Uma análise para além da cômoda campanha da esquerda reformista: o fatigado “Fora Temer”. Por Amanda Calabria e Arthur Moura

O modo capitalista é o mais dinâmico dos sistemas até os dias atuais e essa dinâmica é necessariamente marcada por crises. Não existe capitalismo sem crise. A crise não é um elemento externo ou que por conta de alguma variação nas estruturas de poder do Estado tem nisso o real motivo das suas oscilações. A crise pode até se agravar devido a determinadas alterações setoriais na sociedade, mas de um modo geral ela é um elemento constitutivo do sistema e da dinâmica capitalista. O capitalismo é a crise.

A conjuntura atual nos força a pensar de forma mais detida sobre os processos históricos recentes relacionando as crises em seus diferentes âmbitos. A crise capitalista de uma forma geral é global, por isso mesmo, estrutural, vistas as inter-relações entre grandes capitais monopolistas. O capital, é bom lembrar, não possui pátria ou qualquer ligação fiel a um determinado território ou sequer uma ideologia fixa. Ele é um sistema explorador em sua essência e instala-se onde haja maiores condições para sua reprodução. Com a crise de 2008, por exemplo, houve grande mobilidade de capitais para a América Latina, o que impulsionou também as políticas de Estado do governo Lula que alternou entre os grandes lucros empresariais e o suporte social em políticas públicas com o consequente aumento do consumo de mercadorias e serviços.

É difícil fazer análise no calor dos eventos. Compreender a atual conjuntura política no Brasil é tarefa árdua, mas o exercício é imprescindível. É de suma importância os movimentos sociais compreenderem o papel da esquerda diante de um quadro político de crise e instabilidade política e econômica para assim pensarem em possíveis ações (e reações) organizadas em defesa dos interesses da classe trabalhadora.

A delação do empresário Joesley da JBS, uma das maiores indústrias de carne do mundo, comprometendo o presidente da república Michel Temer, nos expõe algumas fraturas nas relações entre o que comumente chamamos de grande burguesia. Para além dos esquemas de corrupção e fraude, pudemos reconhecer alguns dos atores fundamentais do jogo político e econômico hoje na relação entre setor público e privado, revelando como se dão algumas dessas relações. É, todavia, necessário se ter em mente que estamos longe de nos aproximar da real amplitude dessas relações de compadrio, uma vez que os dados que nos chegam já vêm peneirados, entre segredos e camuflagens pelos senhores da mídia e pelos senhores da justiça.

A rapidez com que as coisas mudam depende de muitos fatores, mas sobretudo das forças envolvidas e da organização e recursos que cada uma possui. Diante disso, fica evidente a necessidade de compreender não só quais são essas forças, mas como operam, quem as financia e como se estruturam. A velocidade na mudança da conjuntura atual foi um ataque rápido e certeiro (uma espécie de blitzkrieg) entre setores da burguesia (que também sofreu cisão), por isso mesmo planejado e acordado de forma a não dar chances a seu oponente, ou pelo menos reduzir as suas possibilidades, tendo na mídia um forte aliado na construção de uma leitura favorável aos seus aliados.

A divulgação das provas contra Michel Temer, a que a [Rede] Globo logo se apressou sutilmente (mas nem por isso menos evidente) em chamar de “ex” presidente no Jornal Nacional, adiantando sua posição sobre o problema apresentado, é parte de uma nova tomada de posição dos setores dominantes como forma a garantir as reformas e o processo de aprimoramento das políticas neoliberais. O que a burguesia e demais setores estão dizendo é que é necessário cortar benefícios historicamente conquistados através da luta dos trabalhadores organizados, ao passo que lhes incute toda uma estrutura conservadora de educação, cultura e pensamento.

Um dos papeis fundamentais da direita desde as mobilizações financiadas por grupos empresarias, como o Vem pra Rua e MBL [Movimento Brasil Livre], foi contribuir para a despolitização das principais pautas que aglutinavam diversos setores populares, tornando a política campo para a desmoralização da esquerda supostamente representada pela figura do PT [Partido dos Trabalhadores]. Cresceu a adesão a esse discurso gerando figuras bizarras. Desde que a esquerda e suas várias frações também se mostraram incapazes de produzir uma unidade verdadeiramente combativa, o campo político tornou-se mais fértil para o crescimento de políticas reacionárias e fascistas, que é o que mais deve nos preocupar. O ataque surpresa da Globo é uma forma de garantir as reformas sendo certamente favorável de haver eleição indireta, obliterando qualquer possibilidade de ascensão de um novo líder populista e que atenda mesmo que pontualmente as demandas da classe trabalhadora. Ainda que seja importante observar todos os pormenores do jogo do poder, a troca de um novo chefe de Estado pouco ou nada oferecerá para os milhões de trabalhadores que vivem de forma absolutamente precária no país. Há um problema maior, que é a possibilidade desse novo líder popular, se eleito, ter condições reais de governo, visto a completa indisposição das elites para com os setores populares, o que se reflete na forte ascensão do conservadorismo.

Há algum tempo, a Operação Lava Jato vem trazendo à tona alguns esquemas do jogo de benefício mútuo entre empresariado e políticos, e muitos desses casos têm sido expostos através de uma aliança de interesses entre o Poder Judiciário e o grupo Globo. Inicialmente, o escândalo se deu no caso de cartel das empreiteiras na venda da licitação. E, agora, a JBS foi exposta no trâmite com o presidente Temer com interesses de obstruir a Lava Jato, envolvendo uma doação de milhões para o silenciamento de Eduardo Cunha. Com toda essa operação em curso e o recente impeachment da presidenta Dilma, pudemos reconhecer algumas figuras políticas, empresários e investidores envolvidos nos esquemas. E parece que quanto mais a operação caminhar, mais delações virão à tona envolvendo outros peões, reis e rainhas, e custando a queda de um e outro, que, salvando-se a si mesmos, se transformam em X9’s cooperadores da justiça para a garantia individual, uma espécie de absolvição. Entretanto, mesmo desfrutando do sabor da condenação de alguns ícones por quem temos profundo desgosto, e mediante a possível queda de Temer, conceber a operação Lava Jato como uma política progressista em defesa da democracia é incorrer a erro gravíssimo. Tal avaliação nos enreda em armadilhas que nos impedem de pensar uma saída que possa de fato favorecer, em alguma medida, a classe trabalhadora.

A burguesia há de romper com a legalidade quantas vezes for preciso e, correndo o risco do seu desgaste, a garantia de continuação das políticas neoliberais vem por parte das forças armadas (que teve importantes investimentos no governo Dilma, o que gerou mais repressão aos movimentos grevistas) que se mostra como uma das alternativas possíveis dependendo do tamanho da crise e dos rumos que ela tomar. Mas para onde quer que se olhe quase não há alternativas fora da crise e é na crise que nascem maiores oportunidades de organização da classe trabalhadora. No entanto, até mesmo o debate sobre a luta de classes foi esvaziado e subvertido pelos setores reacionários. É bom que nos atentemos com relação a isso.

De um modo geral é preciso problematizar a questão do golpe, visto certa banalização no seu uso corriqueiro para explicar todos os fenômenos hodiernos que envolvem o Estado, deixando de lado que os golpes de Estado, não só em América Latina, mas nas sociedades burguesas de uma forma geral, caracterizam-se e ocorrem como movimento necessário e preciso para se retomar as rédeas da economia e da política num determinado país através da violência direta contra setores contrários às necessidades vigentes da classe dominante defendida num exagerado tom nacionalista. São nesses momentos que os antagonismos de classe chegam a um nível tal que expõem a verdadeira face da sociedade burguesa: ela caracteriza-se por ser uma ditadura direta sobre a classe trabalhadora, sendo ainda mais virulenta contra os mais pobres, especialmente os negros ou setores populares organizados contra a opressão ditatorial burguesa. Isso não quer dizer que não possam ocorrer golpes a partir de outros elementos ou mecanismos, no entanto nenhum deles é estranho ao funcionamento das relações de poder na sociedade capitalista. A falsa polarização entre supostamente a esquerda e a direita nas relações internas à burocracia parlamentar nos serve, no máximo, para compreender as tensões entre os setores que disputam o poder estatal diferenciando-se no modo de gestão e empenho de capital, sendo todas essas forças incapazes de modificar as estruturas sociais simplesmente por não ser essa sua função. Essa polarização não explica necessariamente as razões do golpe. O golpe responde a uma dinâmica própria do capital.

Talvez ainda não nos sejam tão nítidos os interesses do Poder Judiciário que veio se autonomizando e ganhando força e prestígio político num discurso aparente de defesa da democracia e combate à corrupção. Mas é importante pensarmos na força desse segmento político hoje, que, enquanto discurso, coaduna seus interesses com o grande senhor da mídia burguesa. O grupo Globo e o Judiciário parecem, ao menos por enquanto, agir em uma consonância de interesses, se mostrando como os solucionadores dos esquemas de corrupção. É importante salientar que a pressão que hoje força a saída de Temer tem sido protagonizada pela Rede Globo, basta ligar a tv para ver os noticiários. É a emissora quem tem espetacularizado a delação, investindo na depreciação moral e política do presidente Temer e na fragilidade e incapacidade de governança. A pergunta que a esquerda deve fazer é: que interesses estão por trás da Operação Lava Jato e do apoio da Rede Globo? Sem dúvida não é a classe trabalhadora quem lucrará com esses desvelamentos midiáticos e jurídicos.

Sobre esse caso, a Rede Globo vem demonstrando um posicionamento político diferente da elite paulista, refletida no argumento dos jornais Estadão e Folha de S. Paulo. O interesse na saída do Temer e a aliança da emissora com a PGR [Procuradoria Geral da República] e o STF [Supremo Tribunal Federal] tem sido especulado por alguns críticos. Os argumentos das análises recém-feitas variam entre a preservação dos negócios empresariais ligados aos processos em curso visibilizados pela Lava Jato, a preservação para que as investigações não esbarrem no grupo Globo ou mesmo no fato de que com isso a emissora possa direcionar o próximo sucessor da presidência. Qual seja o interesse que está por trás, sabemos que não é a defesa da Constituição Federal que faz com que o grupo Globo dê ibope para a delação do caso Temer, apontando enquanto saída possível as eleições indiretas.

Analisar o interesse da mídia burguesa e de outros grupos empresariais é tarefa árdua. Mas é interessante observar que as disputas entre grupos empresariais se refletem no jogo da política, dado o embricamento na relação entre os mesmos, tanto no que se refere a financiamento quanto a base de governo. O PT e PSDB disputam há muito o governo e, ambos, além de relações estreitas com o empresariado, têm veiculado suas posições depois das negociações a portas fechadas com os empresariados locais. O PMDB, nessa política, não ficou de fora. Sua parcela no governo é articulada e renovada. O presidencialismo de coalizão[1] é exímio na manutenção dos três partidos na gestão do governo e na política dos ministérios. O presidencialismo de coalizão, ou peemedebismo, tem por objetivo:

“eleger o presidente da República com mais votos do que seu partido recebe nas eleições para o Poder Legislativo, criando a necessidade de alianças políticas. Assim, para alcançar maioria no Congresso, imprescindível para a governabilidade, isto é, para a sua capacidade de aprovar suas iniciativas de lei no Congresso, o presidente começa a negociar amplo acordo político ou aliança interpartidária. Essa negociação tem como moeda de troca recursos públicos alocados no orçamento da União ou cargos distribuídos nos ministérios”[2]

O papel do PMDB no sistema de presidencialismo é a venda de apoio, e sustentação, ao partido do governo, seja esse PT ou PSDB. Em troca, há distribuição de cargos, liberação de recursos e manutenção dos interesses econômicos dos pares políticos, beneficiando as grandes empresas, hoje, do mercado brasileiro. O governo Temer fracassou na sua política. É errôneo de nossa parte atribuir sua falha à política de coordenação, tão somente. Sua queda se deve à impopularidade e ao caráter ilegítimo do seu governo, à lentidão no processo de garantia das reformas, ao envolvimento na Operação Lava Jato, dentre outros. O fato é que ambos os poderes, Judiciário e Rede Globo, o julgam incapaz de continuar a política necessária do governo, e o que está em jogo hoje são as reformas políticas, da previdência e trabalhista, além da política tributária.

Problematizar a crise hoje é tratar da questão das reformas. Empresários de diferentes áreas econômicas têm se encontrado diariamente com parlamentares e ministros tecendo e redefinindo estratégias políticas. A cada final de encontro a portas fechadas tem-se uma posição política definida para cada político em questão. Quem rege o jogo da política hoje são os empresários, os políticos são os peões desse jogo, peões com lugar privilegiado no trono. O povo? Esse está fora do jogo, permanece na plateia assistindo aos acordões, as cabeças de um e outro aparentemente rolando na crença de que estão se matando, na crença de que em algum momento, enquanto povo, poderão também ver seus interesses representados por uma daquelas peças em disputa no tabuleiro de xadrez. O PT, sem dúvida, cumpre bem o seu papel, mantém o povo fora do tabuleiro de xadrez, fora da disputa e fazendo-os crer na força de seus representantes.

O declínio de Michel Temer hoje nos aponta três saídas: a elite paulistana que tem o interesse de manter o presidente até o fim do seu mandato; alguns grupos que querem forçar a saída de Temer através de uma eleição indireta para garantir a continuidade da implementação das reformas – e aí se vê o protagonismo dos órgãos da justiça e a força do grupo Globo; e os grupos que querem a saída do presidente através das eleições diretas, num movimento de Diretas Já.

Parcela dominante da esquerda protagoniza o grito “Diretas Já” trazendo à pauta a memória do movimento de 1984, no resgate de um sentimento em prol da democracia, tal qual o contexto pós-ditadura. Alega-se defesa da Constituição e da democracia, sem discutir que projeto de democracia é esse. A esquerda que faz coro ao movimento é a tradicional esquerda que defende a democracia representativa burguesa, num esforço de garantir seu trono no tabuleiro de xadrez. O PT é agente fundamental. Nesse quadro de disputa política, é importante ressaltar o papel do PT e dos partidos social-democratas num aparente discurso de defesa da classe trabalhadora. Entretanto, os reais interesses do PT são revelados quando olhamos para o último governo Dilma e o abandono da discutível e problemática política neodesenvolvimentista, para dar lugar à consolidação de uma política neoliberal. A práxis dos partidos de esquerda é a defesa do estado democrático de direito com toda a sua estrutura mantida. Antes do Lula fechar o acordão anunciando o seu direcionamento em favor da via indireta, os petistas já acaloravam o discurso de “Diretas Já”, apontando a saída da crise através da exaltação da figura do líder. A valorização da política petista sob uma discurso acrítico, repetitivo, vangloriando-se de um histórico de luta no passado que em nada mais se assemelha a sua atual política, é o principal mote da esquerda. O fim é a eleição. O fim, para os reformistas mantenedores da ordem burguesa, é sempre através das urnas. E aí caímos no vício estrangulante da política de presidencialismo de coalizão, a aliança com PSDB e PMDB.

A política do PT nos governos de Lula e Dilma está longe de esboçar um comprometimento com a classe trabalhadora. O modelo neodesenvolvimentista, característico do primeiro governo de Lula, foi logo substituído pela política neoliberal e pelo aprofundamento das privatizações, política ampliada e consolidada nos últimos anos, firmando a hegemonia do capital financeiro no bloco de poder. Junto a isso, o governo Dilma ratificou seu compromisso com a ordem burguesa na utilização das estruturas coercitivas. A política autocrática, característica do período ditatorial, empresarial-militar, pode até ter estado adormecida nos tempos de “redemocratização” do país, mas não fora desmantelada.

“Mantidas as velhas estruturas coercitivas, o Estado pode retomá-las no atual momento como uma das formas de manter a ordem diante da crise conjuntural. Colocaram-se em marcha os aparatos repressivos, reatualizando antigos métodos e erigindo novas estruturas. Passamos a viver, então, a (re)militarização da questão social, etapa superior da criminalização das lutas políticas e das desigualdades sociais”[3]

A crescente criminalização e o acionamento das formas armadas na insistência do mandato do governo Temer não é nada novo. A prática de (re)militarização, como reivindica Castelo, foi medida constante do último governo do PT nas favelas; devemos lembrar da Maré, nas ruas, nos megaeventos e nos casos de remoções. O autor especifica a questão:

“A (re)militarização da “questão social” continuou se agravando em 2014, ano da realização da Copa do Mundo em solo nacional. O governo não poupou esforços para garantir no megaevento a segurança dos investimentos privados e seus retornos bilionários. Segundo documento da Matriz de Responsabilidades da Copa do Mundo, foi gasto R$ 1,9 bilhão na segurança do megaevento. Tais recursos foram destinados à modernização das forças militares com equipamentos bélicos de última geração. […] Na capital carioca, o Complexo da Maré foi ocupado militarmente a partir de 5 de abril, por uma força de 2.750 soldados do Exército e da Marinha, além de polícias, reeditando o que já havia acontecido no Complexo do Alemão no processo de “pacificação” das comunidades locais.”[4]

Se apostamos numa saída à esquerda em defesa da classe trabalhadora, essa está longe de se dar com a sucessão do PT, seja agora ou em 2018. As reformas trabalhistas e a precarização da classe trabalhadora são consequências do projeto de acumulação do capital, levado a cabo tanto pelo PT como pelo PSDB. O PT já demonstrou seu pacto com o projeto neoliberal, firmando os interesses do setor financeiro-empresarial, em seu governo. Até porque não é o presidente o dono do jogo, os partidos que ocupam a presidência são meros peões nos tronos de poder, e o PT não escapa à regra.

Antes de só apontarmos o papel do PT no favorecimento dos interesses financeiros-empresariais, devemos refletir sobre o papel dos partidos de esquerda como PSOL, PSTU E PCdoB na atual conjuntura. Além de alimentar a agenda dos eventos “Diretas Já”, os partidos fazem coro também com o discurso da direita na coibição (e criminalização) da luta combativa dos segmentos independentes. A esquerda da representatividade democrática mais uma vez ratifica seus postulados nos quais podemos relembrar o célebre pensamento das Teses de Feuerbach, no qual se compreende a prática como critério da verdade.

O discurso reformista de tais partidos é visto nas agendas e nos programas, também é percebido na disputa real nas ruas e na mobilização das bases, além da histórica e continuada prática de criminalização de segmentos que não se pautam pela mesma retórica reformista e de não-enfrentamento. Os recentes momentos de maior mobilização popular com caráter de enfrentamento que se deram nas ruas e favelas do Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte, em 2013, 2014 e 2017, tiveram como limitador central os partidos de esquerda endossando a importância de uma manifestação pacífica, sem uso de violência, e criminalizando segmentos independentes, anarquistas e Black Blocks. Mais do que um discurso que segrega e criminaliza, essa postura mostra até quando a esquerda representativa está disposta a ir na disputa da cena política. Somente se combate através das vias eleitorais. A urna aparece como o grande instrumento de disputa onde depositamos nossas forças e anseios nas mãos da figura ideal, através da construção de um discurso mítico de salvação, em que nenhuma crítica pode ser feita à figura da liderança. Tal disputa acaba não só por desmobilizar uma construção política de criação de poder popular e de mobilização no que concerne às bases, mas também corrobora a conformação e confirmação do estado democrático de direito enquanto um regime democrático. O reformismo senil da esquerda representativa não tem o menor intuito de mudanças, tampouco reformas; essa esquerda acaba se tornando uma brecha, uma permissividade do capitalismo na manutenção do estado de coisas.

Por outro lado, é preciso um olhar atento para as tentativas de organização que surgem com outros vieses. Essas, muitas vezes, são desarticuladas via repressão muito por conta da sua alta exposição e inexperiência política. Os segmentos autogestionários não conseguem estabelecer para si um programa e uma tentativa de unidade de luta criando condições reais para as disputas políticas. São, portanto, presas fáceis à crítica reacionária dos segmentos reformistas.

Comunistas, socialistas e libertários se envolvem em análises pormenorizadas buscando melhores contextos revolucionários utilizando as contribuições históricas de outrora, revisitando a Internacional e outros fenômenos em busca de um momento mais favorável. Entretanto nunca se é chegado o tal momento de transformação. Não que de fato estejamos diante da melhor conjuntura para uma tomada de forças populares revolucionárias. Mas na medida em que essa nunca chega, somos nós que devemos criá-la.

O que cabe ao povo antes do xeque-mate final? A tomada das peças. O domínio dos peões para enfrentar as torres, os reis e as rainhas. A classe trabalhadora tem que redefinir o jogo, entrar em cena, disputar o tabuleiro. E não através da via da representatividade; os grupos que lá estão, mesmo digladiando entre si, não são capazes de representar nossos interesses. Somente a pressão popular, a paralisação do país, a ação direta organizada e a greve geral são capazes de pressionar os senhores reis, rainhas, bispos e seus cavalos e torres, ou mesmo os peões. Somente a criação de uma atmosfera de medo e pressão popular pode garantir alguma conquista. O tempo que tanto esperávamos chegou. Mas não somos nós que estamos no tabuleiro. Dada nossa ausência no jogo do poder e a inevitável precarização da vida vinda das reformas em curso, não há mais nada a perder.

Notas
[1] ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de Coalização: o dilema institucional brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34.
[2] AVRITZER, Leonardo. Impasses da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2016
[3] CASTELO, Rodrigo. Crise conjuntural e (re)militarização da “questão social” brasileira. Margem Esquerda, n. 23. São Paulo: Boitempo Editorial, outubro de 2014.
[4] Idem.

Amanda Calabria é Bacharel em Historia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), atriz, performer, circense e contadora de histórias.

Arthur Moura é graduado em História pela UFF, mestre em Educação pela UERJ e cineasta.

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