Militantes voluntaristas e admiradores de caudilhos; capitalistas hedonistas depressivos; deixaremos nestas insidiosas e torpes mãos a matéria moral, como se de pouco importasse? Por Poeta em Buenos Aires

Coração, coração de imediatos nojos agitado,
levanta, às aflições resiste lançado um contrário
peito, a embustes de inimigos de perto contraposto
com firmeza; e nem vencendo abertamente exultes
nem derrotado em casa abatido te lamentes,
mas com alegrias te alegra e com reveses te aflige
sem excesso; e conhece qual ritmo regra os homens.
(fr. 93W, trad. José Cavalcante de Souza)

Arquíloco, como bom poeta lírico de seu tempo, tinha um público seleto para seus poemas: os indivíduos que faziam guerra e que não raras vezes se entregavam à bebedeira em rodas amistosas onde as instáveis elites criavam e se regozijavam de sua própria cultura superior, oposta à chusma. O homem beligerante, equilibrado – quando não o beberrão ou o “abandona-escudo” que preferia salvar a própria pele a sustentar a formação de combate ao lado de seus iguais. Fato: aos gregos importava muito cultivar a imagem de uma racionalidade e de uma moderação primeira e principalmente por frequentemente se comportarem em completa oposição a estes preceitos.

É certo que quase tudo o que sabemos sobre esse tempo penumbroso da história grega, o período arcaico (entre os séculos VIII e VI a.C.), vem justamente de poemas como este. E a bem da verdade, é muito improvável que eles tenham sido colocados em papel nessa época mesma. A própria existência de um indivíduo histórico chamado Arquíloco é uma hipótese que se sustenta apenas pelo crédito que damos a outros indivíduos que teriam vivido há mais de 2.000 anos, cuja existência histórica é apenas um pouquinho mais provável. De todo modo, ressalta algo muito interessante de boa parte da poesia grega mais antiga e que está longe de lhe ser algo particular. É a ênfase na didática. As sociedades puramente orais contavam somente com a voz para educar sobre a história, sobre as coisas e essencialmente sobre as relações sociais, algo que parece banal, mas que demanda grande esforço para que nossa mentalidade moderna possa conceber. Quando a palavra não é espacializável, objetificável, ela tem um poder muito importante e é tratada com grande seriedade. Os mais velhos são sábios pois conhecem muitas histórias, sabem usar as palavras para engendrar mundos e efeitos que não podem menos que assombrar qualquer jovem ingênuo.

Talvez um dos casos mais clássicos, e que detém uma importante chave para entender os aspectos sociais que pariram a obra chamada homérica, está no canto IX da Ilíada, na embaixada que Odisseu, Ajax e Fênix fazem para convencer Aquiles a voltar ao combate contra os troianos. A partir do verso 520, Fênix passa a contar a Aquiles a história de Meleagro, herói que também se retraiu dos combates por ira, e que, havendo recusado todo tipo de presentes em troca de seu braço guerreiro, termina retornando ao combate por escutar a esposa. Fênix em realidade não apenas pedia o regresso de Aquiles ao campo de batalha, tratava de educar seu antigo pupilo a respeito de uma regra social central da sociedade grega arcaica: o dom. Aquiles devia aceitar as desculpas de Agamenon por haver tomado dele a cativa Briseida, motivo da ira de Aquiles, desculpas essas que vinham em forma de inúmeros presentes. Aquiles devia aprender e se guiar pelo “ritmo que regra os homens”, algo deveras difícil para o filho de uma deusa, que chega a lutar contra um rio e o pôr para correr.

O recurso ao mito dentro do mito nos revela essa essência didática da narrativa épica arcaica, sendo a poesia uma das formas principais de veicular os conteúdos míticos, e o recurso de maior autoridade em sua função didática: síntese de conduta social e cosmovisão. Como mencionado, a poesia lírica circulava principalmente nos simpósios e outros ambientes onde a elite construía e reproduzia práticas de coesão interna e diferenciação social. Já a poesia homérica é consagrada nos grandes festivais pan-helênicos, regulamentados e auspiciados pelas tiranias, no que talvez exageradamente, talvez não, poderíamos caracterizar como o início de uma cultura grega de massas. Tais enquadros certamente colaboraram para a formação de uma tradição poético-autoral (lírica) mais vinculada à elite, que eventualmente passou a se interessar por escrever tais poemas, já praticamente entrado o período que nós chamamos de democracia ateniense, e que assim viria a ser nomeado somente algumas décadas depois pelos intelectuais – em sua maioria oligarcas e inimigos do poder das massas, a “democracia degenerada”. Por outro lado, a poesia e dança coral arcaicas vão tomando forma e criando uma tradição tal que dá à luz o drama grego clássico, uma verdadeira ópera que tem a própria experiência democrática como personagem principal, tanto em sua versão trágica como na cômica. Um reflexo de si mesma para as massas que votavam nas assembleias, julgavam nas cortes e apreciavam as criações poéticas nos festivais.

Mas existiu outro gênero, praticamente da mesma época do desenvolvimento da lírica, muito mais associado à transmissão popular, que são as fábulas, cujo autor primeiro e mais famoso no mundo grego é Esopo. Figura essa também de questionável existência histórica que teria vivido apenas um século após Arquíloco, mas que reúne na obra que leva seu nome o conteúdo de séculos de sabedoria e formulações anônimas.

O “modelo” básico é uma brevíssima narrativa, às vezes de apenas um parágrafo, com personagens na maioria das vezes animais, encerrada com uma moral – mas não se deixem enganar por essa palavra latina. Enquanto boa parte da cultura antiga será educada com base nas obras moralistas, sendo Alexandre, o Grande, o principal personagem da conjunção entre história e moral, assim como Plutarco um de seus principais autores, essa moral tardia é também baseada no exemplo que nos remete a Arquíloco e a Homero: homem moderado, guerreiro exemplar, Nestor, Heitor etc. Por sua vez, o que chamamos de “moral” nas fábulas de Esopo tem a estranha natureza de operar pela negatividade: os animais são de fato animais, e respondem a seus interesses privados e às leis mais brutas da natureza. Estão mais próximas do ”anti-exemplo”, ou muitas vezes tratam de evidenciar regras e lógicas sociais que estão por cima e mais além do atuar dos homens.

O recurso utilizado é de uma simplicidade lapidada pelo orvalho dos séculos de homens e mulheres sem nome que transmitiram, quiçá desde seu artificial passado indo-europeu, pequenas partículas de conhecimento e sabedoria, atravessados tanto pelo tangível empírico quanto pelas representações sociais. Os animais funcionam como arquétipos desta dupla determinação: suas características estão pré-estabelecidas por aspectos naturais, mas são suas ações (e principalmente sua morte) o que lhes confere uma centelha de consciência. A lebre é a caça universal, todos os demais bichos a comem; o leão é o rei dos animais, ninguém lhe disputa a posição; a raposa é inteligente, mais inteligente do que os tolos supõem. Assim, a pequena narrativa é construída sempre com algum elemento natural que o ouvinte pode identificar rapidamente e encaixar em um esquema de conhecimento pragmático geral de um simples filho de camponês. A “anti-moral” didática não poucas vezes surpreende o leitor moderno pelo aparente salto lógico. Uma pequena cena entre dois animais leva a conclusões sociais impressionantes, desde um “os homens facilmente fazem promessas sem a pretensão de cumpri-las” a “aprende-se vendo a desgraça alheia”. Deve-se, no entanto, estar atento ao conjunto de fábulas que chegou a nós, pois é evidente que entre aquelas que os antigos adjudicaram a uma grande coleção de autoria de um Esopo estão também exercícios retóricos e criações provavelmente realizadas nos papiros de eruditos alexandrinos – formalmente se pode notar pela extensão ou pelos recursos narrativos rebuscados, mais próprios de uma cultura letrada que de uma sociedade oral (certamente um trabalho filológico seria ideal para uma hipótese mais nutrida em cada caso).

Temos aqui, então, duas modalidades de transmitir um tipo de conhecimento moral, uma formulação de natureza social a respeito de como atuar no mundo: uma que expõe o belo aos olhos dos deuses e da comunidade, outra que diz com todas as palavras a crueza e a crueldade do mundo. Se o anacronismo destas formas é carne no festim de entusiastas e diletantes, certamente seguimos reencontrando-nos com as dificuldades e limitações da pura crítica e do puro exemplo quando o assunto é formular e transmitir uma ideia que jogue um pouco de luz na tão maltratada vida moral. Maltratada por uma cultura militante voluntarista e admiradora de caudilhos; maltratada por uma cultura capitalista do hedonismo depressivo. Àqueles que queiram conversar com homens e não com anjos, indago: deixaremos nestas insidiosas e torpes mãos a matéria moral, como se de pouco importasse?

A Águia, o Pastor e a Gralha

Jogando-se de uma rocha altíssima, uma águia arrebatou um cordeiro. Quis então a gralha, para não aparentar menos, imitá-la, e com um grande estrépito se lançou sobre um carneiro; mas suas garras se emaranharam na lã, batendo em vão suas asas sem conseguir soltar-se.

Um pastor viu a cena, correu e agarrou a gralha, e cortando-lhe a ponta de suas asas, levou-a mais tarde a seus filhos. Estes lhe perguntaram que classe de ave era aquele pássaro. Disse ele:

– Ao meu ver, é uma gralha; pelas suas intenções, uma águia.

Desta maneira, tratando de rivalizar com os poderosos não apenas perdes teu tempo mas também te expões à risada por tuas desgraças.

Ilustram este texto várias representações da fábula “A águia e a gralha”, de Esopo, apresentada acima em nova tradução.

3 COMENTÁRIOS

  1. Tenho me perguntado há um tempo: Será possível uma ética e ou moral proletária? Ainda não cheguei em uma resposta.

  2. Pergunto ao poeta onde encontrou este fragmento de Arquíloco. São raras, e muitas vezes más, as traduções da poesia grega ao português, e José Cavalcante de Souza é um de meus tradutores favoritos.

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