russa está desmantelada, ao ponto de que atos e manifestações contra as medidas do governo precisam ser autorizadas e militantes com frequência são perseguidos, presos, expulsos do país ou eliminados.

Do ponto de vista militar, encontramos nalguns artigos de Foreign Affairs ideias interessantes. A intervenção russa na Síria, por exemplo, poderia ser posta em cheque se se pressionasse o governo russo a escolher entre aumentar o apoio russo a Assad, colocando, portanto, mais russos na linha de frente, arriscando suas vidas e com isso levando a desgastes políticos domésticos, ou a reduzir tal apoio, se distanciando de Damasco sem grandes estardalhaços. O ex-conselheiro de Obama no Oriente Médio, Dennis Ross, defendeu no The New York Times que isso poderia ocorrer se os EUA usassem drones e mísseis de cruzeiro para acertar campos de aviação, bases e posições de artilharia dos militares sírios onde não há tropas russas presentes. Também na Ucrânia o Kremlin não vai parar a guerra a menos que os custos políticos domésticos comecem a aumentar significativamente, o que dificilmente vai ocorrer, já que é absurda a superioridade militar e de hacking da Rússia em face das forças de Kiev. Tal como no caso sírio, analistas ocidentais sugerem ações que forcem a Rússia a fazer a escolha entre aumentar o contingente militar e os riscos de desgaste interno ou acelerar as negociações de paz que restabeleceriam a soberania ucraniana sobre suas fronteiras. Para isso os EUA deveriam enviar armas defensivas anti-tanque e antiaéreas para a Ucrânia e radares sofisticados capazes de identificar as posições russas de artilharia e tanques, de modo a reforçar a capacidade de defesa de Kiev tanto no campo de batalha quanto na esfera das comunicações. Ao que tudo indica esta seria a posição de uma Hillary Clinton Presidente, e não à toa os russos comemoraram desavergonhadamente a vitória de Trump, havendo indícios, inclusive, de interferência russa no processo eleitoral estadunidense.

Os analistas que sugerem tais medidas não são inocentes a ponto de ignorar os riscos de que tais medidas poderiam agravar as relações dos EUA com a Rússia e até provocar respostas à altura. No entanto, defendem que a conjuntura impõe a escolha entre confrontar Putin agora ou vê-lo encorajado a desestabilizar ou mesmo invadir diretamente um Estado membro no flanco oriental da OTAN. Em síntese, se a atual combinação de sanções econômicas moderadas e pressão diplomática não tem sido suficiente para mudar a estratégia de política externa de Putin resta constranger seu apoio interno aumentando os custos de sua política externa. Ou seja, a tarefa fundamental dos EUA na relação com a Rússia seria forçar Putin a mudar os fundamentos da legitimidade do seu regime do externo para o interno: desbaratar uma política externa cada vez mais perigosa em pró de uma política interna voltada para o crescimento econômico russo através de reformas institucionais que iriam melhorar o clima de investimento e diminuir as tensões com os Estados Unidos. Como vimos na parte segunda desta séria, essa opção, entretanto, não está dentre as preferidas nem de Putin, nem da elite russa e nem mesmo dos trabalhadores russos.

Stephen Kotkin, no trabalho supracitado, nos fornece uma visão mais complexa e que nos parece bastante realista acerca das opções “ocidentais” face ao desafio posto pela política externa russa atual:

[…] o que representa uma ameaça existencial para a Rússia não é a OTAN ou o Ocidente, mas o próprio regime russo. Putin ajudou a resgatar o Estado russo, mas o colocou em uma trajetória de estagnação e possivelmente fracasso. O presidente e sua camarilha têm repetidamente anunciado a extrema necessidade de priorizar o desenvolvimento econômico e humano, mas eles se esquivam da profunda reestruturação interna necessária para fazer isso acontecer, em vez de derramar recursos na modernização militar. O que a Rússia realmente precisa para competir eficazmente e garantir um lugar estável na ordem internacional é um governo transparente, competente e responsável; um verdadeiro serviço público; um Parlamento de verdade; um poder judicial profissional e imparcial; mídia livre e profissional; e uma repressão vigorosa e não-política sobre a corrupção. A liderança atual da Rússia continua a fazer com que o país carregue os fardos de uma política externa truculenta e independente que está além dos meios do país e produziu poucos resultados positivos. […] Quais são as implicações disso para a política ocidental? Como Washington deve gerenciar as relações com um país com armas nucleares e ciber armamento cujos governantes buscam restaurar sua dominação perdida? Neste contexto, é útil reconhecer que nunca houve um período de boas relações sustentadas entre a Rússia e os Estados Unidos. […] Isso não se deveu a mal-entendidos, má comunicação ou sentimentos feridos, mas sim a divergentes valores fundamentais e interesses de Estado tal como definidos por cada país. Para a Rússia, o maior valor é o Estado; para os Estados Unidos, é a liberdade individual, a propriedade privada e os direitos humanos, geralmente estabelecidos em oposição ao Estado. Portanto, as expectativas devem ser mantidas em cheque. Igualmente importante, os Estados Unidos não devem exagerar a ameaça russa nem minimizar suas próprias vantagens. A Rússia hoje não é um poder revolucionário que ameaça derrubar a ordem internacional. Moscou opera dentro de uma escola familiar de relações internacionais entre potências, que prioriza a margem de manobra sobre a moralidade e assume a inevitabilidade do conflito, a supremacia do poder duro e o cinismo nas motivações dos outros. Em certos lugares e em certas questões, a Rússia tem a capacidade de frustrar os interesses dos EUA, mas nem de longe isso chega ao ponto da ameaça representada pela União Soviética, portanto não há necessidade de responder a ela com uma nova Guerra Fria. O verdadeiro desafio hoje se resume ao desejo de Moscou de reconhecimento ocidental de uma esfera de influência russa no antigo espaço soviético (com exceção dos países bálticos). Este é o preço para chegar a um acerto com Putin – algo que os defensores de tais acomodações nem sempre reconhecem com franqueza. Foi este ponto crítico que impediu a cooperação duradoura depois do 11 de setembro, e continua a ser uma concessão que o Ocidente nunca deveria conceder. No entanto, o Ocidente não é capaz de proteger a integridade territorial dos Estados dentro da esfera de influência desejada por Moscou. E blefar não funcionará. Então o que deve ser feito? Alguns invocam George Kennan e clamam por um revival da contenção, argumentando que a pressão externa manterá a Rússia na baía até que seu regime autoritário seja liberto ou colapse. […] Adotar esse pensamento agora implicaria manter ou intensificar as sanções em resposta às violações russas do direito internacional, fortalecer politicamente as alianças ocidentais e melhorar a prontidão militar da Otan. Mas uma nova contenção poderia tornar-se uma armadilha, elevando a Rússia ao status de superpotência rival, ajudando a Rússia a chegar onde ela pretendia. Mais uma vez, a melhor solução é ser paciente. Não é claro por quanto tempo a Rússia pode jogar a sua mão fraca em oposição aos Estados Unidos e à UE, assustando seus vizinhos, alienando seus parceiros comerciais mais importantes, devastando seu próprio clima de negócios etc. Em algum momento, os sensores serão colocados para algum tipo de reaproximação, assim como a fadiga das sanções acabará por entrar em cena, criando a possibilidade de algum tipo de acordo. Dito isto, também é possível que o atual impasse não termine em breve, uma vez que a busca da Rússia por uma esfera de influência euro-asiática é uma questão de identidade nacional que não é facilmente suscetível a cálculos de custo-benefício materiais. O truque será manter uma linha firme quando necessário – como recusar reconhecer uma esfera russa privilegiada, mesmo quando Moscou é capaz de decretar uma militarmente –, oferecendo negociações somente a partir de uma posição de força e evitando tropeçar em confrontos desnecessários e contraproducentes na maioria dos outros problemas. Algum dia, os líderes da Rússia podem chegar a um acordo com os limites flagrantes de se levantar para o Ocidente e procurar dominar a Eurásia. Até então, a Rússia não será mais uma cruzada necessária a ser conquistada, mas um problema a ser gerenciado.

As ideias destes analistas são interessantes e me parece que são em grande medida realistas, no estreito ângulo de visão que centra suas atenções nas relações internacionais entre países e chefes de Estado (com suas cúpulas de dirigentes). Ora, me parece que o ponto fulcral para qualquer projeção dos rumos futuros da Rússia, seja em termos da “escalada conservadora”, da economia e da geopolítica imperialista, reside antes nas relações sociais internas ao país, mais precisamente, à luta de classes na Rússia de Putin, do que propriamente nas questões de política externa etc. Ora, o que me deixou particularmente horrorizado, nestes 100 anos da Revolução de 1917, foi o fato de que procurei as forças sociais progressistas, que estão enfrentando dentro da Rússia, de um ponto de vista anticapitalista, tais tendências nefastas. E não encontrei.

Fontes

Sobre a Rússia ser ou não uma superpotência, há abundante material, inclusive em português. Foi-nos particularmente útil o citado artigo de Jonathan Adelman, “Pensando no impensável: a Rússia re-emergiu como uma potência” e o ótimo trabalho de Stephen Kotkin, “A perpétua geopolítica da Rússia”. Contra a ideia de uma “nova guerra fria” ver o texto de Tomasz Konicz “Farinha do mesmo saco. Nova Guerra Fria uma ova: Rússia e China são parte integrante do capital mundial”. Além destes trabalhos me baseei em informações de artigos citados nas partes anteriores desta série.

5 COMENTÁRIOS

  1. São tantos textos maravilhosos no Passa Palavra que é impossível ler tudo, velho.

  2. Faltou analisar outros aspectos internos como IDH, coeficiente de Gini, índice de desemprego, eficácia dos sistemas públicos de saúde e educação, etc.
    Esses é que são os verdadeiros indicadores que permitem dizer se um país pode ser considerado uma potência mundial ou não, a meu ver.

  3. A VERDADE É A TÁTICA REVOLUCIONÁRIA
    Ideologema gestorial e seus badulaques (SORRY, algoritmos): “IDH, coeficiente de Gini, índice de desemprego, eficácia dos sistemas públicos de saúde e educação, etc”. Presuntivos “verdadeiros indicadores” que mimetizam alguma verossimilhança tecnocrática, por ignorância &/ má fé. Ou seja: inapetência crítica e voracidade apologética, mutuamente turbinadas…

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